sexta-feira, 29 de abril de 2011

TRÊS POEMAS DE ORIDES FONTELA

CORUJA

Vôo onde ninguém mais – vivo em luz mínima
ouço o mínimo arfar – farejo o sangue
e capturo
a presa
em pleno escuro.



BUCÓLICA

Vaca
mansamente pesada

vaca
lacteamente morna

vaca
densamente materna

inocente grandeza: vaca

vaca no pasto (ai, vida,
simples vaca).



(sem título)
Semeio sóis
e sons
na terra viva

afundo os
pés
no chão: semeio e
passo.

Não me importa a colheita.

                        In: Trevo (1969-1988).  São Paulo: Duas Cidades, Col. Claro Enigma

quarta-feira, 27 de abril de 2011

AFFONSO ÁVILA

ANTI-ROMANCEIRO DAS MULHERES BRASAS

            Um grupo de senhoras e moças da sociedade mineira acaba de fundar a Liga da Mulher Manda-Brasa, associação que terá como programa a luta contra os preconceitos e a opressão.  (Resumo de notícia publicada no Correio da Manhã, 1965)


1

Fé de fidalguia
prosa de prosápia
fada fenecida
prónubo da pátria
por detrás da destra
glosa de Gonzaga
o disse-que-disse
dúvida devassa

Quem é quem no fio
torcido da infâmia
quem a mãe do filho
torto da mucama
formou-se a quizília
em  torno da cama
fornicou Marília
ou Emerenciana

Ávilas e Silvas
Brandões e Ferrões
aúlicos e cívicos
brasões e florões
o prêmio pela prima
Marília ou sua irmã
honra de família
glória barregã


2

Musa museu
cama camafeus
brincos biscuís
brocados baciinhas
cálices cristais
cruzes castiçais
ouro de oratório
per sexo seculorum

Beja balneável
cândida cameável
fênix fescenina
reversa ressupina
vício de visconde
comida de conde
genuflexório
per sexo seculorum

Pública poliandra
safo salamandra
régula respeitosa
vulva virtuosa
barro do Barreiro
ares do Araxá
água de aspersório
per sexo seculorum

            In: Código de Minas & poesia anterior, 1969.

domingo, 24 de abril de 2011

GREGÓRIO DE MATOS, O FERO

Waly Salomão no papel de Gregório, no filme de Ana Carolina T. Soares

A CERTO FRADE NA VILA DE SÃO FRANCISCO, A QUEM UMA MOÇA FINGINDO-SE AGRADECIDA  A SEUS REPETIDOS GALANTEIOS, LHE MANDOU EM SIMULAÇÕES DE DOCE UMA PANELA DE MERDA

Reverendo Frei Antonio,
se vos der venérea fome,
praza a Deus, que Deus vos tome,
como vos toma o demônio:
uma purga de antimônio
devia a moça tomar,
quando houve de vos mandar
um mimo, em que dá a entender,
que já vos ama, e vos quer
tanto, como o seu cagar.

Foste-vos mui de lampeiro
vós, e os amigos de cela
ao miolo da panela,
e achastes um camareiro
de que vos desenganásseis,
e foi bem feito, que achásseis
cagalhões, que então sentistes,
porque, aquilo, que não vistes,
quis o demo que cheirásseis.

A hora foi temerária,
o caso tremendo, e atroz,
e essa merda para vós
se não serve, é necessária:
se a peça é mui ordinária,
eu de vós não tenho dó:
e se não dizei-me: é pó
mandar-vos a ponto cru
a Moça prendas do cu,
que tão vizinho é do có?

Se vos mandara primeiro
o mijo num panelão,
não ficáreis vós então
mui longe do mijadeiro:
mas a um Frade malhadeiro
sem correia, nem lacerda,
que não sente a sua perda,
seu descrédito, ou desar,
que havia a Moça mandar,
senão merda com mais merda?


Dos cagalhões afamados
diz esta plebe inimiga,
que eram de ouro de má liga
não dobrões, porém dobrados:
aos Fradinhos esfamiados,
que abrindo a panela estão,
dai por cabeça um dobrão,
e o mais mandai-o fechar;
que por isso, e por guardar,
manhã sereis guardião.

Se os cagalhões são tão duros,
tão gordos, tão bem dispostos,
é porque hoje foram postos
e ainda estão mal maduros:
repartam-se nos monturos,
que nas enxurradas dos tais
é de crer que abrandem mais,
porque a Moça cristamente
não quer que quebreis um dente
mas deseja que os comais.

(in: Gregório de Matos: Antologia.  org. Higino Barros. Porto Alegre: L&PM)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

AH, UM SONETO... DE LÊDO IVO

SONETO DO EMPINADOR DE PAPAGAIO

A nada aceito, exceto a eternidade,
nesta viagem ambígua que me leva
ao altar absoluto que, na treva,
espera pela minha inanidade.

O que sonhei, menino, hoje é verdade
de alva estação que em meu silêncio neva
o inverno de uma fábula primeva
que foi sol, cego à própria claridade.

