sábado, 23 de fevereiro de 2013

PAUL ELUARD

A AURORA DISSOLVE OS MONSTROS

Ignoravam
que a beleza do homem é maior do que o homem

Viviam para pensar pensavam para se calarem
Viviam para morrer eram inúteis
Ocultavam a sua inocência na morte

Tinham posto em ordem
sob o nome de riqueza
sua miséria sua bem-amada

Mastigavam flores e sorrisos
Só encontravam um coração na ponta das carabinas

Não percebiam a injúria dos pobres
Dos pobres amanhã sem problemas

Sonhos sem sol tornavam-nos eternos
Mas para que a nuvem se transformasse em lama
Desciam deixavam de fazer frente ao céu

A noite do seu reino a sua morte a sua bela sombra miséria
Miséria para os outros

Esqueceremos estes inimigos indiferentes
Em breve uma multidão
Repetirá baixinho a chama clara
A chama para nós dois unicamente paciência
Para nós dois em toda a parte o beijo dos vivos.

                                                                 tradução de António Ramos Rosa


Eluard e Picasso, 1936.  By Man Ray


L’AUBE DISSOUT LES MONSTRES

Ils ignoraient
Que la beauté de l’homme est plus grande que l’homme

Ils vivaient pour penser ils pensaient pour se taire
Ils vivaient pour mourir ils étaient inutiles
Ils recouvraient leur innocence dans la mort

Ils avaient mis en ordre
Sous le nom de richesse
Leur misère leur bien-aimée

Ils mâchonnaient des fleurs et des sourires
Ils ne trouvaient de cœur qu’au bout de leur fusil

Ils ne comprenaient pas les injures des pauvres
Des pauvres sans soucis demain

Des rêves sans soleil les rendaient éternels
Mais pour que le nuage se changeât en boue
Ils descendaient ils ne faisaient plus tête au ciel

Toute leur nuit leur mort leur belle ombre misère
Misère pour les autres

Nous oublierons ces ennemis indifférents
Une foule bientôt
Répétera la claire flamme à voix très douce
La flamme pour nous deux pour nous seuls patience
Pour nous deux en tout lieu le baiser des vivants.


Paul Eluard.  Algumas das palavras.  Publicações Dom Quixote, 1977.
 

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Entrevista de Paulinho da Viola a Roberto Bozzetti na RBEC


Está online o 3º. número da RBEC – Revista Brasileira de Estudos da Canção, publicação online semestral dirigida pelo professor Lauro Meller da UFRN, e cujo corpo editorial tenho a satisfação de integrar. Este número traz uma entrevista que fiz com Paulinho da Viola em 2005 (defendi minha tese de doutorado sobre sua obra na UFF no começo do ano seguinte), à qual dei o título de “O Universo, ou o Infinito, desde o samba”.
Há ainda neste número artigos de diversos estudiosos dedicados a Tom Zé, música cabo-verdeana, Gilberto Gil, Iron Maiden, Pink Floyd, e outras preciosidades mais.  Vai o link para a revista, boa leitura!
http://www.rbec.ect.ufrn.br/index.php/RBEC,_n.3,_jan-jun_2013

ROBERTO PIVA

O VOLUME DO GRITO

Eu sonhei que era um Serafim e as putas de São Paulo avançavam na densidade exasperante
estátuas com conjuntivite olham-me fraternalmente
defuntos acesos tagarelam mansamente ao pé de um cartão de visitas
bacharéis praticam sexo com liquidificadores como os pederastas cuja santidade confunde os zombeteiros
terraços ornados com samambaias e suicídios onde também as confissões mágicas podem causar paixões de tal gênero
relógios podres turbinas invisíveis burocracia de cinza cérebros blindados alambiques cegos viadutos demoníacos
          capitais fora do Tempo e do Espaço e uma Sociedade Anônima
          regendo a ilusão da perfeita Bondade
os gramofones dançam no cais
o Espírito Puro vomita um aplauso antiaéreo
o Homem Aritmético conta em voz alta os minutos que nos faltam contemplando a bomba atômica como se fosse seu espelho
encontro com Lorca num hospital da Lapa
a Virgem assassinada num bordel
estaleiros com coqueluche espetando banderillas no meu Tabu
eu bebia chá com pervitin para que todos apertassem minha mão elétrica
as nuvens coçavam os bigodes enquanto masturbavas colérico sobre o cadáver ainda quente de tua filha menor
a lua tem violentas hemoptises no céu de nitrato
Deus suicidou-se com uma navalha espanhola
                             os braços caem
                             os olhos caem
                             os sexos caem
       Jubileu da Morte
ó rosas ó arcanjos ó loucura apoderando-se do luto azul suspenso na minha voz


