sábado, 28 de julho de 2012

XANDU


Sou o caboco Marcolino
o inglório

até onde o temor se extravia
                        e se revigora
recortam-se os vultos
            ou seriam as miragens?
dos que me querem levá-la

e não fosse o meu paiol cheio
            - ou melhor: é justo o meu paiol cheio –
não saberia o que esperar de Xandu

eles têm 20, 25
eu derrapo na curva perigosa bem além
(serei o nono boi zebu?)
            a vejo como potranca mas pouco monto
                        ela se vai
                        ela volta

                        ela não volta mais

o sapatinho dela entre meus dentes na ardência da sede me mata
me muero
(o mundo gira entre glote e cérebro
légua tirana
            graciliana)




terça-feira, 24 de julho de 2012

AH, UM SONETO... DE NAURO MACHADO


Que planeta gerou meu nascimento?
que paraplégico planeta?  Acesas
estrelas frias, meu estrumado alento,
teus róseos dentes, Pai, de eternas presas,
mastigam o osso do apodrecimento
e esmagam a alma das minhas tristezas!
Que planeta fez-me em carne, e não em vento?
Noturna dor de mortais represas,
já estou morrendo como um rio em mim,
no leito seco desta terra: assim...
(Meus órgãos sonham flores malogradas.)
É meia-noite.  Hora eternamente
a bater em minha alma, um passo à frente,
como uma besta andando.  A chibatadas!

In: Nauro Machado.  Antologia poética, 1980.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

AQUELA BUNDA ERA DA ROSSANA PODESTÀ!!







