sábado, 25 de abril de 2015

OS RIOS


seis meses entre a vida e a morte
numa enfermaria de hospital
em casa há um mês
entre a morte e a morte.

nos fundos  o espelho d’água química
cisma às vezes de se levantar
cloacágulo sanguezal
berçário de ódio
administrado pelas elites
de tanto esperar os bárbaros
bárbaras
de tanto desejá-los e confessar abúlica
e sem culpa sua própria derrota

(trouxeram sanguessugas para a minha sangria?
trouxeram manguessugas para o próprio repasto?)

- quando dá vau
os ratos
enormes arrastam compenetradamente 
comboios de corpos humanos e  outros restos

- param aqui em casa
às vezes se vão às vezes
não
(talvez numa dessas eu tenha ficado)
às vezes também calha
de subirem cantando direto rumo ao Inferno
no barco bêbado entupidos de crack e sentimentos ínferos
num Faria-Timbó num Acari que deságua
em Malebolge logo abaixo  de Meriti
ou sobem em horrendo alarido ao telhado
sentinelas ao abrigo das fardas azuis
que tentam monitorá-los das margens

que é quando a Ordem intervém
atendendo a denúncias atrás de substâncias ilícitas
como o Sol, que descai
mas os trens descarrilando
e um aprazível espocar de fogos
colore a aquarela vespertina a alimentar os jornais de amanhã
das dores das fendas
que latejam
seus pré-órfãos

porque esse parece ser
o destino

 

domingo, 19 de abril de 2015

Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto: sobre pureza e puros.



CARTA AOS “PUROS”

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens iluminados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos. 

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

Vinícius de Moraes.  Poesia completa e prosa. RJ: Nova Aguilar, 1987

 

 


        Somente os muito tolos ou inexperientes no quesito vida estranhariam a amizade entre dois poetas praticamente antípodas, Vinícius e João Cabral.  A partir da antítese que fundou suas poéticas, eu mesmo durante muito tempo estranhava sempre que lia que eram muito amigos.  Ponha-se isso em parte na minha pouca vivência, pouca compreensão das relações humanas, em especial da amizade; de outra parte, ponha-se no fato de ter vivido boa parte da vida num ambiente em que o campo da poesia brasileira era muito faccionalizado.  Acho mesmo que deve continuar sendo – a rigor não sei, pois quero distância de “vida literária” - , mas é que durante muito tempo João Cabral era lido como um dos esteios do paideuma concretista e Vinícius como um neo-romântico, ou pior, um desleixado “poetinha”. Os meandros disso, bom, é só se inteirar um pouco da história de nossa poesia que se vão descobrindo coisas e coisas.

         O fato é que cultivaram a amizade, apesar de suas poéticas serem de fato duas águas da poética brasileira modernista. Não lembro onde li que ao ler “Morte e vida severina”, Vinícius teria se mostrado empolgado, ao que Cabral retrucara: “Vinícius, esse poema não é pra você não, eu escrevi pra operário, você é intelectual, tem que gostar é de ‘Uma faca só lâmina’”.  O excelente filme de Bebeto Abrantes Recife Sevilha: João Cabral de Meo Neto, documentário de 2003, tem passagem saborosíssima a respeito da amizade dos dois (vale anotar ainda a amizade de vida inteira de Cabral com Ledo Ivo, seu companheiro de geração e de poética bem distinta e mesmo oposta – também nisso o filme de Abrantes toca): numa gravação em fita de rolo em reunião social, Vinícius canta acompanhando-se ao violão, quando se ouve a voz de Cabral: “Sem ser de amor você não sabe fazer não, não é?  Você só canta o coração, não sabe cantar outra víscera?”  Vinícius reage bem humorado,  dizendo que vai musicar os poemas bem “cerebrinos” do pernambucano, “Vou musicar aqueles poemas da cabra, você vai ver...”  De permeio não se pode deixar de frisar que Vinícius -  “um lírico”, como de forma desdenhosamente divertida Cabral a ele se referia, ou melhor, se referia a todos os poetas que não fossem ele próprio, Cabral – é um dos pilares da nada santíssima trindade bossanovista, ao lado de Tom Jobim e João Gilberto, constituindo-se pois no grande pai poético da instituição MPB…  Aos passo que para João Cabral a música não passava do “menos desagradável dos ruídos”, como ouvi de viva voz o poeta dizê-lo nos pilotis da PUC na Expoesia em 1975.  Sobre o Cabral antimúsico,  Caetano Veloso  lhe dedicou – e a João Donato, o músico antipoeta – sua canção “Outro retrato” do CD Estrangeiro.