Roberto Piva. Antologia poética.  L&PM, 1985.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

NA MEMÓRIA: AS LEITURAS, A ESCRITA, ALGUMAS DECEPÇÕES







Minhas duas primeiras experiências com criação de textos na escola não foram lá muito afortunadas.  Quero dizer, as duas que a lembrança reteve. Não me traumatizaram em absoluto, não mesmo, mas também não sei muito bem o que me fizeram, nem exatamente o que pensar delas – a não ser que foram deploráveis, é claro.  Quem sabe agora, se eu me puser a escrever sobre, eu acabe descobrindo.

*

            A primeira que eu  lembro foi de quando eu estava na segunda série.  Depois de  corrigidas a  professora falou das melhores redações, fez aqueles elogios e tal e – olhando para mim, com ar meio maternal,  meio zombeteiro –  entrou de elogiar o que eu tinha escrito, disse que a minha  poderia ter sido  a melhor redação de todas, era a que estava mais bem redigida, sem nenhum “erro” exceto... a flagrante inverossimilhança!
            É certo que ela não falou a expressão, mas é do que se tratava.  Senão, veja-se: a gente tinha que escrever uma istorinha (é, de lá pra cá, eu acho que desaprendi ortografia...), envolvendo um gatinho levado que ia roubar umas postas de peixe na geladeira.  Claro que  era obrigatório um final  de moral edificante que dissesse assim “não foi preciso castigá-lo, pois ele já teve o castigo merecido!...” Pois bem, desenvolvi o tema, lembro perfeitamente de não ter tido a menor dificuldade em preencher o número mínimo de linhas (o que parecia ser sempre a grande tortura da maioria dos colegas), e fiz uma narrativazinha na qual eu contava que depois de ter pego com sucesso a primeira posta, o pobre gatinho deixou cair o prato que estava na geladeira,  já que... a segunda posta o havia mordido! Com o susto, tudo caiu ao chão, tudo se quebrou, o gatinho escapuliu e ninguém pensou em castigá-lo porque “ele já teve o castigo merecido”. 
            Ouvi que os colegas riam ao meu redor, e na mesma hora desconfiei de que havia algo de errado com a palavra “posta”, que eu  tinha escrito  sem ter noção precisa do que seria.  De fato, quando a professora, sempre rindo muito, explicou que era impossível que um uma posta de peixe mordesse o gatinho, é que fui entender que diabos era “posta”, palavra que nunca ouvira, não se usava na minha casa, onde, aliás, comia-se muito pouco peixe.  Lembro que tentei argumentar – eu também acabei rindo um riso amarelo – que eu achava que “posta de peixe” era uma porção de peixes num recipiente  esperando para serem limpos, como eu via minha avó fazer com as sardinhas antes de fritar. Um desses peixes, quem sabe, poderia ainda estar vivo, “nas vascas da morte” (não, a expressão também não me ocorreu, nem poderia)  Mas não me fiz entender.  O certo é que nada disso não me doeu não, tirando o desapontamento de poder ter feito algo perfeito, mas ter tido uma falha que acabara pondo  tudo a perder.  Me lembro que a trapalhada me chamou desde logo a atenção para a importância dos dicionários, tanto que ainda hoje me é muito nítido  que a primeira coisa que fiz ao chegar em casa foi abrir um e procurar lá a malfadada palavra.