Acabo de descobrir que o meu primeiro alumbramento (consultar Manuel Bandeira, se for o caso) cinematográfico, a primeira bunda, a primeira visão entre os reflexos de folhagem n’água, as refrações, o chiaroscuro contrastante  da luz a 24 quadros, naquele corpo roliço na exata dimensão,  e flutuante-rolante em meio líquido e na imaginação palpável do que se via era... Rossana Podestà!
Vagabundeando pela internet mais do que deveria,  nesta madrugada gélida e vadia aqui no brejo, namorando imagens de filmes e atrizes, eis que relembro  de uma estória,  verídica a mais não poder, de que andei me lembrando e contando recentemente a alguns amigos e amigas: a estória do meu primeiro nu cinematográfico.
Devia ser por volta de 1966 ou 67, no Grêmio Social Esportivo aqui do local, nome muito engraçado, pela pompa, de  uma construção inacreditavelmente precária e tosca que foi demolida não tem mais do que três anos. Sábados à noite era sessão de cinema, às 8.  Apenas um projetor, os filmes em quatro rolos eram interrompidos para a troca – momento em que a rapaziada aproveitava para fazer uma social.  Ali eu vi inúmeros filmes “históricos” italianos, uns épicos fuleiríssimos, aventuras de Sansão, Maciste, Golias, nomes que  acabavam rendendo apelidos,  distribuídos pela molequeira entre uns poucos agraciados – aqueles mais fortes de corpo ou mais valentes.  Vi também “O assalto ao trem pagador”, o ótimo filme de Roberto Farias, particularmente emocionante para todos nós, por ter cenas filmadas na subida desta serra – onde se dera efetivamente o assalto, factual – logo depois da estação de Japeri, antes de chegar a Mário Belo. Lembro que foi provavelmente o filme recebido com maior entusiasmo por todos nós, moleques (aqui não existe o termo “garotos” nem “meninos”) –,  o que me ajudou desde muito cedo a não nutrir nenhum tipo de preconceito contra o “cinema nacional”, essa expressão que assume ares terrivelmente pejorativos, quando é (ou era...) dita  com esgar de canto de boca por uma classe média urbana de zona sul carioca que era o meu “outro lado”, aquele de onde eu procedia.  Vi também no Grêmio Social Esportivo meu primeiro filme de terror, com uma cena em que um rosto aparecia desfigurado e que me valeu um susto medonho – que um amigo tratou de tentar dissipar, mostrando-me como era fácil de ser obtido o efeito com uma simples vela acesa sob o rosto (a câmera pegando o rosto também de baixo). Era um troço, o tal filme,  chamado “Raptus – o diabólico Dr. Hitchcok”, do qual o único vestígio que me ficou foi esse susto, por muito tempo, apesar dos esforços contrários do meu amigo para dissolvê-lo. 
Mas nada se compara à emoção do alumbramento em “A escrava de Roma”.  Pelos googles da vida leio tratar-se de um dos “épicos” (Sergio Leone, um dos meus mais amados diretores, começou dirigindo alguns desses épicos, foi a sua escola) italianos, um filme de 1961 – e leio mais: que Podestà havia já vivido   Helena de Tróia, num filme homônimo de Robert Wise, uns cinco anos antes, tendo sido também Nausicaa numa produção chamada “Ulisses”. Mas em “A escrava de Roma”... não, não lembro de absolutamente nada no filme,  a não ser A cena.  Ela (presumo que fosse a escrava) retira-se para banhar-se num rio, protegida por um guardião, que ficará de vigia.  A cena é manjadíssima em atmosfera barata de filmes de segunda, claro.  Devia rolar algum clima entre Rossana e seu guardião, claro também, mas não sou capaz de assegurar (e denegrir a imagem da deusa). Sei que  ela dirigia a ele algumas palavras, de dentro d’águia, virada para a câmera, acho que dava um sorriso e... virava-se de costas quase à flor da água, para nós, espectadores – de súbita respiração interrompida – ,   e ensaiava  umas braçadas!  o. O. O oO. O Ó OH, o OOOOOOOOOOOOHHHH o OOOOH sem limite sem trégua sem nada sem fim, a bunda ali quase à flor da água,  e ela nos oferece aquele dorso, aquele dorso, o dorso. Indescritível o que se passou então? Não, não é a palavra.  Indelével, sim. Gritos. E palmas. E urras. E assovios. Muitos. Mas muitos sobretudo risos de prazer. Muitos. E assovios urras palmas e gritos muitos gritos e gritos.  Coisa de torcida, de geral, de domingo.  Com quantos ali eu compartilhava aquele alumbramento? Certamente com muitos, e com os da minha idade, pouco mais pouco menos, certamente com todos. Ah, sim, o som ficou: cadeiras batiam no chão, freneticamente.  Explico: as cadeiras eram soltas, ficavam amontoadas num canto da “sala de projeção” e, ao entrarmos íamos lá e cada um pegava a sua e a punha onde bem escolhesse. Veio daí, acho, meu hábito me sentar na cadeira de frente para as costas dela.  Mas eu dizia: as cadeiras batiam no chão, movidas pelo nosso entusiasmo de possessos. Sou capaz mesmo de assegurar  que uma ou duas voaram no auge da nossa empolgação. Uma ou duas. Ou três, talvez. Não mais.  Talvez fosse mais aconselhável assegurar que todas as cadeiras voaram.  Seria falsamente hiperbólico, uma pobre licença realista, a passar quase despercebida.  Tolice, literatice.  A hipérbole foi interior:   Alumbramento, que por definição é indelével.
Lembro que saíamos do cinema lá pelas 10 e pouco,  e saíamos mimetizando as cenas vistas há pouco. Lutas de espada, duelos de revólver (engraçado que não lembro de nenhum faroeste marcante que tenha visto ali), frases, exclamações, golpes de pés e mãos recém aprendidos eram comuns.  Tais exercícios eram importantes também por duas razões: nas noites de inverno, era uma maneira de espantar o frio medonho; além disso, na época,  quase não havia luz na estrada (terminava uns 200 metros antes da minha casa), sendo, portanto, como o assovio, uma prática altamente recomendável para  espantar o medo.  Não lembro da algazarra na saída de “A escrava de Roma”.  O que será que levávamos daquele filme, tão impactante para nós, além da necessidade de espantar o frio e o medo? 
O professor moribundo do soberbo “As invasões bárbaras” de Arcand lembra-se de seu alumbramento com Inès Orsini, atriz que em filme marcante de sua infância,  representando Santa Maria Goretti,  a certa altura levanta a saia dentro d’água e mostra as canelas. O professor diz que verteu rios de esperma por conta dessa visão.  Não, eu não verti rios de esperma por Rossana Podestà.  Na ocasião eu tinha 10 ou 11 anos, era cedo ainda.  Mas a visão ficou. Não consegui, buscando pela internet,  o “still” daquela cena, nem sequer nenhum “still” de “A escrava de Roma”,   mas a visão ficou. 



domingo, 15 de julho de 2012

CAMPOS DE CARVALHO


O.P.Q.R.S.T.U.V.X.Y.Z.

