domingo, 30 de junho de 2013

AH, UM SONETO... DE RUY ESPINHEIRA FILHO


SONETO DA CHUVA E DA VOZ

            a Miguel Sanchez Neto

 

Desde que despertei está chovendo.
Aliás, desde antes, pois, ainda dormindo,
claramente escutei chuva caindo
longe, por trás de um sonho: meu pai lendo,

para mim, Hora Absurda; ainda estou vendo
seu rosto em luz antiga.  Quase findo
é o dia, agora, e a chuva caindo, caindo...
E em minha alma meu pai ainda está lendo.

Não é, como no poema, um ouro baço
que chove aqui: é só água do outono
que o calendário traz nos fins de março.

E a voz prossegue.  E, num sonho sem sono,
me consola de mim nesse cansaço
de outonos falsos, sombras, abandono.

 

In: Estação infinita e outras estações (Poesia reunida). Bertrand Brasil, 2012.

 


sábado, 22 de junho de 2013

ARNALDO ANTUNES


 

Eu apresento a página branca.
 

                              Contra:
 

Burocratas travestidos de poetas
Sem-graças travestidos de sérios
Anões travestidos de crianças
Complacentes travestidos de justos
Jingles travestidos de rock
Estórias travestidas de cinema
Chatos travestidos de coitados
Passivos travestidos de pacatos
Medo travestido de senso
Censores travestidos de sensores
Palavras travestidas de sentido
Palavras caladas travestidas de silêncio
Obscuros travestidos de complexos
Bois travestidos de touros
Fraquezas travestidas de virtudes
Bagaços travestidos de polpa
Bagos travestidos de cérebros
Celas travestidas de lares
Paisanas travestidos de drogados
Lobos travestidos de cordeiros
Pedantes travestidos de cultos
Egos travestidos de eros
Lerdos travestidos de zen
Burrice travestida de citações
água travestida de chuva
aquário travestido de tevê
água travestida de vinho
água solta apagando o afago do fogo
água mole sem pedra dura
água parada onde estagnam os impulsos
água que turva as lentes e enferruja as lâminas
água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções
insípida, amorfa, inodora, incolor
água que o comerciante espero coloca na garrafa pra diluir o whisky
água onde não há seca
água onde não há sede
água em abundância
água em excesso
água em palavras


Eu apresento a página branca.

A árvore sem sementes.

O vidro sem nada na frente.

 
                                  Contra a água.

 

 

 

 Arnaldo Antunes. Tudos. Iluminuras, 1990.

domingo, 16 de junho de 2013

NEGOCIAÇÃO


                                     A Marcelo Diniz

 

Em nome de
à revelia
suponho que
mais valeria
que nada houvesse
a ser pleiteado
 
cavalo baio
neta calada
combina bem
com a boca
fechada pra bala
no aço balanço
como um pau
de arara provisória
mente desativado

circulando
circulando
disse o filósofo
PM(ri)patético...

 


quarta-feira, 12 de junho de 2013

O DIA EM QUE FAUSTÃO ME PARABENIZOU POR CONTA DE AÉCIO


        Se o desavisado leitor bateu com os costados aqui neste blog, achando que o Faustão em questão é o Fausto Silva, devo dizer que pode xingar e desistir: não, querido e incauto leitor, o Faustão aqui não é o Silva das tardes domingueiras na Globo e,  naqueles tempos em que se passa a breve estorinha que vou contar,  ele era apenas o perdido na noite paulistana.  E aqui acaba a referência a ele, tchau.  Já o Aécio é ele mesmo, o Aébrio Neves, dublê de bon-vivant e de  atual presidente do PSDB, dublê nada, um talento múltiplo pra coisa alguma  que não seja estar em evidência.  E a gente ia começar a saber disso  justo por aqueles dias, em torno do enterro do avô dele, o Tancredo, quando sua  figura chorosa comovia quem está sempre disposto a se comover por qualquer coisa (aliás, o que o avô dele fez na vida, além de ter herdado a caneta do Getúlio e ter morrido pra nos deixar nas mãos de Sarney?). Mas tergiverso. O ano devia ser 1985.  1986, talvez?  Tínhamos passado pela ditadura, depois, com a derrota da emenda das eleições diretas para presidente, passáramos também  pelo trauma de ter que aturar a costura pra botar Tancredo no poder, enfim, a decepção maior de todas de ter tido que engolir mesmo Sarney na presidência.  Listando essas coisas aqui me toco de que no Brasil, se bobear, nos sentiremos sempre numa espécie de “ressaca cívica”.