*
          
             Uma segunda experiência  me foi bem mais desgostosa do que essa.  Já era na série seguinte, no começo do ano letivo.  Sei  que tínhamos de fazer aquela manjadíssima redação  sobre as férias, e eu entabulei  uma narrativa de um passeio através de uma trilha na mata, na qual dois irmãos se embrenhavam, descobrindo uma porção de coisas novas.  Morador então de Copacabana, onde também ficava a escola, que lá está até hoje, a Dr. Cócio Barcelos,  na esquina da Av. Copacabana com a Barão de Ipanema, meus pais estavam em vias de construir  esta casinha aqui no brejo onde acabei vindo morar depois de tantos anos, e vínhamos muito para cá, hospedávamo-nos na casa de um parente, enquanto eles tentavam fechar negócio.  Lembro que eu começava então a andar por esses matos e que num dia daquelas férias  andei muito e muito, até a noite começar a cair.  Lembro até hoje com nitidez que o local que me inspirara era então uma picada mato adentro, hoje transformada numa rua aqui perto de mim. Enfim. Ficcionalizei algumas dessas coisas e terminei minha redação com um dos irmãos falando para o outro: “Vamos voltar,  porque as primeiras estrelas já brilham no  céu...” com reticências e tudo.
            Pra quê! Elogios à minha singela estorinha até que vieram, mas o principal estava na pergunta da professora: “Muito interessante o final, mas: de onde você  copiou?”  Gozado que eu tenho a impressão, estou certo que a tive mesmo ao escrevê-la,  que a frase teria o seu tanto de artificiosa e entraria ali como um efeito especial.  Mas a certeza que eu tinha disso me enchia de orgulho, por ter conseguido encaixar de forma tão justa uma frase que me parecia tão bonita, ao final de um passeio de um dia que findava, as estrelas indicando que anoitecia.  A ideia grosseira de que eu a “copiara” me chocou.  Tenho a nítida certeza: eu fiquei desconcertado, flagrado num delito que não cometera.  Defender-me disso, como é difícil!  Não adiantou dizer que “de lugar nenhum”, a professora elogiava e, na mesma medida, pra não perder a mão “pedagógica”, me censurava.  Não lembro quanto tempo levei para desistir de me defender.  Lembro com muita clareza que fiquei puto.  Não humilhado, mas com raiva do que me parecia ser alguma coisa descabida.  Não pensei nestes termos, mas era provável que sim, que eu tivesse lido aquela frase em algum lugar, eu lia muito, o imaginário daquele texto estaria certamente impregnado de A ilha perdida, da Senhora Leandro Dupré, de Coração, talvez mesmo de Cazuza, de Viriato Correia, dos livros de Lobato, quem sabe mesmo de Pinóquio. Era minha maneira de dialogar com minha rede de leitura (repito: claro,  não formulei nesses termos).  Talvez ainda a tivesse ouvido  num filme, o que seria menos esperável, pois eu não ia tanto a cinema assim, dependia de meus pais me levarem, e televisão talvez ainda nem tivéssemos em casa – era primeira metade da década de 60.
            Não lembro sequer se comentei o assunto em casa, acho que não. De qualquer forma, o  que no caso das postas ferozes de peixe fora um oportuno corretivo – se bem que zombeteiro – , se transformava aqui,  nessa  desconfiança que lançava a pecha de fraude sobre o que fora um esforço de poetizar o relato já de si ficcionalizado, num estranho cerceamento ao exercício da leitura em seu livre trânsito para se transformar em escrita .  Mas penso estar seguro do que digo: essas coisas creio que não chegaram nunca a me doer em excesso.  E assim como minha atenção aos dicionários foi despertada por aquele primeiro caso, talvez este segundo tenha me chamado atenção para a desnecessidade de se “poetizarem” textos que podem perfeitamente dizerem o que dizem  sem serem adornados, enfeitados.  Uma lição cabralina, eu diria, no torniquete da repressão magisterial.  Talvez eu force um tanto a barra aqui, procurando sentido para o que provavelmente   não tenha, mas acho que sempre desconfiei de linguagem adornada, lantejoulada.  Seja como for, decorrente disso ou não, é certo que desconfio sempre,  quando identifico “poetizações”,  se não da honestidade de quem escreve (como um plagiário criminoso), daquilo mesmo que está escrito.