Na hora do fim de tudo, separados
fiquem os dois comparsas do destino
que sabe a cinza após o último alento.

E a morte guarde em cova os injuriados
despojos do homem feito; que o menino
empina o papagaio, vive ao vento.
                                                  Lêdo Ivo



Duas anotaçõezinhas:
1.    Postei no dia 20, anteontem, o “Bonde”, meu poema favorito de Oswald de Andrade, e me lembrei, quase que por antonomásia, de Lêdo Ivo, que por ser um dos “top” da Geração de 45, se situa poeticamente bem longe do genial antropófago modernista.  E lembrei, claro, do divertido episódio “calcanhar de Aquiles X chulé de Apolo”, que tinha lido certa vez em Haroldo de Campos.  Posto aqui o trecho da entrevista de Haroldo, que colhi no site “Tiro de Letra” 

2.    Junto aqui um poeta a outro também porque a Folha de S.Paulo publicou recentemente uma entrevista de Lêdo Ivo, e eu concordo integralmente com sua posição quanto à prática cada vez mais comum de herdeiros parasitarem o nome de seus parentes célebres, que fizeram por onde ser célebres. Vai aí o link: http://sergyovitro.blogspot.com/2011/04/familia-nao-devia-herdar-obras-diz-ivo.html

quarta-feira, 20 de abril de 2011

domingo, 17 de abril de 2011

BUCY MOREIRA ILUMINADO PELO FAROL DE FARO



Psiu. Ouça isso aqui. Mais até do que leia. Se quiser ler, aí vai a letra:
NÃO PÕE A MÃO
(Bucy Moreira – Mutt – Arnô Canegal)
Não põe a mão
No meu violão
Não não põe a mão
No meu violão

Você pode sambar se quiser
Com a minha mulher
Mas por favor
Não põe  a mão
No meu violão

Se você quiser eu dou
Um cigarro pra fumar
Empresto a minha mulher
Se você quiser sambar
Se você quiser dinheiro
Também posso emprestar
Faço qualquer sacrifício
Pra poder lhe agradar
Mas por favor
Não põe a mão
No meu violão
(Tira a mão daí)
Não põe a mão
No meu violão...

                Essa preciosidade de picardia, ginga e competência na composição ,na execução e no canto,  típica dos negaceios do samba malandro carioca é uma gravação de Bucy Moreira, grande compositor e ritmista – um dos pandeiros que ouvimos na gravação é dele – raro caso de sambista que faz o elo entre o samba “primitivo” da Praça Onze (era neto da legendária Tia Ciata) e a turma do Estácio, que frequentava.  Bucy (que é também grafado Buci Moreira) nasceu em 1909 e morreu em 1982.  A gravação aqui postada é de 1973 e foi feita para o programa MPB Especial, produzido e dirigido por Fernando Faro.


                Não são muitos os registros em que Bucy aparece com destaque, embora como ritmista sua atuação anônima em gravação dos grandes astros do disco e do rádio, desde a década de 1930, tenha proporcionado um considerável número de gravações.  Em seu disco de 1978, Paulinho da Viola gravou “Miudinho”,  e Bucy, ao lado de Raul Marques – outro nome proeminente do samba – e de Monarco, participou cantando os versos e atuando como ritmista, naquela que talvez tenha sido sua última gravação.
                É possível que existam imagens de Bucy em atuação aí pelos youtubes da vida. Eu nunca vi, mas adoraria.  A gravação que postei acima faz parte – a exemplo da de Blecaute, postada em 05/03/2011  http://robertobozzetti.blogspot.com/search/label/Blecaute  – do 1º. Volume da coleção “A música brasileira por seu autores e intérpretes”, lançada pelo SESC-SP, reunindo o acervo dos programas MPB Especial e Ensaio, criados e dirigidos por Fernando Faro.
                É hora de falar um pouco que seja de Faro, o Baixo.
                Fernando Faro é uma figura admirável.  Quem se interessa por música na TV brasileira sabe disso – e quem está chegando agora e ainda não sabe deve procurar saber logo.  É urgente, pois não saber quem é ele faz mal, só por isso. Um pouco de sua atuação, de sua vasta experiência e de sua vasta e cosmopolita cultura pode ser comprovada pelo leitor nesta interessante entrevista que achei num site de memória da TV no Brasil: http://www.tudosobretv.com.br/histortv/depo/faro/




