quinta-feira, 31 de outubro de 2013

AH, UM SONETO... MAIS UM DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


CONFRONTO

 

Bateu Amor à porta da Loucura.
“Deixa-me entrar – pediu – sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu minha paixão.”

A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo
de humano que era, assim tão inumano.

E exclama: “Entra correndo, o pouso é teu.
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu,

enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de amar.”

 

            A paixão medida. 3 ed. Rio: José Olympio, 1981.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

FRAGMENTOS DE NÁUFRAGO


onde se divisa o que das naus não é sequer vestígio
superfície serena de um mar que é sempre o mesmo

            - nada acena
        nuas quedas
            gesto de placidez
             gosto de abismo
tudo é nítido -

dispersos despojos incontáveis
       inencontráveis
quando ao fim de tudo nos dermos o trabalho
de reunir os dias para prestar contas
ao último suspiro

- gastos sonhos
                     um corpo interdito
       uns olhos imensos
                   cabelos de risco
                        seios e dorsos percorridos a língua
              ou somente sonhados desabitados
apesar da sede que neles ardeu
giz bic lápis –

e não soubermos distinguir do que é
o que se finge
e se o que era
era tão só a visão da sua estátua
ou a própria esfinge

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

JACQUES ROUBAUD


A IDEIA DESTE LUGAR

 
A idéia de estarmos, mortos, num mesmo lugar.

A idéia de dois nomes numa pedra.

A idéia da proximidade das alianças. pode-se imagina-las amarradas, até.

Tudo isso de uma duração limitada, embora simbólica (no sentido mais comum)

Uma visita dominical ao cemitério parisiense de Thiais.  às vezes durante a semana: está-se melhor só.

Pontuação vazia.  há flores ou não há flores.  chove ou não chove.  é um trajeto longo, o metrô, um ônibus.

Eu vou mas não consigo pensa-lo.

Não constato dores complementares.

Dói mais,  às noites. 

 

                                                  Tradução de Inês Oseki-Dépré

  

Jacques Roubaud.  Algo: preto.  SP: Perspectiva, 2005  (Coleção Signos).
 
 
 

domingo, 20 de outubro de 2013

MIODRAG PÁVLOVITCH (Миодраг Павловић)





O PRINCÍPIO DO POEMA

Uma mulher atravessou o rio comigo
na névoa e sob o luar
atravessou o rio ao meu lado
e nem sei mesmo de quem se trata.
 
Subimos para as montanhas.
Seus cabelos longos e dourados,
coxas próximas ao caminhar.

Abandonamos leis e parentes,
olvidamos o aroma da mesa paterna,
abraçamo-nos de repente
e nem sei mesmo de quem se trata.
 
Não retornaremos aos telhados da cidade,
vivemos entre estrelas na planície,
exércitos não nos encontrarão,
águias tampouco,
um gigante descerá entre nós
e deverá possuí-la
enquanto eu estiver caçando javalis.

E nossos filhos entoarão o princípio
desta tribo em longas canções
festejando fugitivos e deuses
que cruzaram o rio.

 
                        Tradução Aleksandar Jovanovic

 

In: Miodrag Pávlovitch. Bosque da maldição. Sel. introd. e tradução de Aleksandar Jovanovic.  UnB (Coleção Poetas do Mundo), 2003.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

AUTOCRÍTICA COM DEDICATÓRIA


                                      a Roberto Bozzetti
 

I

de tão moderno,
anacrônico

cheguei lá:
já não estavam
 

II
rascunhei
o sublime

cunhei
o ordinário

anulei
o indivíduo

herdei
o seu crime
 

III
uma coleção
escrevi: rasurário

meu álbum não tombam,
derrubam

na dúvida a dívida:
venham ver-me,

derrisão
delenda vida,
vermes.
 

IV
(poética
            pós/
                 /tuma

                         jaz/
                              /igo
            provisório)

 

 

sábado, 12 de outubro de 2013

CZESLAW MILOSZ





NÃO MAIS


 
Preciso contar um dia como mudei
Minha opinião sobre a poesia e por que
Me considero hoje um dos muitos
Mercadores e artesãos do Império do Japão
Compondo versos sobre a floração da cerejeira,
Sobre crisântemos e a lua cheia.

Se eu pudesse descrever as cortesãs
De Veneza, como incitam com uma vareta o pavão no pátio
E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina
Os seios pesados, a marca
Avermelhada no ventre onde o vestido se abotoa,
Ao menos assim como as viu o dono das galeotas
Arribadas aquela manhã carregando ouro;
E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus pobres ossos
No cemitério, onde o mar oleoso lambe o portão,
Em palavras mais duráveis que o derradeiro pente
Que entre carcomas sob a lápide, só, espera pela luz
Não duvidaria.  Da resistência da matéria
O que se retém?  Nada, quando muito o belo.
Então devem nos bastar as flores de cerejeira
E os crisântemos e a lua cheia.
 
