sábado, 31 de dezembro de 2016

UM NOVÍSSIMO: DIO COSTA

O SONHO DAS COISAS SEM FIM
(Aos 80 anos de Roberto Piva)



sonhei que era 2017
comemorávamos os 80 anos de roberto piva em sua biblioteca
admiradores saíam de tudo quanto era buraco
a cidade de são paulo tomada de 220 volts oferecia aos ignorantes seus adeptos
alucinados perambulam entre carros
convocam motoristas e passageiros e transeuntes a darem a partida definitiva em suas vidas
tirem as crianças da sala e as coloquem para nos ensinar 
elas desenham no asfalto um céu de laranja descascada 
o convite são versos do poeta na ponta da língua
ou no livro gasto por idas e vindas curiosas
ou no papel amassado esquecido no bolso esquerdo da calça jeans
ou no rótulo da garrafa já aberta para a Expansão
ou na seda lagarta que vira borboleta num sopro ritualístico

sonhei que era 2017
espíritos faziam plantão na porta desde 1961
andré breton é um e fernando pessoa são vários
e lautréamont e baudelaire e pasolini e jorge de lima e murilo mendes e dante alighieri e arthur rimbaud e mário de andrade e oswald de andrade e jack kerouac e allen ginsberg e walt whitman e álvaro de campos e pierre reverdy e octavio paz e guillaume apollinaire e rainer maria rilke e federico garcia lorca e sousândrade e qorpo santo e philippe soupault e alfred jarry e william carlos williams e hart crane e matsuo bashô
manifestos inteiros mantêm-se de pé nos bares mais próximos 
é a paranoia é a para noia é apara noia é paranoir é a paranoiah!
salvador dalí e max ernst e rené magritte desquadram quadros quadrados

sonhei que era 2017
eu conhecia um perfeito beatnik atravessando as piazzas da cidade
marquês de sade e mallarmé e maiakóvski e freud e nietzsche eram cúmplices do mesmo crime
portas abertas para encontros mágicos
a recíproca do lugar é sua ocupação
os interlocutores conectados pelo veneno acordam para o fogo
os deuses dançam e as autoridades dançam e os intelectuais dançam
as universidades sem cor fazem pirraça
zé celso traz a orgia no sorriso
que comecem os jogos! diz dionísio
perde quem chegar primeiro
abra os olhos e diga ah! para o entusiasmo 
o falo enfático nas peripércias pederastas festivas
coxas e virilhas e ânus e submerso e subverso
gritos coletivos do alto do edifício 
maldoror come empédocles que come antinoo que come jacob boehme que come darcy ribeiro que come karl max que come lorenzo de medici que come mircea eliade que come platão que come emanuel swedenborg que come joséphin péladan que come macunaíma que come gérard de nerval que come raul bopp que come joão miramar que come hegel que come william burroughs que come severo sarduy que o aniversariante come nas camadas do seu bolo

sonhei que era 2017
eu ingeria 20 poemas com brócoli e via analogias por todos os lados
o que não é é e o que é é mesmo
a voz trovão de william blake na masturbação de todos os poetas iniciantes
a divina e os comédias
guimarães rosa e jorge luís borges e t.s. elliot entram no banheiro e não saem mais de lá
juntam flores de dentro da privada
a solidão não é uma escolha mas uma encolha grandiosa comum entre os incomuns
recados curtos ao pé do ouvido iluminam a loucura
a quizumba está formada por tantas possessões 
o pacto do fluxo com a consciência assinado pela mão benta de mefistófeles

sonhei que era 2017
ciclones nos levavam para outra dimensão
eu vejo roberto bicelli de óculos escuros com meia dúzia de mafiosos planejando assaltar a mente dos indecisos 
eu vejo rodrigo de haro jogar seu olhar impressionista alemão na poesia de manuel bandeira
eu vejo antônio de franceschi conversando com d.h. lawrence
eu vejo massao ohno voando além dos limites do sonho
eu vejo thomaz souto corrêa traficando caminhos sem volta 
eu vejo wesley duke lee em detalhes 
eu vejo claudio willer deixar de ser um nome e aparecer na minha frente
eu vejo sessões de ácido e shows de rock e tardes de cinema e batuques na floresta
eu vejo um novo século de gaviões com fome
eu vejo inéditos estourando feito rojões

sonhei que era 2017
ainda ecoava o morteiro acesso na sala de aula
o zunido nos ouvidos frágeis do bunda mole
a careta na cara azeda do cuzão
o receio na falta de atitude do frouxo
sonhei com aqueles que bufam e babam e queimam e explodem 
sonhei que era 2017 e era só o começo das coisas sem fim

         Poema postado na página do autor no Facebook: https://www.facebook.com/pagdodio/
Dio Costa



domingo, 18 de dezembro de 2016

SOLANO TRINDADE (1908-1974)




CANTO DOS PALMARES

Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!
 
Há batidos fortes
de bombos e atabaques em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos...
 
Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada contra todas as tiranias!
 
Fecham minha boca
mas deixam abertos os meus olhos
Maltratam meu corpo
minha consciência se purifica
Eu fujo das mãos do maldito senhor!
Meu poema libertador
é cantado por todos, até pelo rio.
 
Meus irmãos que morreram
muitos filhos deixaram
e todos sabem plantar e manejar arcos
Muitas amadas morreram
mas muitas ficaram vivas,
dispostas a amar
seus ventres crescem e nascem novos seres.
 
O opressor convoca novas forças
vem de novo ao meu acampamento...
Nova luta.
As palmeiras ficam cheias de flechas,
os rios cheios de sangue,
matam meus irmãos, matam minhas amadas,
devastam os meus campos,
roubam as nossas reservas;
tudo isto para salvar a civilização e a fé...
 