               Há mais de cinqüenta anos dirigindo musicais na TV (entre eles, o explosivo “Divino, Maravilhoso”,  que os tropicalistas apresentaram para escândalo da audiência no finado 1968), Faro dirigiu palco também, e entre seus grandes êxitos está a primeira caravana de artistas brasileiros em Angola no começo dos anos 80, que reuniu entre outros Chico Buarque e Dona Ivone Lara.  Hoje com mais de 80 anos, olhar em retrospecto tudo o que ele fez é contemplar algo não menor do que uma proeza. Que o diga a coleção lançada pelo SESC.
                O Ensaio – ouço falar que a TV Cultura de São Paulo acabou com o programa e parece que dispensou os seus serviços, o que já é motivo suficiente para... rogar pragas terríveis para quem o fez, se for verdade – é a grande marca registrada de Fernando Faro.  Pela imagem e pelo som.  Pela imagem: Faro criou uma técnica de focalizar o entrevistado em close e em big-close, sempre sob uma fotografia de alto contraste, que acaba por captar com riqueza de detalhes as reações dos entrevistados na situação de entrevista, certamente diante das perguntas que generosamente lhes possibilitam discorrer sobre sua vida, narrar suas estórias.  E aqui o grande achado de Faro (não sei se inventado por ele, mas não importa): as perguntas dirigidas àquele que está em foco, nós, espectadores,  não ouvimos.  Elas são feitas em off, Faro, já por si só baixinho (ele carrega desde sempre o apelido de Baixo e dele fez outra de suas marcas: só se refere a seus interlocutores como “Baixo”), senta-se no chão na frente do  entrevistado e pergunta,  sem que ouçamos.  Ficam uns claros, umas hesitações, ou – pelo contrário – um entusiasmo, uma pressa às vezes, que contribuem esplendidamente para que ao final de cada entrevista tenhamos uma imagem audível bastante rica de cada artista enquanto conversador. 
                Alguns dos números que compõem a coleção já foram lançados em DVD – o de Elis Regina, inclusive, parece que com uma venda estupenda –,  não sei se o de Bucy saiu.  Não é o caso, mas ainda que fosse,  de várias de suas passagens já serem bem conhecidas do público – o que seria estupendo – ao postar aqui alguns fragmentos desse riquíssimo acervo não pretendo nenhum ineditismo ou coisa do gênero.  Eu quero é que os leitores aqui deste blog compartilhem esses momentos comigo. Como se fosse uma música que, ao tomarmos um amigo pelo braço, queremos que ele se comova com a gente e como a gente se comove.  Vou postando aos poucos grandes momentos do que está disponível. E vou postar sobretudo com esse intuito.  Que é proporcionado pelo grande farol que é Fernando Faro.






terça-feira, 12 de abril de 2011

FIRMA IRRECONHECÍVEL, 1º. SEGMENTO



Quando lancei em 2009 meu segundo livro, Firma irreconhecível, tive a idéia de lançar junto com o volume um CD no qual eu lesse o poema-título, texto extenso que ocupava só ele 45 páginas das 170 totais. Executei a idéia tanto como uma forma de tentar aproximar o leitor do poema quanto, mais ainda, porque o poema em si foi construído movido sobretudo pela oralidade, pelo ritmo da fala acelerada que me acompanhou durante os quatro meses em que foi escrito – quase escrevo aqui “transcrito”, pois ele me vinha sobretudo pela voz interior, audível a cada vez que eu me re-conectava á célula rítmica que o move. A oralidade evidente do texto teria que ser complementada pela vocalidade da gravação em CD.
Feita a gravação, ficou ainda evidente que o poema precisaria ser dividido em faixas ao longo de seus mais de 30 minutos de duração. Sobretudo pelo aspecto prático: o ouvinte que não agüentasse ouvi-lo todo de uma vez (alguém agüenta?) poderia retomar de uma das faixas interrompidas e assim ir ouvindo-o aos poucos. A divisão das faixas foi pensada tendo em vista em primeiro lugar essa comodidade. Já a decisão de onde cortar, isto é, onde separar uma faixa de outra (acabaram sendo 10), obedeceu subjetivamente a alguns critérios de feitura que não sei explicar muito objetivamente não. Ofereço aqui aos leitores o segmento inicial do poema, isto é, na divisão final, aquela que ficou sendo a primeira faixa.

