sexta-feira, 30 de março de 2012

De OS VIRALATAS

(sobre política de prevenção)


Eles quando ganham o primeiro salário
compram e vestem camisa do Brasil
à tarde, que à noite eles
são mortos a tiros pelos seguranças
que vestem camisa do Brasil
e são em número muito menor
mas ostentam sob a camisa do Brasil
a farda da polícia do Brasil
que não pode ser exposta porque o Brasil
tem muito medo do que falam dele
onde não é o Brasil
já que aqui no Brasil podemos – nós os brasileiros
falar e escrever qualquer coisa que é
como se não fosse coisa alguma
a ser dita e escrita e berrada
e nós apenas temos que pagar a farda
a formação o armamento da polícia
do Brasil  para que ela preventivamente
assassine aqueles que nós tememos
que um dia – ninguém vai antes ou depois
da sua hora – nos assassinem
vestindo a camisa do Brasil antes
ou assim que recebam o primeiro salário.

domingo, 25 de março de 2012

FILME RUIM

Na esquina, os três parados e silentes
sentados um virado para oeste
outro para norte
e a  mulher
olhando para a parede a 2 metros do nariz
(na direção leste)
parecia cena morta de filme
deixada ali pra encher o quadro
ou por inabilidade do diretor
enfim parecia coisa de cinema
e a cena era da vida real

eu fui andando sem me desviar um nada de pra onde eu já tava mesmo indo

passaram por mim também três crianças com o riso perverso das crianças de seis anos, e dois camaradas discutiam sobre um endereço no qual eles precisavam entregar uma mercadoria – na direção do sul o sol do cair da tarde era uma mescla de azul cobalto e ouro rubro ao norte enormes cumulus nimbus toldavam as perspectivas do que seria o desenrolar da noite abafada professor, professor ouvi que me chamavam, olhei e acenei sem ter a menor idéia de quem fosse a tempo de pensar que as três pessoas na esquina olhando nas direções desencontradas e o resto desta caminhada de uns 40 metros não tinham conexão alguma, bem como a linda menina de olhos verdes que me chamou professor, professor, sem saber que não ando mais disposto a ser professor de nada de explicar coisa alguma pra quem quer que seja e agora ao escrever continua a sensação das coisas sem qualquer conexão, como o fato de eu ter entrado no meu carro velho e ter partido de volta pra casa pensando nas coisas que acontecem nos filmes que achamos ruins por conta de nossa burrice.



quarta-feira, 21 de março de 2012

JACQUES PRÉVERT

Prévert por Robert Doisneau em 1955

3 POEMAS


O GATO E O PÁSSARO
Uma cidade escuta desolada
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro deixa de cantar
O gato deixa de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Funerais maravilhosos
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não para de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Você teria sofrido menos
Só tristeza e saudades

É preciso nunca fazer as coisas pela metade.


LE CHAT ET L'OISEAU
Un village écoute désolé
Le chant d'un oiseau blessé
C'est le seul oiseau du village
Et c'est le seul chat du village
Qui l'a à moitié dévoré
Et l'oiseau cesse de chanter
Le chat cesse de ronronner
Et de se lécher le museau
Et le village fait à l'oiseau
De merveilleuses funérailles
Et le chat qui est invité
Marche derrière le petit cercueil de paille
Où l'oiseau mort est allongé
Porté par une petite fille
Qui n'arrête pas de pleurer
Si j'avais su que cela te fasse tant de peine,
Lui dit le chat,
Je l'aurais mangé tout entier
Et puis j'aurais raconté
Que je l'avais vu s'envoler
S'envoler jusqu'au bout du monde
Là-bas où c'est tellement loin
Que jamais on n'en revient
Tu aurais eu moins de chagrin
Simplement de la tristesse et des regrets.

Il ne faut jamais faire les choses à moitié.


BATISMO DE AR
Essa rua
outrora chamada de rua do Luxemburgo
por causa do jardim
Hoje é chamada de rua Guynemer
por causa de um aviador morto na guerra
No entanto
essa rua
é a mesma de sempre
o jardim é sempre o mesmo
é sempre o de Luxemburgo
Com alamedas... estátuas... fontes
Com árvores
árvores vivas
Com pássaros
pássaros vivos
Com crianças
todas as crianças vivas
Então a gente pergunta
a gente pergunta pra valer
por que um aviador morto foi ali meter o bedelho.


LE BAPTÊME DE L'AIR
Cette rue
autrefois on l'appelait la rue du Luxembourg
à cause du jardin
Aujourd'hui on l'appelle la rue Guynemer
à cause d'un aviateur mort à la guerre
Pourtant
cette rue
c'est toujours la même rue
c'est toujours le même jardin
c'est toujours le Luxembourg
Avec les terrasses... les statues... les bassins
Avec les arbres
les arbres vivants
Avec les oiseaux
les oiseaux vivants
Avec les enfants
tous les enfants vivants
Alors on se demande
on se demande vraiment
ce qu'un aviateur mort vient foutre là-dedans

A FELICIDADE DE UNS
Peixes amigos amados
Amantes dos que foram pescados em tamanha quantidade
Vocês assistiram a essa calamidade
A esta coisa horrível
A esta coisa terrível
A este tremor de terra
A pesca milagrosa
Peixes amigos amados
Amantes dos que foram pescados em tamanha quantidade
Dos que foram pescados cozidos comidos
Peixes... peixes... peixes...
Como vocês devem ter rido
No dia da crucificação.