            Bom, mas o assunto é outro. Sem mistérios e sem mais adiamentos: o Faustão em questão  é Fausto Wolff,  acho até que mais merecedor do sufixo de aumentativo ão do que o outro, pois tinha fácil uns dois metros de altura.  Faustino Wolffenbüttel, ou Fausto Wolff,  era um combativo jornalista, bom romancista também (Matem o cantor e chamem o garçom, O equilibrista pede desculpas e cai, além do infantil Sandra na Terra do Antes são ótimos livros) que integrara a turma do Pasquim dos tempos heróicos e que fora um dos últimos a abandonar o barco – naqueles últimos tempos ainda criara o impagável colunista social e escroque Natanael Jebão.


Eu me aproximara de Wolff quando, atrás de capa  e ilustrações para o que seria meu primeiro livro, Pouca vergonha, que acabei não publicando, fui bater um dia, em 1984, na redação do velho hebdomadário – já na Rua da Carioca, sua última sede. Lá estava a  sua figura imensa, que me acolheu e me ouviu com muita delicadeza,  embora eu mesmo  não soubesse com precisão o que queria;  eu  pensava conseguir, para ilustrar meu livro,  umas figuras sacanas, uns desenhos  a bico de pena que eu me lembrava de ter visto, por conta de sei lá  qual escaninho da memória,   em livros antigos, umas     figuras de anjos, de crianças em jogos de diversão e de ambíguas e sugestivas posições sexuais, uma mescla de candura e safadeza, que de certa forma presidia o espírito daqueles poemas dos meus vinte e poucos anos, e onde  o neocaretismo insuportável de hoje veria indícios indisfarçáveis de pedofilia.  Fausto me disse que achava que tinha, sim, o que eu procurava, e se colocou inteiramente à disposição para me fornecer o material, que ele mesmo recortaria e que eu montaria da forma que achasse melhor para o que pretendia.  Muito gentil, muito solícito, muito afetuoso, me deu telefone e endereço para que eu ligasse e, assim que ele estivesse de posse desse material – acho que ele desencavaria  lá mesmo no Pasquim –,  eu marcasse de pegar com ele.  Assim foi feito alguns poucos dias depois, quando me recebeu em seu apartamento, com várias gravuras, melhores do que eu poderia supor, e travamos uma certa camaradagem.  Saímos dali para beber uns goles e falar da vida, não lembro onde, num boteco qualquer, acho que em Ipanema.  Faustão bebia em doses industriais, eu jamais seria capaz de acompanhá-lo, mas para um pontapé inicial no que parecia ser uma das de sempre para ele longa noite etílica, travamos, se não uma amizade, longe disso, uma cordial camaradagem, que de vez em quando se renovava ao sabor de encontros ao acaso.

            Apesar de nosso pouco contato, não deixa de me comover de certa forma a lembrança  de que, ao ser homenageado com o título de Cidadão Carioca pela Assembléia Legislativa, Faustão fizesse questão de me mandar convite, de dizer que contava comigo lá na sessão solene e, uma vez cumprido o prometido, demonstrasse ter ficado  feliz da vida que eu tivesse ido.  Ficou feliz da vida com todos os que lá estivemos. 