SEGUNDA E DEFINITIVA CARTA AO ‘TIMES”
(Com vista ao sr. Redator da Seção Necrológica)

            Escrevo-lhe esta em prantos, não para comunicar-lhe a morte de um ente querido, mas a minha própria morte.  Como tudo que parece estranho, isto que acabo de anunciar tem na realidade uma explicação muito simples:  é que resolvi suicidar-me e o senhor foi (à falta de um parente ou amigo, que não tenho) a única pessoa a quem me ocorreu dar, de antemão, a dolorosa notícia.  Ao chegar esta à sua mesa repleta de avisos fúnebres e de convites de missa de 7º. dia, já meu corpo, se foi encontrado, estará repousando no lugar que lhe compete dentro da imensidão da terra, ao lado de outros corpos de indigentes anônimos e esquecidos do mundo, com os quais possivelmente me comunicarei nas noites de tédio infinito.

            Ainda uma hora atrás eu não sabia que hoje iria dormir em companhia dos mortos – hoje ou amanhã, conforme o tempo que levem para descobrir meu corpo franzino entre estes enormes eucaliptos e sob este cipreste que espero venha a cobrir um dia minha sepultura rasa.  Como tudo que tenho feito na vida, decidi realizar minha morte sem pensar muito tempo no assunto, mesmo porque sempre me pareceu que a morte não é tão importante quanto querem fazer crer os vivos, dada a nossa perfeita insignificância dentro do Universo.  A morte de um mosquito é tão importante quanto a  minha própria morte, digo-o sem falsa modéstia, e disso o senhor mesmo terá prova ao ficar sabendo do meu suicídio, que o afetará tanto quanto a morte de um dos milhões de perus sacrificados à véspera do Natal.  A comunhão dos mortos ainda pode ser uma realidade, pelo menos para os que nela creem piamente, à sombra da necrofilia católica ou que outro nome tenha;  a comunhão dos vivos, porém, ainda está por existir e com toda certeza não existirá nunca, dada a pouca cordialidade existente entre os homens, como de resto entre todas as feras de uma mesma espécie.

            Sei que é de praxe o suicida invocar grandes razões, e se possível belas, para justificar seu gesto tresloucado, como dizem – e sinto ter que decepcioná-lo não invocando nenhuma razão maior para explicar esta minha fuga prematura de um mundo que afinal é o único mundo com o qual podemos contar honestamente.  Se eu quisesse, certamente poderia encontrar uma dúzia ou mesmo duas de belas razões (metafísicas, econômicas, políticas, etc., etc.) capazes de justificar não apenas o meu suicídio como de toda a humanidade, nos dias que correm como em todos os tempos.  Prefiro, porém ser honesto e dizer que me mato pelo prazer único de matar-me, como existem casos de sujeitos que matam um desconhecido qualquer (não falando da guerra) pelo simples prazer de vê-lo cair morto ou para experimentar uma arma nova.  Sei que é raro isto acontecer, mas acontece; e o meu caso é exatamente um desses.  Enjoei de mim, como poderia ter enjoado da cara de um vizinho que nunca me tivesse feito mal em sua vida – e como não sou obrigado a viver de enjoo, cortei simplesmente o mal pela raiz, eliminando-me da minha vista.  É possível que num dia de primavera e com os bolsos cheios de dinheiro eu não pensasse em eliminar-me com tanta facilidade, mesmo porque o homem é suficientemente tolo  para contentar-se com pouca coisa, eterna criança que é; acontece que hoje não é primavera, nem tenho os bolsos abarrotados de notas de mil francos, de sorte que me sinto decididamente disposto ao suicídio, como o estaria para o homicídio também.  O certo mesmo seria chamar a este meu suicídio de homicídio, já que em mim eu mato o homem que não me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até simpático. 

