domingo, 31 de julho de 2011

"FIRMA IRRECONHECÍVEL", 5o. SEGMENTO

            Prossigo a postagem do poema "Firma irreconhecível", hoje com o 5o. segmento.  Ao final, o link para o 4o. segmento, onde o leitor encontra os links para os segmentos anteriores .




Leitura do poema na UFRural RJ com Marcelo Diniz.
     
Registro
de noite quente em cama
clandestina é fria, no po-
rão da vida íntima não
convém assinatura, mas lá
está ela e estala tapa
na cara, lambança
ou da lembrança armadilha,
suadouro, boa-noite cinde-
rela em sauna mista, puta
de calçadão, garota de
programa dá tudo pra
subir na vida, faz oral
até o fim, faz anal e sem
frescura, nada disso rende
nada, só pose pra site
pornô, calcinha preta de
renda, espelho de teto, bo-
ca arisca, teta sili-
conada quase fura se
mordisca, paga no cartão
de débito, o do táxi é por
fora, assina, meu bem, que é
tua, te chupo todinho
e bebo, só deixo de fora
o nome, assina, meu tsu-
nami, inunda a cidade toda,
levanta vôo pra Miami
minh’alma de Inhaúma,
sobrevoa o Santo Cristo,
Saúde, Catumbi, Gamboa,
garoa fina é chuvisco,
quebraqueixo é bala boa,
aos pés do redentor te
deixo, penitente após
o coito a vida fica mais
vazia, nem o desejo
saciado, só a solidão bra-
via, bramia o mar agitado
em grita de meio-dia.
Assinar um manifesto
dá direito a muita festa,
já em abaixo-assinado
muita gente que não presta
se junta e em geral o saldo
não vai longe de rescaldo,
lodo molesto, lama pu-
trefata, chaga exposta,
restos de vontade
e disfarce de farsa le-
vada a sério, assinatura
de padre misturada à de
rabino, de professor de-
putado, ladrão no fundo
modesto, mestre-escola,
estivador, securitário,
contador, flanelinha, do-
mador, engenheiro, secre-
tário, destacado na as-
sembléia, encostado no ins-
tituto,emprestado a uma au-
tarquia, assina embaixo
e em cima amola a vida
subalterna, ascensorista,
chofer, doméstica, co-
peiro, filho no colégio,
porteiro, manicure, ex-
mulher,depois fala o que
bem quer em nome e
em defesa da sociedade
civil, dos setores orga-
nizados, da puta que
pariu, previsível, como
o futuro assinado, que ora
se apresenta ao honrado e
respeitável véu aberto
de picadeiro, picada de
cascavel faz afinal
menos mal que as-
sinatura de embusteiro.
Ato contínuo, o contínuo
adentra o tribunal,
sentença severa o juiz
assina, o réu se levanta,
ouve aflito, sacode a poei-
ra contrito e dá a volta por
cima, sinal de respeito
restrito ao assento etéreo
e mais nada, que o corpóreo
assentado é tudo
carta marcada, tanto
tento tanto assento,
atestado assinado,
lado a lado ao infinito,
é coleção de assentos
bífidos, glúteos fundas-
sentados em dolce farniente
grudados, homens de as-
sento assentados em assen-
tamento sem-terra, sem
-teto, sem-cu, onde toma as-
sento exu com seu falo
assentado, em cabeça
sem assento nem precisa
assinar nada, camisa
de onze varas se veste
e tamos conversados.
Assinatura não garante
passe livre em manicômio,
na pessoa dos heterônimos
o gajo aprontava todas,
galinhagem de arrabalde,
dobrada à moda do porto,
piscadela de balconistas,
pisadela de estafetas,
happy hour em necrotério,
mãos bobas de cozinheiro,
sarabanda em sanatório,
assinar é só o cheiro
evasivo do remetente,
feto de filho feio
em saco de lixo embrulhado,
lacraia em caixa de correio,
escorpião no sapato,
no mercado de Pequim
é vendido no espeto,
meu amor traz para mim
um com pimenta e um sem,
sim?, pertinho assim bem
de mim faz um mimo,
dá um cheiro, assinatura
chinfrim não tira pedaço
nem sebo, fico louco
moralista, falo em razão
e zelo, vou no rumo de
Gomorra, pulo muro a-
pronto cedo, durmo em gangorra,
acordo em Sodoma,
monto banca, aviso, avio
curo esporão de calcanho,
blenorragia em senhoras,
chumbinho de ratazana
é brinde pra esposa aflita,
santos anjos de vassouras
esvoaçam casadoiras
a cidade em alvoroço,
normalistas pudibundas
rifam seus ternos carinhos,
pedagogos demagogos
sorteiam diploma a rodo,
sociedades pedofílicas
promovem chás beneficentes
pra Mr. Kite e acólitos,
prefeitos rotarianos,
salvacionistas do exército,
ministros da eucaristia,
lojas maçônicas, con-
frarias de comedores de
rabada, amantes de ca-
lhambeques, gerentes de ge-
ringonças, atores de es-
timação louvando car-
tão de crédito, enraba-
diços de iates, gestores
de patifaria, casa
da mãe hemofílica, a-
chaques de mequetrefes,
bilaques de pechisbeques,
cutelos de magarefes, ora-
dores com cardiopatias,
fala morna língua fria,
mãos com paralisia
não assinam a folha do
cheque, suspensa a sole-
nidade,firmada a juris-
prudência,desta data em
diante em bacanal de de-
butante o solene fala-
tório, bestial bestial-
ógico, retórica de
vomitório só depois
de estar presente o e-
mérito benemérito o-
ficial juramentado, o
magistrado que assine
a garantia decente
a todos os honorários,
cachês, michês, fan-
carias.