FIRMA IRRECONHECÍVEL (1º. segmento)
A assinatura não passa
de um aceno. Isto quer
dizer que menos do que
nomes o que vemos e nos
move é um sinal como
se fosse um senão ou
de herança ou de im-
perícia, um rabo de fo-
ra de gato escondido. U-
ma assinatura não pas-
sa do aceno de uma ca-
valgadura após assinalar
um tento tentando um ca-
valgamento que o livre
do cruel esquecimento
da prosa linear do mundo,
todo prosa sem mere-
cimento capaz de fixá-
-lo ao dorso do cavalo
convertido a si mesmo,
juramento de garbo,
galhardia, bazófia e vento.
Assinar não passa de
fixar um rabo de gato
escondido de fora na
bunda de um jumento
e acenar esperançoso de
que o ranço da eternidade
não o acometa de bolor
e sedimento acumulado,
bosta ao vento, dique fura-
do, previsão de chuva, pro-
visão de lérias que acome-
tem desde o começo
a biosfera e o firmamento,
abrigo do assassino que o a-
sinino assina assim
deixando lá ao anônimo
o relento. Impudicícia,
desídia, imprudência
ou mero descaso no manejo
do remo, o que nos move
às vezes como um mar-
ujo bêbado mais que o tom-
bo do navio é miragem,
mulher tatuada no ba-
lanço do músculo, ba-
fejo de fortuna ou de
promessa cumprida de â-
nus ao beijo circundante,
concha de molusco expro-
priada pela cunha do im-
potente. Assinar pode
ser só desejo de selar
seu forte olor de posse,
delimitar a margem de a-
certo igual a um desdenta-
do predador impraticável
ao qual só reste a coragem
e a lembrança e se conforma
com a tocaia ou a TV e a
poltrona donde se de-
leita com orcas, chitás,
águias e leoas, comoda-
mente dragão cobiçando
corças, fauno velho
ensinando xeta às ninfas,
sonhando ser caçado por
uma van cheia de lobas.
Quem assina sorri dian-
te do cano apontado para
si, sabendo a culatra por
onde o tiro vai sair,
duelo de um, miolo de
alcatra a desmanchar na
boca, açougue de alma,
ganho de massa ence-
fálica na frente de um
pelotão sanhudo de
burocratas. Auto-
grafar o vento, foto-
grafar o evento, peido
no elevador cheio do tér-
reo ao terraço, na torre sus-
pensa, na solidão do a-
partamento freqüentado
por todas as luzes do
ninguém por perto, donde
nenhum comprometimen-
to exceto a urbs rastreada
por holofotes, a assi-
natura se impõe seja aos
míopes ou aos pimpões.
Favor assinar ao lado
do xis, favor assinar
sobre a linha, é um favor
assinar reconhecendo a
dívida como quem não tem
outra sina, a quem não cabe
o que se diz, de boca a boca,
de esquina a esquina, pondo
pingos nos is, pondo pongos
nos os, até que os ossos
se esfarelem, da cartila-
gem ao tutano, da cre-
mação à cinza, do cigarro
ao rastro preto nos pulmões,
daí ao pó e ao pós e
depois de tudo assinar
a deixar um amor ras-
treável, DNA
de primata, gosma de ca-
racóis. Deixam rastro ca-
racóis no cimento, deixou
rastro na areia Anchieta,
craques deixam rastros na
camisa, assinatura é
flanar também no tempo, é a
anti-tatuagem por prin-
cípio e por fim é sempre prova
que se apaga. Vela prego
cova, assinar é inumar, res-
valar despercebido para o
limbo, deambular tomado
de delírio como os doidos
de pedra e de sarjeta, afer-
rados aos berros, aos de-
litos. Dos detritos dos nomes
sai aos gritos a assi-
natura, sai única e sai
rosa, breve ou grave e cai,
decapitada em pétalas e
cai, cagada sobre cágados
cai sobre a métrica
e o pé quebra, cai sobre
o soneto, o haicai, a écloga,
samba, rumba, hip-
hop, hurra, hippies,
beatniks, nerds, punks,
índios, colegas, cai uma
chuva, uma praga, uma
chusma, nuvem voraz
semeando desertos ali
onde depois de escrever
não mais nasce nada. Assi-
natura não serve de des-
culpa. A rubrica pode de-
cupá-la dos excessos do
prometimento, a reco-
lher rápido o rabo de fora,
mas não foge ao olho
atento, enquanto os hip-
opótamos atraves-
sam a tela à procura
de Buñuel, que cuida de
seus ursos e cordeiros,
entretanto que nubentes en-
laçam dedos para sem-
pre, não fosse a assinatura
livrá-los da eterna jura
da saúde e da doença,
da dança macabra na ceri-
mônia como recom-
pensa, os nomes para
sempre entrecosidos
no rol de roupa suja,
na lista da despensa.

(In: Firma irreconhecível. Oficina Raquel, 2009. www.oficinaraquel.com )

sábado, 9 de abril de 2011

O NOME DE UM POETA NESTA HORA: TASSO DA SILVEIRA



CANTIGA EM Ô

Madrugada é lá tão longe...
No céu, nem lua redonda,
nem lua em forma de foice.
Com rostos de medo e assombro,
hirtos, lentos, roucos, moucos,
os homens passam na noite.

Pés feridos nos pedrouços
da caminhada sem pouso,
da dor funda ao duro açoite,
lôbregos, trôpegos, torvos,
numa procissão de escombros
passam os corpos na noite.

Madrugada alta está tão longe.
No céu nem lua redonda,
nem lua cortada em foice.
Por tredos becos esconsos,
pobres, velhas, rotas,
as almas passam na noite.

Passam na noite estagnada
em busca da madrugada.

                  (In: Panorama do movimento simbolista brasileiro, v. 2. Andrade Muricy)

terça-feira, 5 de abril de 2011

AH, UM SONETO... DE GLAUCO MATTOSO

SONETO CACOÉPICO

É má cacofonia "heróico brado",
que faz o nosso hino ser por cada
macaco no seu galho de piada
motivo, mito presto profanado.

Galhofo quando grafo "deputado",
um réu por cuja mãe a pátria brada
e cuja nota tem que amar melada
a puta que a recebe de ordenado.

Por ti gela meu pinto, e por ti são
meus bagos esmagados qual sardinha,
ó língua de tão baixo palavrão!