A lua vem da Ásia foi recentemente montado por Chico Diaz sob forma de monólogo
 
             E já que falei em simpatia, devo deixar claro que morro tão antipático como sempre vivi, tomando-se por base naturalmente a opinião dos outros a meu respeito, não a minha própria.  A náusea que venho de sentir pelo meu corpo cheio de esperma, lágrimas e outros humores trágicos, é uma náusea que, bem ou mal, eu poderia superar com ajuda de alguma filosofia, desde que me dispusesse a praticar a necessária ginástica mental diante do espelho; ao passo que a antipatia que me inspiram os outros, e vice-versa, é algo que nasceu comigo e será hoje comigo assassinado, e que só pode ter explicação na perfeita dessemelhança existente entre mim e os meus semelhantes, entre o meu EU e o que se convencionou chamar de o homem comum. Todas as normas de educação que me tentaram impingir no cérebro tinham por objetivo convencer-me  de que eu e o meu vizinho éramos feitos da mesma massa e consequentemente da mesma qualidade de alma, havendo mesmo alguns exagerados que chegavam a proclamar que ambos  éramos filhos do mesmo pai celestial, a cuja imagem e semelhança havíamos sido feitos em nove meses; a experiência, porém convenceu-me exatamente do contrário, e não foi preciso muito tempo para eu descobrir que não passava de um pequeno monstro dentro da minha espécie, de alguém que não parecia nem sequer consigo mesmo nos diversos momentos e que já nascera fatalmente marcado para a solidão.  E como eu não podia andar metido num escafandro todas as horas do dia, embora já tenha exercido a profissão de escafandrista na penúltima guerra, deu-se o entrechoque fatal entre a minha multidão de almas e a alminha dos meus pseudo-semelhantes. Com consequentes ódios e ressentimentos de parte a parte, como ficou provado nas páginas do meu Diário Íntimo e que um dia ainda serão publicadas.  Nesse livro aparentemente triste, eu me situo na posição de antípoda de todos os seres com os quis vivo esbarrando-me pelas ruas ou mesmo dentro de casa – o que talvez em parte explique meu contínuo peregrinar pelos quatro cantos do mundo,à procura de outro polo no qual certamente  houvesse um outro antípoda à minha espera.

            Mas, sr. redator de assuntos fúnebres, nada mais tenho a dizer, por ora, neste in extremis que já se vai fazendo longo e sem graça , e que certamente será tido por V. S. na devida consideração, atirando-o simplesmente à cesta de papéis velhos.  Desconhecendo-me como o sr. me desconhece, é justo que não queira levar-me a sério e nem sequer se dê ao trabalho de procurar no mapa onde fica San Juan de la Sierra, onde dentro em pouco entregarei a alma ao Criador ou a quem lhe faça as vezes, como quem restitui um guarda-chuva que apenas lhe foi dado em empréstimo.  E para que o sr. me acredite em parte, e bem assim não se sinta de todo roubado em seu precioso tempo, deixo-lhe de presente o meu relógio de estimação, que pertenceu a um enforcado das minhas relações e marca todos os minutos da vida com uma precisão realmente cronométrica, apesar de também já ter sido enforcado com o seu dono.

            Funereamente seu,

                                               ...................................................................................


In: A lua vem da Ásia.  2 ed. José Álvaro, Editor, 1965.

          Campos de Carvalho (1916-1998) é um escritor que amo,  desde as crônicas que publicava n' O Pasquim na década de 70.  Foi difícil então achar edições de seus romances, e o primeiro que consegui foi deste A lua vem da Ásia, cuja primeira edição é de 1954. sua obra hoje é, felizmente, mais conhecida, e existem edições recentes de seus livros.  Para uma visão panorâmica e muito lúcida de seu legado, recomendo o excelente artigo de Nelson de Oliveira e Sinvaldo Júnior, publicado na também excelente revista online O bule, cujo link segue:  http://www.o-bule.com/2010/02/vinganca-do-icone-iconoclasta.html .

sexta-feira, 13 de julho de 2012

GIORGIO CAPRONI



APÓSTROFE
A UM IMPACIENTE POR EMBARCAR

       – Se acalme. Aonde acha que vai?
Uma certeza  lhe dou.
Jamais poderá chegar,
acredite, aonde já chegou.

                                   Tradução de Aurora Fornoni Bernardini


APOSTROFE
A UM IMPAZIENTE D’IMBARCO

         –  Si calmi.  Dove vuol mai andare?
Um ponto è assodato.
Lei non potrà mai arrivare,
mi creda, dove’è già arrivato.


 In: A coisa perdida: Agambem comenta Caproni. organização e tradução de Aurora Fornoni Bernardini. Ed. UFSC


segunda-feira, 9 de julho de 2012

UM POEMA DE SHELLEY


Percy Bysshe Shelley, retrato por Alfred Clint


Ave viúva pousada
Chorando por seu amado
Sobre um ramo regelado

Acima o vento gelado
Se arrasta sobre o riacho
A congelar-se lá embaixo

Folha alguma, a floresta, recobria
Sobre o solo nenhuma flor subia

E pouco movimento lá no ar
Só a roda de moinho a soar

                                                           Tradução de José Lino Grünewald

A widow bird sate mourning for her Love
Upon a wintry bough;
The frozen wind crept on above
The freezing stream below.

There was no leaf upon the forest bare,
No flower upon the ground,
And little motion in the air
Except the mill-wheel’s sound.

            In: Grandes poetas da lingua inglesa do século XIX. Organização e tradução de José Lino Grünewald.  Nova Fronteira, 1988.