       Montgeron, 1957


                    Tradução de Henryk Siewirski e Marcelo Paiva de Souza

 

 

Czeslaw Milosz. Não mais. Sel. trad. e introd.  de Henryk Siewirski e Marcelo Paiva de Souza. Coleção Poetas do Mundo. UnB. 2003. 

 

 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

FRED GIRAUTA


OFÍCIO
 

espero que tenhas algum vício
que tuas palavras não sejam de apatia
que gostes de mirar o precipício
ou o posfácio desde o início.

espero que rasgues algum hímen ou prepúcio em
pleno dia
que coloques um cigarro
entre os dentes postiços
que tentes lamber a própria nuca
ou morder o cotovelo
que sejas forte, fraco e sem juízo
que não desprezes o foco dos prazeres,
que te entregues sem desvelo,
que permitas a invasão dos teus resquícios,
e que tua pele não tema o contrapelo.
 
espero que no fim de todo dia
enroles, num novelo,
saliva ou esperança em fios.



 
Fred Girauta.  Nós. Ed. Vidráguas, 2013.




Poemas visuais de Fred Girauta podem ser vistos  em fredgirauta.blogspot.com.br.  Girauta tem ainda letras musicadas por Fred Martins.

sábado, 5 de outubro de 2013

AH, UM SONETO... DE MANUEL BANDEIRA


A CÓPULA

 

Depois de lhe beijar meticulosamente
O cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce,
O moço exibe à moça a bagagem que trouxe:
Colhões e membro, um membro enorme e turgescente. 

Ela toma-o na boca e morde-o.  Incontinenti,
Não pode ele conter-se, e, de um jato, esporrou-se.
Não desarmou, porém. Antes, mais rijo, alteou-se
E fodeu-a.  Ela geme, ela peida, ela sente 

Que vai morrer: - “Eu morro! Ai, não queres que eu morra?!”
Grita para o rapaz que, aceso como um diabo,
Arde em cio e tesão na amorosa gangorra 

E titilando-a nos mamilos e no rabo
(Que depois irá ter sua ração de porra),
Lhe enfia cona adentro o mangalho até o cabo.

 

In: Antologia pornográfica: de Gregório de Mattos a Glauco Mattoso. Sel. e org.  Alexei Bueno. Nova Fronteira, 2004.

 

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

DARCY RIBEIRO, A FALTA QUE ELE FAZ

Darcy e Brizola

       Algumas quebras de protocolo eu vi e vivi:

  1. o lado risível da coisa:  quando o general figueiredo, o último dos gorilas no poder, dava declarações do tipo “prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo” e “se eu ganhasse salário mínimo dava um tiro no coco”, alguém chamou a atenção (não sei por que eu cismo que foi o Carpeaux, mas devo estar delirando)  para o fato de que as regras de decoro do discurso oficial dos governos militares tinham sido quebradas internamente, isto é, começou em boa hora, e pelos próprios generais-presidentes,  a dessacralização do que não tinha nada de sacro - fosse a grandiloquência ufanista herdada de Médici ou a “austeridade luterana” de Geisel.
  2. o lado quente: ao assumir o governo do Rio, tendo vencido as primeiras eleições diretas pós-ditadura, em 1982, Leonel Brizola proibiu a polícia (militar e civil) não apenas de dar blitzes indiscriminadas em comunidades pobres – nada de entrar em casa dos outros sem mandado judicial, por exemplo –  como proibiu que seus agentes se referissem aos suspeitos, aos presos e assassinados de sempre como  “elementos”.  Regulamentou a obrigatoriedade de a polícia referir-se a todos como cidadãos. O jargão da mídia, ainda que irônico e meio constrangido a princípio (e por princípio), acabou acatando.

 

O primeiro governo Brizola foi sobretudo estimulante, o que não quer dizer que não tenha sido permeado de equívocos: mas estimulou a discussão política como a minha geração não havia conhecido até então, a começar pelas discussões sempre na arena das alternativas de educação e cultura, além da mais do que candente e desde sempre urgente questão dos direitos humanos.  Fui seu eleitor, embora, para variar, sofrendo críticas e ironias diversas de muitos amigos mais chegados e muito queridos, os quais empolgados com a novidade que o PT representava naquele momento batiam na tecla: eu estaria em compasso passadista, preso às velhas lideranças populistas etc.  Provável que esses amigos estivessem certos em boa medida quanto ao cerne dos meus equívocos, mas não estou ainda – nunca estive – certo de que me equivocasse quanto ao cerne de suas convicções.  Enfim... a tirada brizolista de que o PT era “a UDN de tamancos” soava e ressoa. E eu adorava, além de levar muito a sério – mais do que deveria, vejo claro hoje – a idéia de que desde 64 o Brasil e em especial o Rio tinha uma dívida histórica com o engenheiro Leonel de Moura Brizola.  E para mim a dívida maior era, sempre fora,  com Darcy Ribeiro – seu vice e o homem forte da educação em seu governo.