         Me lembrei dessas coisas todas ao topar dia desses com um poema de Vinícius que anda bem a calhar para nossos tempos de obscurantismo, hipocrisia falsamente pura, sacripantas vivendo em felicidade de maré montante.  E ao reler a “Carta aos ‘Puros’”, lembrei ainda da exegese poética  rigorosa a que lhe submete Cabral com seu “Ilustração para a Carta aos Puros”, de A educação pela pedra, livro de 1966 (o poema de Vinicius é da década de 1950, parece).  Aqui Cabral lhe impõe o rigor do puro e do “puro”,  através da depuração não purista de dois tipos de cal.  Dois belíssimos poemas.

         Não poderia deixar de ilustrar esta postagem com uma foto que amo – não sei quem é o fotógrafo – dos dois poetas, no meio de suas andanças de diplomatas, que ambos eram, numa Paris do anos 1960 com um icônico Citroën-sapo ao fundo.

 

ILUSTRAÇÃO PARA A “CARTA AOS PUROS” DE VINÍCIUS DE MORAES

 A uma se diz cal viva: a uma, morta;
uma, de ação até o ponto de ativista,
passa de pura a purista e daí passa
a depurar (destruindo o que purifica).
E uma, nada purista e só construtora,
trabalha apagadamente e sem cronista:
mais modesta que servente de pedreiro
aquém de salário mínimo, de nortista

Uma cal sai por aí tudo, vestindo tudo
com o algodãozinho alvo de sua camisa,
de uma camisa que, ao vestir de fresco,
veste de claro e de novo, e reperfila;
e nas vezes de vestir parede de adobe,
ou de taipa, de terra crua ou de argila,  
essa cal lhe constrói um perfil afiado,
uma quina pura, quase de pedra cantaria.
Uma cal não sai: se referve em caieiras
se apurando sem fim a corrosão e a ira,
o purismo e a intolerância inquisidora,
de beata e gramatical, somente punitiva;
se a deixassem sair, sairia roendo tudo
(de tudo, e até de coisas nem nascidas),
e no fim roídas as fichas e indicadores,
se roeria os dentes: enfim autopolícia.


João Cabral de Melo Neto.  Obra completa. RJ: Nova Aguilar, 2003.



quarta-feira, 15 de abril de 2015

MURILO MENDES





O GALO

Quando eu era menino, acordando cedo de madrugada, ouvia o galo cantar longíssimo, o canto forte diluía-se na distância, talvez viesse das abas redondas de Chapéu d’Uvas, ou das praias que eu imaginava no Mar de Espanha, sei lá, no cornimboque do diabo.  Nesse tempo não existiam galos no nosso terreiro.

*

         Até que um dia lá chegou um galo soberbo, fastoso, corpo real, portador de plumagem azul-verde-vermelha.  Seu canto era agressivo: napoleônico.  Os galos da distância cederam o passo a este outro próximo, tocável, fichável.  Aproximei-me muitas vezes do galo, testando-o; ele baixava a cabeça para examinar-me, conferenciava com as galinhas d’angola, bicando qualquer grão ou cisco; depois voltava a mim, levantando já agora a cabeça para marcar sua superioridade, talvez de tribuno, barítono, boxeador; desafiando-me a que com a crista?  O galo me atraía e repelia; eu receava que me bicasse, ou que me disparasse um jato de dejeções.  Embora admirando-os, nunca me senti muito à vontade com os bichos; mesmo algumas plantas ou certos frutos, por exemplo a begônia e o maracujá causavam-me receio.  Desde o começo a natureza pareceu-me hostil.

*

         Um dia abeirei-me do galinheiro manejando um bilboquê diante do galo; quis mostrar-lhe que o dominava, que ele seria incapaz de jogar bilboquê, jogo da moda.  O galo farejou o objeto; julgando-o certamente esotérico sacudiu a plumagem, empinou a crista, abanou a cabeça rindo, um riso voltaireano, adstringente.  Polígamo que era, atacou à minha vista, alternativamente, duas galinhas carijó, cobrindo-as, contundente, claro que para me fazer despeito.  Atirei o bilboquê no chão, arma inútil, vencida.   

                   Do “Setor Microzoo” do livro Poliedro  (1972)


Murilo Mendes.  Poesia completa e prosa.  RJ: Nova Aguilar, 1994.

domingo, 12 de abril de 2015

ZUCA SARDAN




INSTABILIDADE METEOROLÓGICA

O Sol, relendo Machado, do bolso
puxa uma nuvem, e funga
tristonho, me dizendo:
“Quem me dera eu fosse
Um simples vagalume!...”

Filósofo sem guardachuva
que não sou Quirquegarde,
fui logo obtemperando:
“Ora esta, largue de bobagem...”



