terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Um antigo, de 1977.


                                                            QUEM VIVER
                                                        A Marlene de Castro Correia

alguém me disse:
do fundo da terra
partirá um trinado
do fundo da treva
partirá um trinado
do fundo da selva
partirá um trinado

partirá um trinado
partirá um trinado
partirá um trinado
do fundo da vida

ninguém me disse:
do fundo da terra
partirá um blindado
do fundo da treva
partirá um blindado
do fundo da selva
partirá um blindado

partirá um blindado
partirá um blindado
partirá um blindado

e é só o que sei
            
            

             Remexendo em velhos arquivos, volta e meia me deparo com coisas bem remotas “em forma de poemas antigos, relidos”, como no verso de Paulinho da Viola.  Já postei aqui mesmo no Firma, um poema que publiquei em 1977 no número 9 da prestigiosa revista JOSÉ (dezembro de 1977). Veja-se o link:http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2012/08/um-que-ja-tem-tempo.html
Esse outro poema da primeira juventude foi escrito no mesmo ano, que, vejo aqui, foi muito produtivo.  Acho que posso atribuir isso a um excelente curso livre de criação poética que fiz na UFF com a professora Marlene Castro Correia, quando cursava meu segundo período em Letras.  A professora Marlene foi uma guia generosa e segura ao me apresentar as provocações de Pound e dos concretistas, além das teorizações muito produtivas de Jakobson  e Chklovski e da leitura muito atenta da prática poética de Drummond, Augusto dos Anjos e Eliot, entre outros.  Por conta disso, dedico-lhe.

                                                      

sábado, 22 de fevereiro de 2014

MACHADO DE ASSIS




UMA CRIATURA

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
 
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

 

            In: Machado de Assis. Obra completa v. III, org. Afrânio Coutinho.  Rio: José Aguilar, 1962.

 


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

TOMÁS ANTONIO GONZAGA




De MARÍLIA DE DIRCEU  (Lira II da Segunda Parte)

Esprema a vil calúnia muito embora,
Entre as mãos denegridas e insolentes,
            Os venenos das plantas,
E das bravas serpentes;

Chovam raios e raios, no meu rosto
Não hás de ver, Marília, o medo escrito.
            O medo perturbado
            Que infunde o vil delito.

Podem muito, conheço, podem muito,
As Fúrias Infernais, que Pluto move;
            Mas pode mais que todas
            Um dedo só de Jove.

Este Deus converteu em flor mimosa,
A quem seu nome deram, a Narciso.
            Fez de muitos os astros
            Qu’inda no Céu diviso.

Ele pode livrar-se das injúrias
Do néscio, do atrevido, ingrato povo;
            Em nova flor mudar-me,
            Mudar-me em Astro novo.

Porém se os justos Céus, por fins ocultos,
Em tão tirano mal me não socorrem,
            Verás então que os sábios
            Bem como vivem, morrem.

Eu tenho um coração maior que o mundo,
Tu, formosa Marília, bem o sabes,
            Um coração, e basta,
            Onde tu mesma cabes.



Tomás Antonio Gonzaga. Marília de Dirceu.  Porto Alegre: L&PM, 2002. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

MANUEL BANDEIRA


O MARTELO

 

As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu naufrágio
Os elementos mais cotidianos.
O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas.
 
                                   Manuel Bandeira.  Estrela da vida inteira. 20 ed. Ed. Record, s/d

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

DRUMMOND: TORTURA




TORTURA

Carretel não entra
em rabo de gato?
Não importa: este
há de entrar, exato.

Que anel mais estranho,
ornato insensato,
se tinge de sangue
no rabo do gato.

Unha, presa, fúria,
felino aparato,
nada pode contra
a mão e seu ato.

Foge o bicho, tonto?
Carretel, no mato,
nunca mais que sai
de rabo de gato.

Não, não foge: esconde-se
na cova do rato.
Outra mão, piedosa,
cure, salve o gato,
que esta sabe apenas
torturar exato.

                        Carlos Drummond de Andrade.  Boitempo & A falta que ama.  RJ: Sabiá, 1968.










domingo, 9 de fevereiro de 2014

MADRIGAL ANÔMALO


Meu trevo de quatro folhas
minha anomalia
te amo
por te amar não quero que venha depois
da noite o dia
nem que suceda a luz
à gestação
nem a seda ao bicho dela
e a borboleta e a camisola
da mesma seda
não quero as etapas
os estágios os catálogos
os decálogos
a alma sem sopro a soletrar
tintins terços mantras
como se vazia
de corpo
quero
a minha sorte
a aleijã que te pôs
no meu caminho
besta-fera animália
sobre as pedras à flor d’água
de onde se enganam
os crentes
e onde se afogam
os descrentes.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

LA FONTAINE

 

EPIGRAMA

 

Amar, foder: uma união
De prazeres que não separo.
A volúpia e os desejos são
O que a alma possui de mais raro.
Caralho, cona e corações
Juntam-se em doces efusões
Que os crentes censuram, os loucos.
Reflete nisto, oh, minha amada:
Amar sem foder é bem pouco,
Foder sem amar não é nada.
 

Tradução de José Paulo Paes

 

ÉPIGRAMME

 

Aimons, foutons, ce sont plaisirs
Qu’il ne faut pas que l’on separe;
La jouissance et les désirs
Sont ce que l’âme a de plus rare.
D’un vit, d’un con, et de deux coeurs,
Naît un accord plein de douceurs,
Que les dévôts blâment sans cause.
Amarillis, pensez-y bien:
Aimer sans foutre est peu de chose
Foutre sans aimer ce n’est rien.
 
 

 

José Paulo Paes (sel. trad. org. e notas).  Poesia erótica em tradução.  SP: Companhia das Letras, 1990.
 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

GIORGIO CAPRONI


O DELFIM

Para Greg Gatenby

      Por onde salte o delfim
(o mar lhe pertence todo,
dizem, do Oceano até
o Mediterrâneo), vivo
vês lá o vislumbre de Deus
que surge e some, nele hílare
acrobata de arguto rostro.


     É o malabarista de nosso
inquieto destino – o emblema
do Outro que com afano
buscamos, e que
(o delfim é alegre – é o álacre
companheiro da navegação)
diverte-se (nos exorta)
a fundir a negação
(um mergulho subáqueo – um vôo
elegante e improviso
num brancor de espumas)
com o grito da afirmação.

                                                       
                                         Tradução de Aurora Fornoni Bernardini

 

 

 
 



IL DELFINO
 Dovunque balza il delfino
(il maré gli appartiene tutto,
dicono, dall’Oceano fino
al Mediterrâneo), vivo
là vedi il guizzo di Dio
che appare e scompae, in lui ilare
acrobata dall’arguto rostro.




È il giocoliere del nostro
inquieto destino – l’emblema

dell’Altro che cerchiamo
com affanno, e che
(il delfino è allegro – è il gaio
compagno d’ogni navigazione)
si diverte (ci esorta)
a fondere la negazione
(um tuffo subacqueo – um volo
elegante e improvviso
in um biancore di spume)
col grido dell’affermazione.
 
 
            In: A coisa perdida: Agamben comenta Caproni.  Organização e tradução de Aurora Fornoni Bernardini.  Florianópolis: Editora da UFSC, 2011