*


          Talvez cumpra dizer que  a própria experiência de leitura, digo: do texto literário mesmo, sempre teve para mim o seu tanto de deceptivo, e não exatamente no sentido de que fala Barthes. E sim deceptivo porque manco, porque a enorme gama de prazer que sempre experimentei ao ler foi via de regra acompanhada de uma dimensão de dor, de medo, de raiva, de frustração, de sentimento de recusa, o que tinha a ver com a própria obra lida.  O primeiro livro que li, aos seis anos, Marcelino pão e vinho, uma tenebrosa estorinha infantil de grande sucesso na  época da ditadura franquista, fazendo jus a toda a morbidez do mais escuro da alma espanhola, para mim foi emblemático do que muito tempo depois formulei assim: o primeiro livro lido me aproximou para sempre da literatura e me afastou para sempre do catolicismo. A essa dimensão dúplice, a que falta plenitude (acho mesmo que louvo essa falta)  é o que eu chamo um certo caráter  “manco”. Outros exemplos: pouco depois de Marcelino  li o Pinóquio de Collodi, não aquela versão adocicada do filme da Disney (que até hoje me parece insuportável), e não só senti medo concretamente em inúmeras passagens (como não temer aquele mundo de salteadores, vigaristas, como o gato cego e a raposa? e a terra para onde os meninos fugiam no meio da noite e onde acabavam transformados em burricos?  e a “bondosa fada” morta pela decepção que Pinóquio lhe causara?), bem como não consegui me conformar que ele tivesse que passar por todas as privações e humilhações por que passou para se tornar “um menino”, em vez de continuar singular na sua inteireza de boneco de madeira, podendo reincidir sempre em suas diabruras.  Em Robinson Crusoe, na versão adaptada por Lobato (a integral só vim a ler muito depois)  nunca me pareceu muito aceitável que Robinson  deixasse a ilha para tornar à civilização, no que me parecia – e também a ele, afinal, que saíra espontaneamente para se fazer  marujo – a existência desenxabida de antes.   E assim sucessivamente, eu diria. Nesse sentido, acho que só a maçã cravada entre as costelas de Gregor Samsa fez com que eu perdesse o sentimento deceptivo para perceber – aceder ao, diria o jargão – o caráter em última análise simbólico do texto literário.  Mas aí eu já tinha 15 anos. Penso que aqui já seria o deceptivo de Barthes.


*


           Mas houve um caso diferente que marcou num breve tempo etc: acho que agora eu já estava no 3o.  ano ginasial, o correspondente hoje à 7ª. série. Foi um ano terrível, o da minha primeira reprovação na vida escolar (houve outra, já no ensino médio), no qual o meu único triunfo foi um prêmio em  redação.  Não tenho a menor ideia de qual era o tema, lembro que ganhei uma alentada antologia de textos em verso e prosa – não, não era a do Fausto Barreto e Carlos de Laet , embora fosse volumosa – que muito me gratificou e da qual muito me servi em minhas descobertas, encantamentos e, claro,  recusas literárias.  O professor era um homem de meia idade, que para nós, alunos, parecia velhíssimo, chamava-se José Orindes, ou era esse o nome  que eu conseguia decifrar.  Ele fez um simpaticíssimo discurso ao meu texto e a mim, e disse que talvez fosse esperável que ele me desse de prêmio o livro mais lido e comentado do momento, o best-seller de José Mauro de Vasconcelos, Meu pé de laranja lima.  Fez uma pausa e disse que ele tinha lido e achava  que a qualidade não fazia jus à fama. Chegou a ser quase apupado pelos meus colegas  que tinham lido o livrinho;  eu, que também o tinha lido e achado sem graça, muito piegas – embora me agradasse a ambientação no bairro de Bangu, que era um esplêndido time de futebol naquela época, pelo qual meu irmão torcia – adorei ver que era possível um professor contrariar  tão decisiva e claramente a opinião geral de uma turma, ainda mais de pré-adolescentes folgados e barulhentos, como deviam ser os de uma escola pública em  Copacabana.  E mais, que dissesse, rindo e contemporizando, o parêntese e  as palavras finais do discurso-elogio que me proferia: “Está bom, gente, é só uma opinião pessoal.  De qualquer maneira, acho que será mais proveitoso o livro que estou dando, porque são vários textos de muitos autores diferentes.” O acerto do velho professor foi decisivo.