                                                                                              Firma irreconhecível. Oficina Raquel, 2009.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

O MAIS-QUE-PERFEITO: JARDS MACALÉ E VINÍCIUS DE MORAES



Como se sabe, Vinícius de Moraes teve quatro parceiros principais (pela ordem de entrada em cena, Tom, Carlinhos Lyra, Baden Powell e Toquinho), além de ter composto com muita gente uma canção ou outra, ou às vezes até um número bem significativo  (casos de Edu Lobo, Francis Hime e Chico).  Mas entre aqueles parceiros bem fortuitos, um deles em especial, Jards Macalé, compôs com o poeta uma das canções que mais me tocam de tudo o que Vinícius fez. Poderosa pepita em termos de letra e melodia, composta parece em meados dos anos 60, “O mais-que-perfeito”  é exemplo de um tipo de canção em que Macalé é craque, possivelmente o melhor de sua geração:  a canção melodiosa, derivada dos gêneros ancestrais da modinha e da seresta. Clara Nunes a gravou, mas posto aqui a gravação do próprio Jards Macalé no extraordinário CD O q faço é música, lançado em 1998.
A letra:
Ah quem me dera ir-me
contigo agora
a um horizonte firme
comum embora

Ah quem me dera amar-te
sem mais ciúmes
de alguém nalgum lugar
que nem presumes

Ah quem me dera ver-te
sempre a meu lado
sem precisar dizer-te
jamais: Cuidado!

Ah quem me dera ter-te
como um lugar
plantado num chão verde
para eu morar-te

Ah quem me dera ter-te
morar-te até morrer-te.

