domingo, 31 de março de 2013

BANDEIRA TRADUZ BAUDELAIRE

Retrato de Baudelaire por Gustave Courbet, 1847-48

EPÍLOGO

De coração contente escalei a montanha,
De onde se vê – prisão, hospital, lupanar,
Inferno, purgatório – a cidade tamanha,

Em que o vício, como uma flor, floresce no ar.
Bem sabes, ó Satã, senhor de minha sina,
Que eu não vim aqui para lacrimejar.

Como o amásio senil de velha concubina,
Vim para me embriagar da meretriz enorme,
Cujo encanto infernal me remoça e fascina.

Quer quando em seus lençóis matinais ela dorme,
Rouca, obscura, pesada, ou quando em rosicleres
E áureos brilhos venais pompeia multiforme,

– Amo-a, a infame capital! Às vezes dais,
Ó prostitutas e facínoras, prazeres
Que nunca há de entender o comum dos mortais.


Postal de café parisiense, final do século 19

EPILOGUE
Le coeur content, je suis monté sur la montagne
D'où l'on peut contempler la ville en son ampleur,
Hôpital, lupanar, purgatoire, enfer, bagne,


Où toute énormité fleurit comme une fleur.
Tu sais bien, ô Satan, patron de ma détresse,
Que je n'allais pas là pour répandre un vain pleur;


Mais comme un vieux paillard d'une vieille maîtresse,
Je voulais m'enivrer de l'énorme catin
Dont le charme infernal me rajeunit sans cesse.


Que tu dormes encor dans les draps du matin,
Lourde, obscure, enrhumée, ou que tu te pavanes
Dans les voiles du soir passementés d'or fin,


Je t'aime, ô capitale infâme! Courtisanes
Et bandits, tels souvent vous offrez des plaisirs
Que ne comprennent pas les vulgaires profanes.



Manuel Bandeira e o pintor Cícero Dias, Paris, 1957

Passeando por meu volume de Poesia e prosa de Manuel Bandeira, deparei-me com esta  tradução do poema de Baudelaire.  Julgo-a excelente, não me lembrava de tê-la lido antes, quis trazê-la para meus leitores.

sábado, 23 de março de 2013

PAULINHO DA VIOLA


Algo de muito especial ocorre então.

Algo de muito especial ocorre então.
E não à linha da superfície, como
pode parecer a princípio.
Para alguns desses homens, o
conhecimento do instrumento se deu
muito antes: quando ele ainda era
madeira.
Ou mais: quando era uma árvore,
que descia chão a dentro até os
úmidos e escuros segredos da vida – o
mesmo chão que os pés do menino
um dia pisou.
E ainda pisa. 

(texto de Paulinho da Viola, em seu disco de 1978)

Ilustração de Talarico

sábado, 16 de março de 2013

CESÁRIO VERDE


Ilustração de Talarico



DESASTRE
Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

.......................................................................

Findara honrosamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!"

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!

Um fidalgote brada e duas prostitutas:
"Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!"
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.

.......................................................................


O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.

Anoitecera então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio"?

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,
Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! -
Os filhos naturais à roda dos expostos... 

O Livro de Cesário Verde.  Nova Aguilar, 1976.

terça-feira, 12 de março de 2013

AU AU PRA LUA

http://ninonavarro.bandcamp.com/track/au-au-pra-lua



Alto e contínuo
alta madrugada
ouve o menino
um uivo pra Lua
alta lá no céu
a alva Lua
abana a cauda
pros cães da rua
cantarem em coral
au au au
au au pra Lua
au au
pra Lua...


Ilustração de Talarico

          Esta canção, cantada por Nino Navarro (clique no link acima, leitor) , foi composta há uns trinta anos.  Feita para uma peça musical infantil, a  letra é de minha autoria e a melodia, de Fatima Lannes.  Nino está lançando agora seu segundo CD, Guanabara City, disponibilizado na internet (pelo link acima se vai ao todo do trabalho). O CD pode ser baixado completo, incluindo o encarte e as letras das músicas, e o preço é estipulado por quem baixar..  Passo a palavra ao próprio Nino:

O esquema é o seguinte: você paga quanto você quiser (incluindo não pagar nada). O bandcamp é um site americano e o preço do Cd está em dólar. Você pode pagar com cartão de crédito via paypal. O cd inteiro foi todo custeado por mim e, assim, ele é completamente independente de qualquer selo, gravadora ou patrocinador. Assim, o dinheiro da venda vem diretamente para mim, com uma pequena porcentagem para o bandcamp e para o paypal, simplesmente pelo serviço da venda. Não há nenhuma ligação com os direitos autorais da obra.

Atenção: sinta-se livre para pagar ou não. É só ir no link do "Digital Album", depois "Buy Now" (tem escrito "name your price" - isto é, diga o seu preço") e ali você coloca o valor em dólar, como eu expliquei. Se você quiser baixar de graça, basta colocar 0 e é isso!

Atenção: esta é a versão digital do álbum. O "Cd Físico" será lançado só mais para frente, provavelmente em abril.”


            Há ainda uma parceria minha com Nino no CD, a faixa “Antonio Biá”, poema do meu livro Firma irreconhecível, que inclusive já postei aqui http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2011/03/antonio-bia.html
 Nino fez o recorte que quis na letra ao musicá-la.  À exceção ainda de uma parceria dele com Marcelo Diniz, todas as demais canções são  de autoria do próprio Nino.   É um trabalho todo de excelente qualidade, o que me deixa muito à vontade para, além de tudo,  dizer que  Nino é meu filho mais velho, com Fatima Lannes, minha parceira em “Au au pra Lua”. Convido os leitores ouvintes.
            



sábado, 9 de março de 2013

FERNANDO PESSOA

A OUTRA
Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejei...
Não deixe a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Possamos nós recomeçar
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra.
Les amants, Magritte

domingo, 3 de março de 2013

ESTA DATA, MAIS UMA VEZ

agora
que o tempo mais
se adianta
e a vela que nunca
apago
assopra
sobre o lesto
cadáver que a velas
pandas se
me acerca
eu mais velho
canto: 1
mas conto:
10
e também a mão
como a de quem rouba, lépida
como que quer esquecer-se
boba
sobre coxas
que franqueiem ainda
o úmido calor
da vida

sexta-feira, 1 de março de 2013

AH, UM SONETO... DE JAYRO JOSÉ XAVIER

Passado é outro nome de memória
e é vertical no espaço, poço fundo.
Quem debruça na borda deste outubro
colhe avencas-de-maio, aqui e agora.
O que Amanhã supomos não se move
em nossa direção.  Nem vamos rumo
senão do que é presente e nos mergulha
na lembrança, e diremos ser história.
A estrada é que perpassa, não a hora.
Coevos do que fomos e seremos,
chamemos de paisagem, não de tempo,
esse fluir sem fim que nos devora
− ou chamaremos de vento, e chamaremos
os ramos destas árvores de remos. 

Jayro José Xavier. Poemas. 2007.