LE BONHEUR DES UNS
Poissons amis aimés
Amant de ceux qui furent pêchés en si grande quantité
Vous avez assisté à cette calamite
A cette chose horrible
A cette chose affreuse
A ce tremblement de terre
La pêche miraculeuse
Poisons amis aimés
Amants de ceux qui furent pêchés en si grande quantité
De ceux qui furent pêchés éboulillantés mangés
Poissons... poissons... poissons...
Comme vous avez dû rire
Le jour de la crucifixion.

                                                Traduções de Silviano Santiago


            Além do encanto próprio da poesia de Prévert (1900-1977), a estratégia adotada por Silviano Santiago para sua tradução adiciona-lhe mais um: a aproximação dessa dicção poética com a dos nossos modernistas de 20/30.  Deixo Silviano falar na introdução que escreveu para a antologia de Prévert organizada e traduzida por ele:

            “Acreditamos que – de modo geral – a sua dicção se assemelha à dos bons poetas brasileiros escrevendo nos anos 30. Poetas estes que já se encontram desvinculados da linguagem agressiva da vanguarda dos anos 20, mas daqueles anos guardando ainda a simplicidade coloquial na escolha do vocabulário e nas construções sintáticas, perpassando também o coloquial com a alta voltagem do humor e até da piada.  Foi a partir de ‘modelos’ como Manuel Bandeira, Carlos Drummond e Murilo Mendes que procuramos transpor os versos de Prévert para o português.
            (...)
            Coube ao tradutor não impor ao texto a ser traduzido uma dicção poética esclarecedora do poema, mas buscar no repertório das dicções possíveis na sua literatura nacional um equivalente que fosse justo.  Coube ao tradutor domar primeiro o equivalente, ou seja, a dicção poética escolhida como justa, para só depois efetuar o trabalho de tradução.
            Nesse sentido, este tradutor é um exegeta de asas curtas, certamente um duplo plagiador.  Plagia o texto a ser traduzido e plagia os poetas nacionais que selecionou como modelos de dicção.”

In: Jacques Prévert: poemas.  Nova Fronteira, 1985.

domingo, 18 de março de 2012

AH, UM SONETO... DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

DESTRUIÇÃO

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam ao enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém.  Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.

In: Poesia e prosa. 1981.


sexta-feira, 16 de março de 2012

MARIA TERESA HORTA






PEQUENOS DIZERES SOBRE A MULHER

I
Não come da
fome
nem come do medo

nem guarda na
arca
com a roupa o segredo


II
No armário
não tem vestido
mas também não tem o medo

na fome
os dentes vão lendo

no corpo
o frio vai cedendo


III
Há quem diga da mulher
e há quem conte a sua vida

Conforme o pão
a mulher

conforme a luta
é nascida

Há quem diga  dos seus
olhos
e há quem conte do seu ventre

conforme o peso
que arrasta

conforme o país
que sente


IV
Acolhe a mulher
o cântaro

na água acolhe
os joelhos

debruçada sobre
o balde
os anos acolhe inteiros

Acolhe a água
no cântaro

nos joelhos
a camisa

debruçada sobre
o tempo
acolhe a mulher a vida


V
Não há pranto que se ajuste
à fome de uma espingarda

nem porcelana que parta
os olhos da sua água

A mulher na sua casa
põe a frescura no cântaro

e o poente dobrado
depõe-no ela a um canto


in: Cem poemas [Antologia pessoal] + 22 inéditos.  7Letras, 2006.

sábado, 10 de março de 2012

ENFIM

ao me retirar deixo –
o deserto?
chão e céu e chão e céu e chão
e o fio
                        entre
            sombra gris e azul fuligem?

virão as rapinas e somente
as rapinas quando
amanhecer?
a alegria da canção da fonte e a límpida
voz da torrente
                        entre
pedras, calhaus, seixos
                                   seixos
talvez eu tenha prometido
e o anoitecer foi o eu ter partido

papel de Sol o meu a ser
rasgado
            crestado
com ódio
em si
de si

eu ser apagado. e fim.

quinta-feira, 8 de março de 2012

DA FEIRA LIVRE DE NEI LEANDRO DE CASTRO

         A alegria de topar de repente com um livro que se pensava perdido... além do prazer da retomada da leitura, a alegria do próprio objeto, muito e muito folheado há... 35 anos! (leio no termo de posse que garranchei na folha de rosto: “setembro de 1976"). Inda mais sendo uma produção gráfica tão caprichada, um papel pardo e grosso delicioso ao tato, capa e diagramação de Cláudio Sendim e fotos ótimas de Walter Monteiro.  Mas esses detalhes não dá pra reproduzir.  Vão aí alguns dos poemas desse poeta de que gosto muito, de quem já postei anteriormente outro poema neste blog em:


O PEIXE
Mortos, natureza morta,
os olhos do peixe
ainda mostram medo.
Uma mulher homicida
lhe espeta o dedo.


A MAÇÃ
A maçã aos olhos.
Seduz milenarmente
sem dar o que se pressente.
A um paraíso à sua semelhança
(edênico e sem gosto),
antes comer o pão
com o suor do rosto.


PÊSSEGO
O pêssego é lúbrico.
Mas dependendo
de quem o vê,
pode também
lembrar a forma
de doces nádegas
de um bebê.


PREGÃO FINAL
- Ora, ora
vamos acabar de vez
com essa chicória.


FIM DE FEIRA
No lixo molhado,
o mais novo mendigo
briga de faca
com o mais antigo.
E o mais fraco
morrerá
por um maracujá.


sábado, 3 de março de 2012

POEMA DE ANIVERSÁRIO

neste dia
me dou
um sem
um sem dois
(só um:
ninguém?)
neste dia
me nego
um fui:
faltei
fiquei
sem ser
nem ir

para sempre
para sempre
− provoca o mundo
e ecoa −

para sempre
e sempre o tempo
com sua mó
me moa