Dos cacos que cuspi, calou Caminha.
A mim toca, contudo, uma questão:
Se já Camões fez caca em "Alma minha"...

                        Glauco Mattoso
                                  (In: Sonetário brasileiro)

domingo, 3 de abril de 2011

NA MEMÓRIA: ADEMIR DA GUIA

para o Marcelo Mendez
            Quando resolvi escrever sobre Ademir da Guia fui aos googles da vida para precisar alguns dados, esclarecer outros. Então descobri que o craque faz 69 anos  neste de 3 de abril.  O texto rascunhado ganha forma definitiva e é postado para celebrar a data.



Nunca vi ao vivo um jogo do Palmeiras, nem quando acompanhava de perto, na adolescência, futebol.  Dos grandes times de São Paulo acho que foi o único que nunca vi, num daqueles Rio-São Paulo/Robertão.  Tenho absoluta certeza de que o Palmeiras não vi – o Corinthians eu tenho alguma dúvida – porque jamais esqueceria se tivesse visto ao vivo Ademir da Guia. Por nunca tê-lo visto ao vivo, nos meus retalhos de memória Ademir da Guia é mais cinza do que verde. Quando a cor chegou à TV no Brasil, o craque já estava na reta final de carreira.  O verde vestindo Ademir só nas capas da Revista do Esporte.
            O interesse pelo futebol nasceu com a TV comprada pela família em 65, acho, e além de Pelé dois nomes de jogadores dos anos 60 ficaram para sempre fixados, junto a suas imagens fugidias mas resplandecentes, em meu encanto pelo futebol que jogavam e que me impressionava: Paulo Borges, um endiabrado ponta-direita do Bangu, velocíssimo, habilíssimo, goleador mortal naquele grande time (sim, o Bangu era grande nos anos 60!)  vice em 64, 65 e 67, campeão em 66. Paulo Borges que acabou sendo comprado pelo Corinthians em 68, e que em seu primeiro jogo ajudaria o Timão a quebrar um “tabu” de 13 anos (acho) sem vitórias sobre o Santos, inclusive com gol seu. Mas hoje aqui não é Paulo Borges nem Pelé.
            Ademir da Guia: graças a ele fui aprender o significado da palavra “sarará”. Aquela figura mulata de pele clara, cabelo pixaim louro, era uma dissonância na paisagem humana habitual: eu via negros, mulatos de todos os tons – como se diz no Brasil – pardos em geral, brancos, louros, brunos, e não só no futebol.  A dissonância também estava nas passadas largas do craque singular: Ademir parecia de fato uma figura em câmera lenta, o corpo dando constantemente a impressão de que flutuava, não sei bem, uma espécie de movimento um pouco acima do chão, de quem pisa na ponta dos pés.  Certamente havia momentos em que esse ralenti, como se diz em cinema, era posto de lado e o craque tornava-se mais agudo, certamente havia, durante os 90 minutos de uma partida, os momentos que lhe exigiam isso.  Mas eu não lembro absolutamente desses momentos.  Seja como for, Ademir da Guia não era absolutamente praticante de um futebol lento: a rapidez estava nas soluções que encontrava, no passe preciso e certeiro no tempo certo.  Acho que foi Gerson que cunhou a frase “no futebol quem corre é a bola, não o jogador”.  Se não foi, tem tudo a ver. Gerson praticava um futebol “parado”, como Ademir era “lento” (as aspas explicam tudo).
            Não vi ainda o filme que foi feito sobe Ademir, Um craque chamado Divino, parece que em 2006.  De vez em quando vejo alguns retalhes de lances do Palmeiras em flashes antigos na TV. Às vezes aparece esse Ademir mais incisivo, obrigado pelas circunstâncias do jogo a um movimento mais súbito, mais deselegante.  Minha memória não gosta muito disso.  E não tem maior mistério, pois a memória do que foi efetivamente visto é parte pequena do que pensamos nos lembrar do que vimos.  Ao que foi visto se juntam os outros elementos da espessura do tempo ao fabricar a memória. Na verdade, no meu caso, a memória vem sempre impregnada pela poesia, por uma espécie de vivência do literário.  E aí lembro também de maneira muito forte a funda impressão causada em mim pelo poema de João Cabral de Melo Neto, “Ademir da Guia”, que li quando saiu Museu de tudo, em 1975, e que é na minha avaliação o melhor poema sobre futebol escrito no Brasil (o fato de serem poucos não lhe tira em nada o mérito).  Ademir ainda se encontrava em atividade quando o livro foi publicado, e andava em baixa em certos círculos (burros) do futebol, uma vez que Zagalo o barrara na Copa de 1974 – o pretexto: “Ademir era lento!” –, quer dizer, já era seu momento crepuscular.  Meu afã de acompanhar futebol também se encontrava a essa altura em declínio.  Mas meu interesse pela poesia era crescente.  Daí que penso que as imagens da câmera lenta de Ademir se fixaram reforçados por esse poema extraordinário, que explica a lentidão por um ângulo insuspeito, visível apenas a um grande poeta, executado apenas por um craque de exceção.  Posto-o aqui:
Ademir da Guia
Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmera lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

            Assim, posso dizer que é das borradas imagens da TV em preto&branco e do preto das palavras no branco do papel de João Cabral que se nutre sobretudo minha imagem do craque Ademir da Guia. Ao redor, o mundo dos amantes do futebol, dos que sabem vê-lo com os olhos de quem busca o prazer que o bom futebol proporciona, sempre confirmou as imagens fugidias do craque que tanto marcou minha infância e adolescência. 