*
           Muito mais estranho... aliás, acho que muito mais estranho do que a maioria das coisas que passei na vida, foi o 2º. lugar  que tirei num concurso de âmbito estadual, quando  eu estava cursandoo  4o. Ginasial – agora no Colégio Pedro Bruno, em Paquetá – num concurso que tinha por tema a ideia de “conciliar”... neste caso o estranho é a impressão que eu tenho de que  à medida que a história  se desenrolava as coisas iam ficando mais obscuras, incompreensíveis, sem sentido e, tentando olhar de hoje, não tenho quase que nenhuma nitidez sobre os fatos e os não-fatos que cercaram esse episódio.   Foi um prêmio estadual, quero dizer, no âmbito da secretaria de educação, mas tenho a impressão de que de alguma maneira havia um vínculo qualquer com o ministério da justiça.  O ano era 1971, ditadura Médici.  Lembro que o diretor da escola de Paquetá foi comigo e com meu pai à solenidade de premiação,  e os dois, que eram amigos e tinham veleidades de esquerda, riam meio contristados e meio divertidos, falando no Gaminha,  que o “Gaminha vai estar lá”.   Nem de longe eu entendia o que seria aquilo de Gaminha, até porque – penso hoje – talvez eles não quisessem talvez me decepcionar ante a magnitude do prêmio a mim atribuído.  Lembro que na hora da solenidade fiquei aliviado por não ter ganho o primeiro lugar, caso em que eu teria de ter feito um discurso e tê-lo lido.  Lembro que os três melhores trabalhos foram lidos por um locutor oficial,  e que  procurei prestar atenção em especial no primeiro colocado, para entender no que ele seria melhor do que o meu.  Percebi de cara a diferença: o primeiro lugar era mais lúcido quanto ao real sentido do prêmio e da proposta que o movera.  Não apenas tinha uma estrutura dissertativa propriamente dita – o meu não passava de anotações soltas, um tanto líricas  e fragmentárias em torno da palavra “conciliar” – como caprichava ao falar da  real necessidade de construir uma nação em torno de um ideal de conciliação.  Quer dizer – mas isso não ficou claro para mim logo de imediato, ficou apenas a sensação de que eu não tinha entendido tão bem a proposta – o concurso buscava sem dúvida fazer com que a garotada, a juventude, eu, nós, embarcássemos na retórica oficial do poder ditatorial, que travava uma luta sanguinária longe do alcance da opinião pública contra a resistência armada (a repressão chamava de  “terroristas” e pregava fotos dos rostos de procurados em locais de grande circulação) e não estava aí para brincadeira: modestamente, eu poderia dar a minha contribuição entre os corações e mentes cooptados, era o que estava impresso de fundo, mas não estava escrito com todas as letras. 
            Agora, o que disso tudo era claro para mim na hora em que eu lá estava, num salão de repartição pública  em um prédio no centro do Rio?   (Não, não era no Palácio Capanema, o que reforça a minha impressão de hoje de que o prêmio tinha alguma conexão com o ministério da justiça da ditadura).   Nada me era claro.  O que me fez pensar nessas coisas todas foi só o nome “Gaminha” e o sussurro que entreouvi – do meu pai? de seu amigo,  o meu diretor? – que ele estaria lá e que ele era o ministro da justiça. Foi isso que acabou a posteriori rebobinando  esses acontecimentos que tento ordenar.  