                                            Zuca Sardan.  Osso do coração.  Ed. da Unicamp, 1993.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

OSWALD DE ANDRADE





OCASO



No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu

Bíblia de pedra sabão
Banhada no ouro das minas


         Oswald de Andrade. Poesias reunidas, 4 ed. .  RJ: Civilização Brasileira, 1974. 


domingo, 5 de abril de 2015

JORGE MONTEALEGRE


OSSOS


O único que nos resta
é o vento

o único que deixamos
é o vento

o vento passa pelo osso oco
- schhhh
é isso que passa
silêncio  / de terra

silêncios do Chê desenterrado
A notícia relâmpago se grava no vento
os caçadores / injetam formol em seu cadáver / exibem a presa para a imprensa
executam outra vez em chamas
ssem botas / sem meias  / sem caminho
um troféu descalço para a lembrança
Os últimos flashes retumbam em sua pálida couraça

Em resumo / escarnecido
retrato
de um cristo qualquer

sem sombras / à sombra / do relâmpago
a cena mortal se imortaliza


(...)

-----------------------------------------------------------------------------------

Luminoso no pôster da adolescente / que segue sonhando contigo e com teus
sonhos
e sonha
com voltar a ter quinze anos


entre seus badulaques o guarda veterano / como osso santo / um fiapo
verde-oliva
o girão  /  de uma bandeira

a lembrança /  de uma praia
com suas cores / de beijos
e de luto

Não faltou quem tomasse os velhos fuzis
nem quem
os vendesse no mercado das pulgas

Tudo foi corrompido no caminho de caracol que cruza este poema

o homem novo é um osso enterrado

sobrevive o osso

não há lealdade maior nem tão calada.

A sombra
fica com seu osso

 um osso deixa de ser / somente um osso
quando sabemos / que o batizaram
que esteve em nosso mesmo sendeiro
apaixonado / com dores nos ossos

onde estão os camaradas?
cantam/ e quando cantam parece que estão sós

sonâmbulos e lúcidos te seguiram em sonho
convencidos / vencidos / convertidos
em abono  / da terra
o famoso
paraíso
do hino / que cantaram  / de pé  / os escravos sem pão

(...)

um vento velho despenteia tua cabeleira
é uma lembrança
caveira calva cavilando

ria
mostra esses dentes que distinguem tua história na ossatura
amplo é o riso do aparecido
gargalhada eterna
muda morte sem hálito

e segue sendo doce tua mirada de osso


(...)

pôster / póstero
portada / ícone pop / bugiganga
filme / souvenir de gauche / mercadoria
pôster / póstero
livro de poesia

 (...)

 todos ao ar com teus ossos exumados
                   pela noite
repetida no verso  /  da fossa infinita

        uma fossa comum cheia de enes:

Ninguém                                              Ninguém
Noite                                                   Noite
Nunca                                                 Nunca

            a dupla negação te ressuscita.

                                                   
                                                  Tradução de Antonio Miranda


Foto de Marc Hutten, reencontrada em 2014







HUESOS

Lo único que nos queda
es el viento

lo único que dejamos
es el viento

el viento pasa por el hueso hueco
-schhhhh
eso es lo que pasa
silencio   /  de tierra

silencios del Che desenterrado

La noticia relámpago se graba en el viento
los cazadores / inyectan formol a su cadáver / exhiben la presa ante la prensa
lo ejecutan de nuevo a fogonazos
ssin botas / sin calcetines / sin camino
un trofeo descalzo para el recuerdo
Los últimos flashes retumban en su pálido pellejo

En escorzo  /  escarnecido
retrato
de un cristo cualquiera

no hay sombras / a la sombra / del relámpago
la escena mortal se inmortaliza

 (...)

-----------------------------------------------------------------------------------


Luminoso en el poster de la quinceañera /  que sigue soñando contigo y con tus sueños
y sueña
con volver a tener quince años

entre sus cachivaches el veterano guarda /como hueso santo / una hilacha verdeoliva
el jirón / de una bandera

el recuerdo /  de una playa
con sus colores /  de besos
y de  luto

no faltó quien tomara los viejos fusiles
ni quien
los vendiera en el mercado de las pulgas

todo se corrompe en el camino del caracol que cruza este poema

el hombre nuevo es un hueso enterrado

sobrevive el hueso

no hay lealtad más grande ni tan callada.