"os demônios soltos e o anjo em suspensão"



         Quando resolvi que eu iria escrever este texto, procurei lembrar, para efeito de contraposição, de outros grandes jogadores de meio-campo da época.  E tomei um susto ao ver que quase ia me esquecendo de Rivelino, ídolo corintiano, herói tricolor e também herói do tri no México em 70.  Impressionante craque também, no entanto não deixou nenhuma imagem maior na minha memória – ou melhor, até deixou, mas de sua irascibilidade dentro do campo. Lembrei que José Miguel Wisnik fazia um interessante contraponto entre os dois craques em seu maravilhoso Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São palavras precisas e preciosas:
            “Rivelino e Ademir eram algo assim como o ímpeto e o continuum, a combustão e o banho turco, os demônios soltos e o anjo em suspensão. Tudo isso sem um termo comum à vista, a não ser o fato de ocuparem, mais uma vez, a mesma posição, e de serem craques. (...) Mas Ademir da Guia é uma carta cifrada, não decodificada pelo futebol brasileiro do seu tempo, como se ele concentrasse em si, sozinho, numa espécie de “fundo de garantia”, a capacidade que o futebol brasileiro em geral ia perdendo no lapso indefinido daquele período: a capacidade coletiva de reter a bola, de imprimir o ritmo ao jogo, comprimindo-o e distendendo-o – como faz João Gilberto com o canto.”
            No que toca exclusivamente a Ademir – sem falar que o paralelo com Rivelino é um espanto de perfeição – a capacidade destacada de comprimir e estender o jogo me leva a pensar em Paulo Henrique Ganso. A figura futebolística de Ademir talvez não encontre paralelo em sua solitária genialidade.  Ou talvez seja apenas a minha memória que não o admita.  Mas confesso que ao longo de todos esses anos às vezes me alegrava ao me deparar com algum jogador que pudesse reencarnar as maiores qualidade do craque palmeirense.  Cheguei a pensar vê-las em Sócrates, mas na filigrana dos detalhes eles se diferenciavam muito.  Depois no irmão deste, Raí, mas este foi um projeto de esplendor muito rápido que logo se malogrou. Pensei ver algo ainda em Giovane, do Santos, talvez mesmo o mais próximo, mas... agora penso no genial Ganso.  Se me parece claro, muito claro que Ganso veio para entrar de vez na galeria dos grandes gênios do futebol no meio-campo, é sobretudo pela capacidade de estender e comprimir, diástole e sístole.  Mas Ganso é um outro capítulo, que começa a ser escrito, o paralelo fica como incógnita.  Ademir da Guia brilha sozinho e glorioso na memória de quem gosta de futebol.
           