Gaminha era o sinistramente carinhoso apelido de Gama e Silva, ex-reitor da USP, onde fizera carreira dedurando colegas professores,  e que chegara a ministro da justiça, tido e havido por muitos como a mão que redigiu o AI-5.  Sim, lá havia um senhor idoso que parecia presidir a cerimônia e ouvia eu o murmúrio de que era o Gaminha, mas não creio que fosse ele mesmo, embora de fato estivesse no papel de a principal autoridade ali.  Vou ao Google agora,  pesquiso retratos da figura e não, não me acende em nada a lembrança. Além do que, também me informa o Google, o ministro da justiça da ditadura no período Médici era Buzaid. 
Repugna-me escrever esses nomes aqui.  O que não era claro então, mas me inquietava ao perceber essas conversas veladas, essa solenidade pomposa (o autor da redação que ficou em primeiro não apenas teve que ler um discurso especial para a ocasião, como ainda vestiu ridículas luvas brancas para assumir seu papel, o que aumentava meu alívio quanto ao de que me livrara), essa coisa estranha de retórica grandiloquente citando a toda hora a conciliação e o papel das forças armadas e o destino grandioso da pátria?  Refeita a pergunta pela embocadura negativa, a resposta é a mesma: nada me era claro. Eu era leitor de jornal, era leitor do Pasquim, há pelo menos uns dois anos eu tinha cada vez maior interesse pelas coisas ao meu redor, as visíveis e as ocultas, algumas perguntas já naquela época tinham ficado sem resposta para mim, agora lembro delas e me são dolorosas, misturam-se com o que eu já ouvira o diretor da escola mencionar mais  de uma vez sobre uma querida professora de português que eu tivera em Paquetá, uma morena doce e de feições que me  lembravam  Nara Leão e que abandonara as turmas  às pressas, ela gostava tanto de mim e do que eu escrevia, certa vez captei uma conversa que já bastante tempo depois me levou a concluir que seu marido estava na clandestinidade e tinha sido preso ou morto, me lembro que falavam agitados o professor de educação física que era muito seu amigo, ela e o diretor da escola, isso na ponte de embarque na Praça Quinze, e ela não entrou na barca, voltou acompanhada não lembro de quem, e nunca mais a vi, nunca mais ela retomou seu lugar, chamava-se Maria Helena.  Algumas vezes ainda, no tempo que passei na escola em Paquetá perguntei uma ou duas vezes por ela, nunca obtive nenhuma resposta conclusiva.  Em parte agora, em parte então,  tento juntar sem sucesso essas duas partes, tentava achar algum sentido em estar ali naquela cerimônia que tinha o seu de grotesco, falando – a troco do quê? – em conciliar, conciliação, penso que tive a intuição certa e não deixo agora de sentir um certo orgulho por ter feito um texto tão fragmentário, tão descosturado e que certamente por seus traços “poéticos” (mas copiados de quem?)  conseguira ir tão longe na premiação, esses acontecimentos agora que relato aqui continuam desconexos mas fazem seu sentido, mais do que o aparentemente pacato cotidiano que vivíamos naqueles anos, TV e mais TV, as redes de supermercado cada vez mais invasivas, o hábito de não se poder falar nada às claras, cachorros mortos nas ruas, policiais vigiando, o sol batendo nas frutas, sangrando etc.






sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

FERNANDO PESSOA


Vitral de Almada Negreiros



HORA ABSURDA

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia... e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p’la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como os leitos para as naus!... Absorto...
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não haverá mais nos candelabros..
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar
E a ideia de a tua voz soar a lira de um Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fumdiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de  um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo?  Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque –
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã – como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema – Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

Fernando Pessoa.  Obra poética.


Retrato de Fernando Pessoa por Almada Negreiros



terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

TRÊS POEMAS DE NÁDIA BARBOSA


<1.  para Anna

Quando o sonho trouxer o arco-íris
quando cores e curvas,
quando a chuva do passado
mandar o arco-íris,
o tesouro, é certo, estará
                                   sob teus olhos
em que se escondem a água
                                   e a luz


<2.                          Imagem cabralina,
severina
a cidade, o Rio
Capibaribe é aqui.
O cão sardento late pro céu,
Pro azul cabralino
o céu
cães sem plumas sem aprumam
no ocre diagonal,
casebre de açafrão,
paisagem oswaldiana,
e cumprem sinas
severinas:
barro quente na barriga,
bem aqui,
aqui ao lado,
aqui em cima.
E cospe orelha
E come fígado
E dá no pé
Sertão, Pavão, Formiga
adentro.

É Lei do homem
é fato.


<3.  A CARTA
para Sérgio Sant’Anna

Um dia li uma história de uma moça que escrevia uma carta para o amante.  Ao longo da história, pareceu-me que o amante era imaginação da moça, e ao final da história, tuido me levou a crer que a própria moça era também imaginação.  Acontece que havia um desejo tal, na história narrada, na carta da moça, que me impressionou.  A moça se excitava com a escritura que se fazia. Falava em aranhas e em cobras.  Lembrava do único encontro que teve com o amante, uma trepada dentro de um carro, nomeio de um matagal.  Falava em solidão.  Em companhia de um gato, nunca excessiva.  Falava de medo.  Em transgressão, a carta não podia ser endereçada ao domicílio do amante.  Uma história de amor.  falava-se em espanto, em romper toda a capa de resistência, de civilização, para obrigar o amante a pronunciar palavras gritantes que até os mais obscenos hesitam em dizer  ou escrever.  Palavras que se agarravam àquela carta, a querer reter,na memória, o encontro.  Único, que só poderia se dar com alguém que estaria partindo.  A carta falava em cansaço, do esforço em não deixar escapar o mínimo que fosse.  A carta que, enquanto era escrita, sua escrivã se acariciava, ou melhor, enquanto sua escrivã se acariciava a escrevia.  “A carta, esse gênero anacrônico que , para se completar, exige um tempo, um espaço, uma expectativa e que torna as distâncias reais.”  Essa carta que circula no deserto das pessoas, eu escrevi.


Nádia Barbosa. Meio-dia: poemas.  Rio de Janeiro, 2009.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

ANNE SEXTON

QUANDO O HOMEM PENETRA A MULHER

Quando o homem,
penetra a mulher
como as ondas quebrando-se
e mordendo a costa,
outra vez, e outra vez,
e a mulher com prazer abre a boca
e seus dentes aclaram
como o alfabeto,
Logos surge ordenhando um astro,
e o homem
dentro da mulher
forma um nó,
então eles nunca
serão separados outra vez.
E a mulher
monta uma flor
e engole seu talo
e Logos surge
e libera seus rios.

Esse homem
e essa mulher
com fome dupla,
tentaram ultrapassar,
e por um tempo conseguiram,
as cortinas de Deus,
e é pela perversidade
d’Ele que
o nó se desfaz.

WHEN MAN ENTERS WOMAN
When man
enters woman,
like the surf biting the shore,
again and again,
and the woman opens her mouth in pleasure
and her teeth gleam
like the alphabet,
Logos appears milking a star,
and the man
inside of woman
ties a knot
so that they will
never again be separate
and the woman
climbs into a flower
and swallows its stem
and Logos appears
and unleashed their rivers.

This man,
this woman
with their double hunger,
have tried to reach through
the curtain of God
and briefly they have,
though God
in His perversity
unties the knot. 


Tradução de Raphael Soares

Em seu excelente blog I-Traduções e coisas sobre tradução, que recomendo, e cujo linl aqui vai