                O meu leitor aqui já deve ter se tocado de que uma das minhas grandes admirações musicais é Jards Macalé.  Porque é mesmo.   Sua elegância melodiosa, seu senso extraordinário de estar à vontade no meio de intrincadas harmonias com seu violão cortante e explosivo – quando a canção e a performance  assim o exigem – ao lado de sua voz e seu canto pouco convencionais, num tom a um só tempo sombrio, doce e gutural, tudo isso faz com que a audição de seus CDs seja sempre fonte de prazer e descoberta.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

ROBERTO ACÍZELO DE SOUZA LANÇA OBRA DE REFERÊNCIA FUNDAMENTAL

                Quem fez graduação em Letras como eu nos anos 70/80, sabe bem a importância que tinha para nós o livro Vanguarda européia e Modernismo brasileiro, organizado por Gilberto Mendonça Teles, cuja primeira edição é, se não estou enganado, de 1976.  No precioso livrinho editado pela Vozes, o professor da PUC-RJ compilou os principais manifestos das vanguardas históricas do começo do século XX, além daqueles que compuseram o painel do nosso Modernismo.  Era para nós o primeiro contato – e para muitos, o único – com textos fundamentais para a história da arte moderna na Europa e no Brasil.
                Naqueles anos, de grande expansão dos cursos de Letras no Brasil (evito a expressão “boom”, que em português sempre dá cacófato: “boom das Letras”, “boom dos cursos de Letras”, falava-se muito na época que o Brasil tava fora do “boom da literatura latino-americana", logo nós do Brasil fora desse cacófato...), estávamos às voltas também com a ditadura militar (Geisel e a seguir aquele que a gente esqueceu a pedido dele mesmo) e ainda no rescaldo das comemorações do cinqüentenário da Semana de Arte Moderna, que propiciaram  alguns produtivos revisionismos à margem  das tentativas oficiais de revisionismo  ufanista.  Para muitos, eu inclusive, era a oportunidade de ter contato com textos que foram – potencialmente ainda poderiam ser – tão explosivos que nos fascinavam.   E o livro de Teles era ótimo, entre outras coisas por isso.
                Pois tenho a impressão que o livro que Roberto Acízelo de Souza, professor titular de Literatura Brasileira da UERJ, organizou ao longo de mais de dez anos e que agora acaba de lançar pela editora Argos, de Chapecó, SC (638 p.), pode vir a ter uma importância até maior, para os atuais alunos de Letras, não apenas em nível de graduação, e aliás não apenas para os que estudam Letras mas para todos os que se interessam por literatura, do que o livro de Mendonça Teles naquela ocasião.  Não digo isso querendo insinuar que este é superior àquele. Apenas atesto que a dinâmica dos estudos de Letras entre nós acabou possibilitando  agora uma ambição de conhecimento de alcance mais amplo do que então. O livro de Acízelo é  um volume monumental, que tem por título Uma idéia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922), e nele  estão reunidos algumas dezenas de ensaios que vão de Charles Perrault a Proust, passando por Kant, Schiller, Diderot, Wordsworth, Balzac, Victor Hugo, Poe, Baudelaire, Flaubert, Unamuno, incluindo ainda os nossos Raul Pompeia, José Veríssimo, Silvio Romero, entre outros.  É uma maravilhosa oportunidade de acesso a textos até então praticamente inacessíveis em sua dispersão, que a pesquisa cuidadosa de Acízelo reuniu. Oportunidade de ler, exemplos entre muitos, “Da metafísica poética, que nos dá a origem da poesia” (Vico), “O que é poesia?” (Stuart Mill), “Literatura mundial” (Marx e Engels), “O romance experimental” (Zola), “A arte da ficção” (Henry James)... E qual o assunto comum a esses ensaios? É a gênese e o desenvolvimento da idéia moderna de literatura, a partir do momento em que ela surge, desvinculada do que até então havia sido o normativismo clássico ao tratar daquelas obras que a modernidade entende como sendo “literatura”.  Ou, como está nas palavras do organizador na ótima “Apresentação” do livro:
                “Tomamos a palavra [moderno], nesta antologia, como atributo de certa concepção de literatura que rompe com a noção clássica das letras, bem como com suas reciclagens medievais e neoclássicas (isto é, renascentistas, barrocas e arcádicas).  Nesse sentido a ideia moderna de literatura   desponta já na primeira metade do século XVIII, no âmbito do iluminismo, com prelúdios datáveis de fins do século XVII, configurados na ‘Querelle des Anciens e des Modernes’, desenvolvendo-se e firmando-se no século XIX, no embalo do romantismo e seus desdobramentos – ditos realismo, naturalismo, simbolismo –  , para alcançar enfim as primeiras décadas do século XX, quando então, radicalizada, parece atingir o seu termo ao suscitar as experiências das vanguardas, confluentes na noção de modernismo.” 