sábado, 2 de abril de 2011

CONSERTANDO LAMBANÇAS NO BORDEL DE DONA MARGÔ

François Villon
           

              Já fui acusado aqui e alhures, e isso por conta também do meu livro e sobrenome, de ser um rascunhista inveterado.  Digamos mesmo que com razão, mas convenhamos: dessa vez exagerei.  Foi na postagem do Villon em 18 de março, quando teci algumas considerações de caráter formal a respeito das três traduções postadas. Escrevi um monte de bobagens, toquei-me das piores a tempo, e quero agora consertar um pouco. 
            Engraçado foi como eu me toquei das bobagens escritas, assim que reli a postagem.  Penso que o que deflagrou tudo foi o verso primeiro da última estrofe da tradução de Sebastião Uchoa Leite para o poema de Villon, quando me deparei com um verso de 11 sílabas, rompendo a sequência de decassílabos.  Levantei a hipótese de erro na revisão e tal, pedi auxílio a leitores mais expertos com comentários que me ajudassem (aliás, até agora nada). Pior foi que agora examinando com mais atenção os aspectos meramente formais tanto do texto de Villon quanto às três traduções vi que na mesma tradução, a de Sebastião, que optou pelo decassílabo, surge inadvertidamente já na primeira estrofe um verso com 9 sílabas – que não vou indicar qual seja, quem quiser que se entregue ao exercício.
            Mas eu cometi outros erros naqueles meus comentários, possivelmente pela própria empolgação de montar uma postagem que me parece tão rica aos interessados por poesia.  Tento consertar um tanto delas aqui, fazendo apenas a ressalva que me ative tão somente a questões de forma poética.  Vou a elas.
            Bem, apesar de não ter maior familiaridade (aliás, nem menor) com o francês do século XV, posso dizer com segurança que Villon se utiliza do decassílabo, ora cesurado na sexta sílaba, ora lançando mão do chamado “verso provençal”, com tempos fortes na 4ª. e 7ª. sílabas. Dos tradutores, Péricles Eugênio optou pelo alexandrino, na maioria de corte clássico, com cesura na 6ª., e alguns de tipo romântico, hugoano (acentos em 4 e em 8), além de uma variante deste na terceira estrofe, “Monta em mim, para que não perca o seu favor”, acentuado na 3ª.    Décio Pignatari opta pelo decassílabo, mas sua opção aqui e ali se desgarra: como ler como decassílabos, por exemplo,  “Um pichel de vinho e me viro na moita, não/Sem dar água, queijo, fruta e pão” (1ª. estrofe, versos 6 e 7), ou ainda o 3º. verso da 3ª. estrofe,  “De onça.  Rindo, me acerta um squiafo no”. Há ainda alguns outros exemplos.  São problemáticos. Ótimo, para quem gosta desse tipo de problema. Uchoa Leite, que também optou pelo decassílabo, tem aquelas duas possíveis exceções indicadas acima.  Antes de prosseguir, quero deixar claro que, ao chamar tais fatos de “problemáticos”,  não os estou marcando negativamente.  As liberdades tomadas com relação à métrica são extensivas muitas vezes às soluções encontradas no caso das rimas, de bastante liberdade também em Décio, e se fossem aqui aprofundadas, em termos gerais de sonoridade, por exemplo (como “rimas internas” e outras),  poderíamos ver  melhor que correspondem a concepções poéticas que envolvem a poética da tradução.  Mas meu intuito aqui não é chegar a tanto. Nem quero esquadrinhar e perseguir teoricamente o problema.  Não acho que seja este o espaço apropriado.  É mais despertar o possível interesse do leitor interessado.  Nem mesmo sou um “especialista’ em poética de tradução.  Como já disse, é sobretudo pra consertar as ligeiras bobagens que escrevi anteriormente.

Péricles Eugênio da Silva Ramos

            Uma última observação sobre metro e ritmo.  Se no texto de Villon praticamente se divide a opção pelo decassílabo provençal (acentos em 4-7) e o que chamamos heróico (acento em -6), curioso que tanto Décio quanto Uchoa Leite tenham pouco lançado mão daquele primeiro tipo.  Ou muito me engano (atenção, caro leitor!) ou temos em Décio somente na 2ª. estrofe “Ju-ra-por-NOS-so-Se-NHOR- Je-sus-Cris-[to]/Que-não-da-RÁ-.Pas-so a-MÃO-num-por-re-[te]”; em Uchoa Leite, “e- vol-te- SEM-pre- se em-BAI-xo-lhe aper-[ta]”.  Essa pouca opção pelo provençal se “compensa” por assim dizer com a farta opção, tanto num quanto noutro, pelo verso com o acento sub-tônico na 4ª. sílaba, além dos chamados decassílabos sáficos (acentuados em 4 e 8).  Quero crer que ao se marcar tão efetiva e numerosamente a 4ª. sílaba, Uchoa e Décio imprimiram maior movimentação de cena ao poema – mais ainda talvez em Décio – uma vez que o decassílabo fica com uma maior divisão interna, dando-lhe maior mobilidade.  Uma possibilidade de se reforçar essa hipótese se dá quando comparamos com a tradução em alexandrinos de Péricles Eugênio, na qual a opção pelo modelo clássico numericamente superior lhe impinge uma correção um tanto estática.  Essa opção vai de par com a proposta de um tradutor e também poeta em boa medida comprometido com a Geração de 45, grupo de poetas, por assim dizer, amigos do decoro.  Nesse sentido ainda vale notar o título eufemístico que Péricles dá à sua tradução.  Em lugar da “Gorda Margô”, temos um respeitoso “Margot, a encorpada”. Não quero me estender quanto a maiores juízos de valor, mas convenhamos... não é uma boa solução.
            Quanto às rimas em final de verso... bom, vamos lá.
Como é frequente nas baladas, e como é muito comum em Villon,  poeta exuberante em termos de exploração de jogos formais, em toda a extensão do poema temos as sonoridades et – ot – i(st) – at  , ao final dos versos.  Nas primeiras três estrofes (de dez versos, ou décimas) o esquema de distribuição de rimas é A-B-A-B-B-C-C-D-C-D, bem próprio da balada de tipo erudito, correspondendo às sonoridades: /et/- /ot/-/et/-/ot/-/ot/-/uit/- /uit/-/at/-/uit/-/at/.  Péricles Eugênio segue fielmente: as sonoridades de rima que segue são ado – ão – ôr – em em toda a extensão do poema, mas com distribuição um pouco diferente em relação à distribuição no restante do poema, com idêntica distribuição nas décimas: ado/-/ão/-/ado/-/ão/-/ão/-/ôr/-/ôr/-/ém/-/ôr/-/ém/, configurando igualmente  A-B-A-B-B-C-C-D-C-D.   
A diferença entre Villon e a tradução de Péricles está nos sete versos da estrofe de encerramento: em Villon a distribuição A-A-A-B-A-A-B corresponde às sonoridades em /it/  e  /at/ , que nas estrofes anteriores corresponderiam a C e D; em Péricles, a mesma distribuição de Villon (A-A-A-B-A-A-B) se faz com as rimas em /ão/ e /ém/, correspondentes a B (aqui a diferença) e D.
Décio Pignatari