Não pretendo idealizar o passado – e esta denegação certamente encaminhará que o farei, embora não seja muito certo que, como me acusou querida amiga dia desses, eu tenha virado irremediavelmente saudosista. Não idealizo o passado: o engenheiro, quer pelos  erros que tenha cometido, quer  por erros que o constituíam como entidade política  ou como se queira chamar –  acabou por não fazer  seu sucessor: a eleição seguinte foi vencida pelo nefasto Moreira Franco, que prometia para a classe média,  sempre no seu papel de acuada e alimentando o sonho das remoções e extermínios,  “acabar com a violência em seis meses”.  Com a entrada em cena do cara (aliás, ministro hoje no governo do PT)  todas as práticas policiais que Brizola havia abolido recrudesceram.  Quando voltou a ser governador, na eleição seguinte, Brizola acabou fazendo  um governo pífio: em parte porque teve que fazer alianças com o que havia de pior na política do estado – e o que há de ruim na política fluminense é um himalaia – outro tanto porque provavelmente já havia perdido a passada do compasso dos tempos.  Mas não vou fazer análise política aqui, que sequer tenho a menor competência para isso.

Toquei no nome de Darcy Ribeiro, e a vontade é parar por aqui.  Mas avanço, até porque o sentido último deste texto é falar dele.  Ainda que apenas num flash final.   Quero lembrar que numa paralisação dos professores no primeiro mandato de Brizola, a situação ficou tensa, desenhou-se um impasse sério.  Lembro de uma frase de meu pai – que foi professor até a compulsória: “Pelo menos a gente sabe que o Brizola não vai mandar a polícia bater em professor.”  Houve inúmeros embates entre o governo brizolista e os setores da educação,  e nem poderia ser diferente: basta lembrar do quanto de novidade ousada havia no projeto dos CIEPs, ainda que possamos aqui e ali apontar ou falar das contradições que surgiram no processo de sua – nunca efetivada pelo sucessor – implantação.   E o triste é constatar que um dos legados brizolistas – a radical mudança de protocolo na atuação policial – foi jogada no lixo (seu homem forte na PM, o Coronel Nazareth Cerqueira foi assassinado em circunstâncias para lá de suspeitas).   Pelo contrário, chegamos a um “democratização perversa”: a PM dá porrada indiscriminadamente.  Chegou a vez da porrada finalmente institucionalizada nos professores.

As redes sociais estão cheias por estes dias de fotografias aviltantes, testemunhando o tratamento que a “política de segurança” do estado do Rio (mas apenas?) dispensa aos profissionais da educação, a quebra de todo protocolo do respeito devido ao professor  pela cegueira boçal e estúpida em mais alto grau, mancha de barbárie no coração do Brasil.  Contra isso, resolvo postar essa foto aí de cima: como não ter saudade, melhor, por que disfarçar a saudade de um tempo em que o interlocutor para assuntos de educação era o Professor Darcy Ribeiro?

terça-feira, 1 de outubro de 2013

SOBRE ROMA: JANUS VITALIS (1485 – c.1560)


SOBRE ROMA

 

Recém-chegado que, buscando Roma em Roma,
não encontra, em Roma, Roma alguma,
olha, ao redor, muro e mais muro, pedras rotas,
ruínas, que assustam, de um teatro imenso:
é Roma isto que vês – cidade tão soberba,
que ainda exala ameaças seu cadáver.
Vencido o mundo, quis vencer-se e, se vencendo,
para que nada mais seguisse invicto,
jaz, na vencida Roma, Roma, a vencedora,
pois Roma é quem venceu e foi vencida.
Só resta, indício do que já foi Roma, o Tibre:
corrente rápida que corre ao mar.
Assim age a Fortuna: o que há de firme passa
e o que sempre se move permanece.

                         Tradução de Nelson Ascher

O rio Tibre em roma


DE ROMA

 

Qui Romam in media quaeris nouus aduena Roma,
            Et Romae in Roma nil reperis media,
Aspice murorum moles, praeruptaque saxa,
            Obrutaque horrenti uasta theatra situ:
Haec sunt Roma: uiden uelut ipsa cadauera tantae
            Vrbis adhuc spiret imperiosa minas?
Vicit ut haec mundum, nisa est se  unicere: uicit,
            A se non uictum ne quid in orbe foret.
Nin uicta in Roma uictrix Roma illa sepulta est?
            Acte eadem uictrix, uictaque Roma fuit.
Albula Romani restat nunc nomini index,
            Qui quoque nunc rapidis fertur in aequor aquis.
Disce hinc quid possit fortuna: immota labascunt,
            Et quae perpetuo sunt agitata manent.



 
In: Nelson Ascher. Poesia alheia: 124 poemas traduzidos.  Imago, 1998.