            Mas agora estamos em 1986, eu trabalhava no Centro do Rio, na agência principal da CEF e ia, em horário de almoço, pela Rua da Carioca.  Eis que em frente ao Bar Luiz (aliás, onde mais?), me surge a enorme figura do Faustão a me abrir os braços e a me envolver num abraço enorme a clamar “Parabéns! Parabéns, meu jovem!”  Eu estava com alguém -,não lembro quem - , ele também vinha acompanhado não sei de quem.  Nossos acompanhantes olhavam o efusivo cumprimento sem entender; como, aliás, eu também.  Faustão aumentava o volume e o entusiasmo dos parabéns, além de ficar cada vez mais vermelho de tanto que ria.  Quando resolveu explicar não o fez para mim nem para os que nos acompanhavam, e sim para a Rua da Carioca inteira, que abarcava com o olhar e com uma voz que se projetava por longa extensão.  Dizia mais ou menos isto: “Aproveito para parabenizar você, um jovem como o valoroso jovem que vai presidir a empresa em que você trabalha, afinal a  Caixa Econômica Federal  agora terá no seu comando um jovem de grande valor que nunca fez nada na vida a não ser ser o neto de Tancredo Neves, credenciais suficientes pra que ele possa gerir um banco social, como é a Caixa!”  E ria, seu olhar buscava cúmplice o meu, eu ri muito também com ele, trocamos impressões pasmas sobre o ridículo da situação, sobre o ridículo do país.  Mas Fausto exagerava: Aécio não ia na verdade presidir a Caixa,  ia "apenas" assumir uma importante diretoria na estatal.  Sem, obviamente, jamais ter feito carreira lá.

            Agora que na qualidade de presidente do maior partido de oposição (o sintagma é muito solene pra esculhambação que é a nossa vida político-partidária), Aébrio se põe a fingir que fala grosso (e dá pra notar que está  com a voz um tanto engrolada) ao pedir satisfações ao governo  sobre a confusão com o boato do término do bolsa-família,  talvez eu tenha me lembrado do episódio.  Mas não é isso que vai ficar não.  Como também não vou ficar aqui tecendo considerações sobre a nossa comédia politiqueira.  Em vez disso, prefiro reter a figura de Fausto Wolff, Faustino Wollfenbüttel, Natanael Jebão, admirável jornalista, ótimo escritor, desaforado, amável e irascível flor de pessoa,  combatente do bom combate, um quase amigo do qual me ficaram estas afetivas lembranças.



domingo, 9 de junho de 2013

MANOEL DE BARROS


De RETRATO APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE  NADA

 

III

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Almoço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
 A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando –
            no silêncio líquido
            com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.

 

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.

 

VIII

Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas, Ovídio mostra seres humanos [transformados em pedras, vegetais, bichos, coisas.
Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisa, [larval, pedral etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural –
Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

 

 
                             In: Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda). Civilização Brasileira, 1990

sexta-feira, 7 de junho de 2013

ANTONIO FERNANDO DE FRANCESCHI três vezes




CRONOS
 

não vejo e arde
não sei e é
tarde
 

 

HOMOLOGIA
 

ralo
raro
esconso
escasso:
 

ocupa
Deus
tão pouco
espaço?
 

 


PROFANA
 

exíguo espaço
sem cântaros
escasso canto
sem pássaros

 

 

 

            In: A olho nu.  Companhia das Letras, 1993.

domingo, 2 de junho de 2013

AH, UM SONETO... DE OLAVO BILAC


VILA RICA

O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;
Sangram, em laivos de ouro, as minas, que  ambição
Na torturada entranha abriu da terra nobre:
E cada cicatriz brilha como um brasão.

O ângelus plange ao longe em doloroso dobre,
O último ouro do sol morre na cerração.
E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre,
O crepúsculo cai como uma extrema-unção.

Agora, para além do cerro, o céu parece
Feito de um ouro ancião, que o tempo enegreceu...
A neblina, roçando o chão, cicia, em prece,

Como uma procissão espectral que se move...
Dobra o sino... Soluça um verso de Dirceu...
Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.

 

            In: Olavo Bilac: Poesias.  Ediouro, s/d.

Guignard