                Girando portanto em torno dos conceitos “literatura” e “moderno”, não resisto e transcrevo aqui uma passagem-chave da “Apresentação”, em sua 2ª. parte:
                “Convém esclarecer, no entanto, que o qualificativo ‘moderno’, aplicado ao conceito ‘literatura’, num certo sentido implica uma redundância.  É que, até em torno do século XVIII, enquanto a palavra ‘literatura’ conservou sua acepção etimológica latina, significando, pois, habilidade de ler e escrever, bem como, por extensão, cultura alcançada mediante o exercício dessa habilidade, as produções escritas não se tinham unificado sob um conceito genérico.
                Usava-se assim, desde a Antiguidade, para designar os discursos escritos, os termos ‘poesia’ e ‘prosa’ e, mais tarde, a partir da Idade Média, as expressões ‘letras humanas’, ‘letras divinas’ e ‘boas letras’, bem como uma extensa nomenclatura relativa a espécies particulares de textos em verso ou prosa, como ode, idílio, égloga, epopeia, tragédia, epístola, fábula, sermão, novela etc. Não havia desse modo propriamente a literatura, mas diversos discursos heterogêneos legitimados basicamente por sua utilidade, evidente e exclusiva no caso de textos destinados a instruir ou a moralizar – por exemplo, um tratado de direito e uma biografia de santo – , putativa e associada à apreciação de uma espécie de deleite intelectual, no caso de composições como poemas e peças dramáticas.”
                A seguir, a discussão igualmente bem encaminhada do conceito de “moderno” é bastante esclarecedora também para o leitor se situar em meio a uma terminologia que se não tem nada de esotérica (como muitas vezes se acusam as terminologias das disciplinas científicas, entre elas a Teoria da Literatura), justamente por ser muito “aberta”, exotérica, vira uma terra de ninguém conceitual.  Mas não transcrevo aqui não.  Fica o estímulo, para os que dão valor a uma bem formada biblioteca, a  se adquirir esta obra de importância eloqüente que,  estou convencido, veio para ficar como referência fundamental.  
                Houve lançamento do livro no recente Congresso Internacional da ABRALIC em Curitiba. Os exemplares enviados esgotaram-se num instante. Não consegui o meu no lançamento (o último foi vendido bem na minha frente), muito menos o autógrafo do autor, com quem fiz uma disciplina na graduação e uma no mestrado, e com quem volta e meia me encontro meio ao acaso e de quem tenho sempre uma recordação carinhosa.  Depois chegaram novos exemplares, consegui comprar e, quando estava me retirando do local onde estavam os stands de venda, ainda vi Acízelo ao longe, saindo do elevador enquanto eu já estava com o pé na calçada.  Como eu estava com o peso de muitos livros comprados, deixei para pegar o autógrafo em outra ocasião.  Mas a leitura já está a pleno vapor. Sugiro que o leitor faça o mesmo.
               

sexta-feira, 22 de julho de 2011

AH, UM SONETO... DE BAUDELAIRE

A GIGANTA

Pois quando a Natureza, em seu capricho exato,
Gerava estranhos seres raros, dia a dia,
Uma giganta moça – eis do que eu gostaria,
Para viver-lhe aos pés com a volúpia de um gato.

Ver seu corpo florir com a flor de sua alma
E crescer livremente em seus terríveis jogos;
Ver se não teria no peito alguma oculta chama,
Com as chispas molhadas que mostra nos olhos.