Já em Décio Pignatari, distribuição de rimas na primeira estrofe segue o esquema de Villon; deve-se incluir aqui mesmo a rima “incompleta” (na verdade apenas toante, e ainda um caso curioso de uso da consoante de apoio) “Figlii/domicílio”; mas o tradutor vai tomando suas liberdades a partir da segunda estrofe em relação não apenas à distribuição mas à sonoridade rímica do original. Isto se dá pela adoção de rimas toantes (cuja sonoridade coincide apenas na vogal tônica) em “amargo/quarto/trapos” e novamente a consoante em “encargo”; o mesmo se dá quando retorna a palavra “domicílio” que fecha as estrofes – e que no esquema tradicional da balada corresponde ao refrão – que também de forma toante rima com “Cristo/Anticristo”, estas rimas consoantes entre si.  Assim, se considerarmos por exemplo a sonoridade  “amargo/quarto” como rimas toantes, o que é perfeitamente legítimo embora um pouco fora do padrão como se encara a rima em língua portuguesa, e designar a sonoridade de “amargo” como A na distribuição e a de “quarto” como A’, temos a seguinte distribuição na segunda estrofe da tradução de Décio: A-A’-B-A’-A-C-C-D-D-C; isto é, ainda que se considere A’ como uma variante de A o esquema de distribuição das rimas nessa estrofe, diferentemente da primeira, é diferente do original de Villon. É só atentar para a 2ª. metade da estrofe, versos 6 a 10.  Em Villon (e Péricles): C-C-D-C-D. Já em Décio: C-C-D-D-C.  A se observar ainda que em Décio o verso 3 fica solto em termos de rima, uma vez que “morta” não rima com nenhum outro verso, embora suas vogais apareçam numa sugestiva posição invertida em relação às demais palavras, por exemplo: mORTA, quARTO. No exemplo, as  mesmas vogais em posição invertida se apóiam sobre RT; e sem desenvolver aqui que embora não rime em fim de verso “morta” rima internamente com “suporto”, no mesmo verso. Mas adiante falo um pouco disso, após comentar a tradução de Uchoa Leite também. Na 3ª. estrofe, as liberdades no trato da forma que Décio toma em relação a Villon tornam-se ainda mais evidentes.  Dispenso-me aqui de fazer uma descrição tão minuciosa como a que fiz em relação à estrofe anterior: o leitor saberá enxergar o que chamo de liberdades no tocante à rima.
Finalmente, em Sebastião Uchoa Leite as liberdades tomadas quanto à rima ficam entre Péricles e Décio.  Explicando: em nenhum momento nas décimas ele altera a distribuição (que já vimos ser A-B-A-B-B-C-C-D-C-D), nem usa qualquer verso solto, como Décio faz.  Mesmo as raras ocorrências de rimas toantes são muito discretas: “perto/oferta” e “ventre/dentro”.  Mas se Péricles Eugênio mantém a repetição de sonoridades, como Villon, Uchoa Leite não o faz.  Na estrofe de encerramento mesmo Leite faz como Décio,  alterando o esquema A-A-A-B-A-A-B para A-A-A-B-C-C-B.  E se ele não faz corresponder, como Péricles também não, com a mesma sonoridade usada nas décimas, o fato a seu favor – assim como em Décio – é que tais possíveis “desvios”  em relação ao modelo original fazem com que, como já ocorrera igualmente na tradução de Décio, a sonoridade interior a cada verso seja muito mais rica do que em Péricles, explorando à farta e com muita inventividade o que também em Villon é extremamente rico: as ásperas e explosivas sonoridades consonantais.  Mas isso também fica para o leitor.  Gostaria apenas de lembrar, como na postagem anterior, que Uchoa Leite foi o único que manteve o acróstico de que Villon se valeu como uma assinatura, no encerramento.  As primeiras letras da última estrofe em Villon formam a palavra ‘VILLONE”.  Uchoa Leite traduziu ‘VILLONA”.
Sebastião Uchoa Leite

Bem, chega.  Haveria muito ainda a desenvolver.  Vamos ver se leitores ajudam a enriquecer a discussão, mas sem tomar tanto de uma postagem, que afinal deve ter mantido pouca gente interessada até aqui.  Mas eu devia isso, para apagar as observações apressadas da primeira postagem, acima indicada.  Afinal, se Dona Margô vive num bordel nem por isso eu tinha o direito de chegar fazendo zona, não é mesmo? Perdão, Margô, perdão, Villon, perdão, poetas-tradutores, perdão, leitores.