La sombra
se queda con su hueso

un hueso deja de ser / sólo un hueso
cuando sabemos / que lo bautizaron
que estuvo en nuestra misma vereda
enamorado / con dolores de huesos

 ¿dónde están los camaradas?
cantan / y cuando cantan parece que están solos

sonámbulos y lúcidos te siguieron en el sueño
convencidos /  vencidos /  convertidos
en abono /  de la tierra
el famoso
paraíso
del himno / que cantaron  / de pié  /  los esclavos sin pan

(...)

un viento viejo despeina tu melena
es el recuerdo
calavera calva cavilando

riete
muestra esos dientes que distinguen tu historia en la huesera
amplia es la risa del aparecido
carcajada eterna
muda calaca sin respiro

y sigue siendo dulce tu mirada de hueso

(...)

afiche  /  fetiche
carátula  / ícono pop  /  chuchería
película  / souvenir de la gauche / mercadería
fetiche  /  afiche
libro de poesia

(...)
todos al aire con tus huesos exhumados
                        bajo la noche
repetida en el verso   /   de la fosa infinita

         una fosa común llena de NN:
Nadie                                               Nadie
Noche                                              Noche
Nunca                                              Nunca
         la doble negación te resucita.




         O poema de Montealegre bem como sua tradução foram colhidos no excelente blog de Antonio Miranda, que recomendo, acessado em 04/04/2015. 







sexta-feira, 3 de abril de 2015

PAUL CELAN


FUGA DA MORTE


Negro leite primevo nós o bebemos à noitinha
nós o bebemos ao meio-dia e pela manhã nós o bebemos à noite
bebemos e bebemos
cavamos uma cova nos ares lá não se fica confinado
Um homem mora na casa brinca com as cobras escreve
escreve quando obscurece na Alemanha teu dourado cabelo Margarete
escreve-o e vai para a frente da casa e os
astros reluzem ele conclama seus mastins
chama seus judeus manda cavar uma cova na terra
e comanda toquem agora para dançar

Negro leite primevo nós te bebemos à noite
nós te bebemos pela manhã e ao meio-dia, nós te bebemos à noitinha
bebemos e bebemos
Um homem mora na casa brinca com as cobras escreve
escreve quando obscurece na Alemanha teu dourado cabelo Margarete
Teu cabelo cinza Sulamith cavamos uma cova nos ares lá não se fica confinado
Ele grita finquem mais fundo no reino terrestre vocês aí vocês lá cantem e toquem
ele saca o ferro da cinta brinca com ele seus ohos são azuis
finquem mais fundo as pás vocês aí vocês lá toquem adiante para dançar

Negro leite primevo nós te bebemos à noite
nós te bebemos ao meio-dia e pela manhã nós te bebemos à noitinha
bebemos e bebemos
um homem mora na casa teu dourado cabelo Margarete
teu cabelo cinza Sulamith ele brinca com as cobras

Ele grita toquem a morte mais suave a morte é um mestre da Alemanha
ele grita toquem os violinos mais grave e elevem-se qual fumaça pelo ar
então vocês terão uma cova nas nuvens lá não se fica confinado

Negro leite primevo nós te bebemos à noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um mestre da Alemanha seu olho é azul
ele te acerta uma bala de chumbo ele te acerta certeiramente
um homem mora na casa teu dourado cabelo Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós ele dá-nos uma cova no ar
ele brinca com as cobras e sonha a morte é um mestre da Alemanha

teu dourado cabelo Margarete
teu cabelo-cinza Sulamith


                                      tradução de Flavio R. Kothe

Paul Celan. Poemas.  Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.

Zdzislaw Beksinski


TODESFUGE
 
Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
wir trinken und trinken
wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar Margarete
er schreibt es und tritt vor das Haus und es blitzen die Sterne er pfeift seine Rüden herbei
er pfeift seine Juden hervor läßt schaufeln ein Grab in der Erde
er befiehlt uns spielt auf nun zum Tanz

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich morgens und mittags wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar Margarete
Dein aschenes Haar Sulamith wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng
Er ruft stecht tiefer ins Erdreich ihr einen ihr andern singet und spielt
er greift nach dem Eisen im Gurt er schwingts seine Augen sind blau
stecht tiefer die Spaten ihr einen ihr andern spielt weiter zum Tanz auf

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags und morgens wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith er spielt mit den Schlangen

Er ruft spielt süßer den Tod der Tod ist ein Meister aus Deutschland
er ruft streicht dunkler die Geigen dann steigt ihr als Rauch in die Luft
dann habt ihr ein Grab in den Wolken da liegt man nicht eng

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags der Tod ist ein Meister aus Deutschland
wir trinken dich abends und morgens wir trinken und trinken
der Tod ist ein Meister aus Deutschland sein Auge ist blau
er trifft dich mit bleierner Kugel er trifft dich genau
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
er hetzt seine Rüden auf uns er schenkt uns ein Grab in der Luft
er spielt mit den Schlangen und träumet der Tod ist ein Meister aus Deutschland

dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith


acessado em 02/04/2015. 


Paul Celan, em  Bucareste, 1947