Percorrer à vontade a realeza das formas,
Escalar a vertente dos joelhos  enormes
E, quando os sóis do estio, à complacência alheios,

Estendem-na, cansada, ao longo da campina,
Dormir descontraído à sombra dos seus seios,
Como abrigo tranqüilo ao pé de uma colina.
                                                    
                                                         Trad. Décio Pignatari
                                                          (in: Poesia pois é poesia: 1950-2000)




LA GÉANTE

Du temps que la Nature en sa verve puissante
Concevait chaque jour des enfants monstrueux,
J'eusse aimé vivre auprès d'une jeune géante,
Comme aux pieds d'une reine un chat voluptueux.

J'eusse aimé voir son corps fleurir avec son âme
Et grandir librement de ses terribles jeux ;
Deviner si son coeur couve une sombre flamme
Aux humides brouillards qui nagent dans ses yeux ;

Parcourir à loisir ses magnifiques formes ;
Ramper sur le versant de ses genoux énormes,
Et parfois en été, quand les soleils malsains,

Lasse, la font s'étendre à travers la campagne,
Dormir nonchalamment à l'ombre de ses seins,
Comme un hameau paisible au pied d'une montagne.

Charles Baudelaire por Nadar

domingo, 17 de julho de 2011

SEIS NOTURNOS DO BINGEN

Ela é virtual ela me deixa insone
Cafeinômana e tão bonita
Acordo cedo e grogue
Tomo o meu café mas quero o dela
Ela deve ser tão gostosa e nem o cheiro
dela e nem o do café preenchem o sono
que ela me furta e que eu entrego
sem resistência e sem recompensa
e sem sombra de dúvida ou certeza




II
Súbito ela some
se apaga
silencia
Uma ave noturna ecoa e pousa
mas é lá fora, longe dos meus umbrais
Ela está viva, mas não aqui
Adivinho-lhe a carne, doce como bom vinho
para quem até ao fundo vai
de uma taça de onde a noite escoa
e só de manhã revela seus resíduos.  




III
Noctâmbula na névoa que desfaz
a sinuosidade do rio conduzindo postes
ela acrescenta à minha névoa a fumaça
dos cigarros, e eu me confundo
como se fosse o tempo
que indistinguisse o que passei
o que amarei, o que serei
na bruma – sem drama! – que apenas me toma
pela mão e que me diz seu nome:
ausência.



IV
O que é rascunho é isso assim
é este isso é não ter um fim o óbvio de ir
vivendo e não ter como aprender e tanto
se afastar do que se traça ao ver
que as traças aproveitam mais dos livros
do que a pretensa sabedoria que eles me infundissem
quando me vejo na noite, só – e vão ruindo
em estardalhaço de silêncio
todos os sentidos das palavras
Por mais que eu apure os sentidos
ficam só os sons, ficam só os sons
ficam só os sons




V
As estruturas cumulativas da língua
todas as aditivas, a cambulhada, a pletora
a entropia, o aluvião, tudo varre
Se acaso eu achasse um lugar-comum a salvo
onde me agarrasse como a uma costela
de prata e isso me patenteasse que o Bingen
é apenas uma lembrança de névoa, lama
e fantasmagoria, que mesmo ela é só
um pouco mais que isso, mas que agora
se tornou estranhamente espessa
nesta tela onde a entrevejo e lhe escrevo
e a quero
como a quero




VI
Nem as traças tirarão proveito
(Da eternidade não ouço que elas riam)
É provável que vírus  farão melhor
do que o café e o vinho poderiam dar
 – que nem bebi –  já que apenas resíduos
de suas letras são proveito para mim
que não creio na eternidade
Já que amanhece, também a hora de noturnos
passou

sexta-feira, 15 de julho de 2011

AS QUATRO ESTAÇÕES DO BREJO


Primavera
A oferta é tanta
- que cornucópia! –
Tenho tempo nem
De tocar punheta

Verão
Tanta canícula
Tanta modorra
Que até o mosquito
Pede o ventilador:
- Antes que eu morra!

Outono
Rebentam frutos:
O mundo não cai
Na luz
Flutua

Hiver
Faz tanto frio
Que não se tira o cachecol
Nem pra sentar
No vaso


terça-feira, 12 de julho de 2011

DISPLICENTE



A falta corta por todos os lados
e nunca diz seu nome
deixa-se confundir
num equívoco eco de canção longínqua
se diz Lígia
ou Helena
Ariadne ou prosaica Adriana
Emília
aparece mil vezes na telinha plana
com o nome saudaaaaaade...
em quem nem sequer sente saudade
mas nunca diz seu nome
vejo-a enquanto caminha displicente
pelos lugares que lhe eram habituais
sei não
mas tenho a impressão que suas coxas eram mais grossas
ou estão agora mais morenas?
tem o mesmo bom gosto quanto à lingerie
os ombros estão livres da alça do sutiã
não há nesga enganosa em seu cabelo louro
ou será que não seria louro
será que mudou o estilo de depilação?
ou a frequência?
rasgou o que é meu
ou só esqueceu
como eu fiz com as juras
como nunca fiz com as malas
das viagens adiadas
enquanto tento manter tépida a sala
do aroma das ervas e do vinho
num fogo brando
brando
e imperecível

sábado, 9 de julho de 2011

BRASILEIROS, TODOS JUNTOS: “MESSI É MELHOR DO QUE MARADONA”





           Tenho lido e ouvido falar, e com muita insistência, que os argentinos andam irritadíssimos com a performance de Messi na Copa América, “envergando” o uniforme da seleção deles.  É uma queixa que já vinha da Copa do Mundo, quando também o astro do Barcelona teria ficado muito abaixo das expectativas, apesar de toda a paparicação que Dieguito Maradona lhe devotou.  A que se pode acrescentar  o fato de que,  na mídia esportiva do mundo todo, aumenta a intensidade das comparações entre os dois supercraques argentinos
            Agora, parece que a patriotada se manifesta antipatizando Lionel Messi por ele não cantar o hino quando perfilado antes do início da partida.  Ou seja, a farda de chuteiras não se conforma.  Acho tudo isso muito divertido e, como acontece em geral com o que é muito divertido, deprimente.  Como estou cada vez mais convencido de que os confrontos entre seleções nacionais já perdeu todo o sentido, que em nome do futebol bem jogado o melhor mesmo é ver os melhores times em confronto (por exemplo, um argumento ululante: o Barcelona é muito melhor do que a seleção espanhola porque tem... Messi, e não Fernando Torres) e não seleções armadas às pressas, esbagaçadas pelos calendários e sem nenhum entrosamento, acho que Messi faria melhor se naturalizando espanhol logo de uma vez.
            Engraçado é que esse tipo de argumento patrioteiro-hidrófobo-futebolístico
anti-Messi, é brandido por meio mundo, o mesmo meio-mundo que por sinal se comove às lágrimas com a baladinha de Lennon, “Imagine”, que sonha com um mundo sem religiões e sem fronteiras.  Fico aqui nessas digressões, pensando ainda que é um tipo de argumento de gente que deve achar também melhor um mundo sem o próprio Lennon, afinal um cadáver ilustre pra ser pranteado sempre que possível é ótimo.
            Mas sem tergiversar mais, volto ao trilho. Que é o seguinte: argentinos pra espicaçarem brasileiros há uns 30 anos repetem o bordão “Maradona é melhor do que Pelé!”.  Pois agora, em troco, podemos fazê-los provar do próprio veneno.  Sugiro que se adote o bordão título lá de cima, e sempre que quisermos mexer com os brios patrioteiro-futebolísticos dos hermanos mandemos: “Messi é melhor do que Maradona!”  Mesmo que ele não venha jamais a se naturalizar espanhol, argentino nenhum jamais admitirá a hipótese da inferioridade de Don Diego. Aliás, acho mesmo que se Messi se naturalizasse a piada até perderia um pouco da graça.
            Seja como for, as duas maiores escolas futebolísticas do planeta, Brasil e Argentina, assistem neste momento a um ocaso do futebol de seleções, que acabará sendo, espera-se, em prol do verdadeiro futebol bem jogado, de preferência sem patriotadas. Imagine, como diria John.


quarta-feira, 6 de julho de 2011

"FIRMA IRRECONHECÍVEL",4o. SEGMENTO

               Como já informei aqui, "Firma irreconhecível" é o longo poema que dá título a meu segundo livro, lançado pela Oficina Raquel em 2009. O livro foi acompanhando de um CD com o poema dito por mim, dividido em 10 faixas para comodidade do ouvinte. Postei anteriormente os três primeiros segmentos, posto hoje o quarto. Ao final do texto, os links para os segmentos anteriores.





Tudo o que se ou-
ve na esquina é digno de
assinatura, por ti eu
lavo privada, contigo eu
subo no andaime, privo
contigo e me privo do
mais mísero sorriso,
compro fralda, crio filho
afirmo que adoto, fraudo,
reconheço, trato, assumo, se-
ja menina ou menino, me
dependuro na broxa, an-
do no arame farpado, na-
do amarrado, me afogo,
sumo no oco do mundo,
ateio fogo escondido no
rabo do gato de fora,
bajo las botas del ogro
faço o sogro bater as botas,
penduro a mim mesmo
num poste, lavro liquido
o epitáfio: morto em paz
eis que aqui jaz o sumo
dos borra-botas. Lapidar
como se a lápis assinasse
para sempre: Descanse em paz
(já vai tarde) (filho da puta),
que exemplo! Pai extremado
(corno, quebraste) o filho
querido (que-traste!), Dorme
(no inferno) teu sono, Amor
eterno (pois sim), Chorosa Es-
posa (putana), Orai por Ri-
cardo (ão), Amparai (Brás
das apólices), Na viuvez
apoiei (não deu conta),
Feliz com você (comborço)
para sempre fiel fui
(se fudeu), Pratiquei
a verdade (sei), Admira-
ção sem fim de todos
os amigos e parentes
(-teses), mas não assina
só dita, mata a cobra
e sob a terra o pau
se esfarela na argila e
na cremação a família
se reúne, espalha as cinzas,
mas capricho da viração
por sobre o mar faz
a curva, enquanto ao cosmos
torna o pó e vai escolher
seu nicho entoando seu re-
quiém depositado no
lixão. Assinar se assina
tudo em terra onde se aprende,
desde a tenra idade implume,
que não se paga ou se pune
credor, revisor, ladrão
que não honra o que assina,
se o nada é o minto que é tudo,
como recitava o fanho,
todo ganho já se perde,
gadanho e mais bico adunco,
furunculose, apostema,
estilo à procura de assunto,
tudo se assina, prefácio
de poetastro, obra-prima
de bestunto, microcéfalo
corcunda, neve de limpar
a bunda, ai como seria bom
assinar, livrar pra sempre
do peso da autoria e ao
rabisco atribuir o ris-
co no rabo de fora,
currídicículo tes-
tirrículhão de porco ron-
colho ciscado por pinto
arisco, tudo no mesmo
monturo, obra completa de
sarney, disparate de aluno,
mesa-redonda de domingo,
crime hediondo perdoado,
josué montello pelado,
affonso romano de cue-
ca, na ABL a soneca
é sagrada no estatuto
de feijão com couve e chá
no lugar da pinga, pinga
a tinta em folha branca,
se arma a assinatura, mas
falta tinta na cara e ela
não ruboriza, cor de sangue
é a camisa e dá a luz
certa pra foto e quem assi-
na não escreve e quem
escreve não lê o pau
não come e tudo fica por
isso mesmo, vai assim do
ermo ao esmo a esmola
do esmoler.