Nosso sono é tranqüilo
mas o opressor não dorme,
seu sadismo se multiplica,
o escravagismo é o seu sonho
os inconscientes entram para seu exército...
 
Nossas plantações estão floridas,
Nossas crianças brincam à luz da lua,
nossos homens batem tambores,
canções pacíficas,
e as mulheres dançam essa música...
 
O opressor se dirige aos nossos campos,
seus soldados cantam marchas de sangue.
O opressor prepara outra investida,
confabula com ricos e senhores,
e marcha mais forte,
para o meu acampamento!
Mas eu os faço correr...
 
Ainda sou poeta
meu poema levanta os meus irmãos.
Minhas amadas se preparam para a luta,
os tambores não são mais pacíficos,
até as palmeiras têm amor à liberdade...
 
Os civilizados têm armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é para os meus irmãos mortos.
Minhas amadas cantam comigo,
enquanto os homens vigiam a terra.
 
O tempo passa
sem número e calendário,
o opressor volta com outros inconscientes,
com armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é simples,
como a própria vida.
Nascem flores nas covas de meus mortos
e as mulheres se enfeitam com elas
e fazem perfume com sua essência...
 
Meus canaviais ficam bonitos,
meus irmãos fazem mel,
minhas amadas fazem doce,
e as crianças lambuzam os seus rostos
e seus vestidos feitos de tecidos de algodão
tirados dos algodoais que nós plantamos.
 
Não queremos o ouro porque temos a vida!
E o tempo passa, sem número e calendário...
O opressor quer o corpo liberto,
mente ao mundo
e parte para prender-me novamente...
 
- É preciso salvar a civilização,
Diz o sádico opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas selvas
a grandeza da civilização
a Liberdade!
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....
 
- É preciso salvar a fé,
Diz o tratante opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas matas
a grandeza da fé  a Liberdade...
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....
 
Saravá! Saravá!
repete-se o canto do livramento,
já ninguém segura os meus braços...
Agora sou poeta,
meus irmãos vêm comigo,
eu trabalho, eu planto, eu construo
meus irmãos vêm ter comigo...
 
Minhas amadas me cercam,
sinto o cheiro do seu corpo,
e cantos místicos sublimizam meu espírito!
Minhas amadas dançam,
despertando o desejo em meus irmãos,
somos todos libertos, podemos amar!
Entre as palmeiras nascem
os frutos do amor dos meus irmãos,
nos alimentamos do fruto da terra,
nenhum homem explora outro homem...
 
E agora ouvimos um grito de guerra,
ao longe divisamos as tochas acesas,
é a civilização sanguinária que se aproxima.
Mas não mataram meu poema.
Mais forte que todas as forças é a Liberdade...
 
O opressor não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema é cantado através dos séculos,
minha musa esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido...



TEM GENTE COM FOME

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
pra dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiii

estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio do ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuu






GRAVATA COLORIDA

Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada…

Solano Trindade. Poemas antológicos de Solano Trindade.  SP: Nova Alexandria, 2008.


sábado, 10 de dezembro de 2016

TRÊS VEZES FRANCISCO CÉSAR MANHÃES (1962)



TROIAS
Não haveria troias sem
helenas, nem mesmo hélades
e ilíadas e odisséias haveria.
Quer toscas vidas teriam heródotos
sem história, maquiáveis sem
mais os bórgias.  Sem potosis
e antilhas e astecas que pobres
seriam espanhas.  Portugais
e inglaterras sem navios, que seriam?
Sobretudo, que seriam do ouro
e da prata, das glórias mundanas,
sem súbito, no azul estupefato,
o raio límpido de um riso?



ANTECEDENTES

Hoje sabemos que homero foi uma prévia de borges;
que shakespeare foi copiado por carcamanos
uns tantos séculos antes de compor o Otelo.
O que não sabemos é como sobre
as ruínas de tão vigorosos mortos
escreveremos nós com a mesma rebuscada inocência.



NEGREIROS

Não sei nem saberemos
que palavras diziam
em flamengo, inglês,
ladino, espanhol,
português, papiamento
aqueles grandes filhos sem
mãe que atravessaram
o escorbuto e o mar oceano
para levar o mal e as almas
pelos pélagos do Atlântico.

Sei que perderam e
que estão mortos, mais
que mortos, seus nomes
enterrados mais fundo
que o oceano mesmo
que sulcavam.

Ninguém os lembra
ninguém os quer como ancestres.
Do fundo do Hades, do
quinto dos infernos, seus
gritos nadam imersos
no chumbo do esquecimento.

                   Francisco César Manhães. Punhal inútil.  Rio: TextoTerritório, 2016.





domingo, 4 de dezembro de 2016

FERREIRA GULLAR

FIM

Como não havia ninguém
na casa aquela
terça-feira tudo
é suposição: teria
tomado seu costumeiro
banho
de imersão por volta
de meio-dia e trinta e
de cabelos ainda
úmidos
deitou-se na cama para
descansar não
para morrer
         queria
dormir um pouco
apenas isso e
assim não lhe
terá passado pela
mente – até
aquele último segundo
antes de
se apagar no
silêncio – que
jamais voltaria
ao ruidoso mundo
da vida


Ferreira Gullar.  Muitas vozes.  4 ed. RJ: José Olympio, 2000.

foto de Eder Chiodetto
(http://www.tirodeletra.com.br/index.htm)

domingo, 27 de novembro de 2016

DOMINGOS PELLEGRINI (1949)

PRIMATA

Senhores, eu queria abrir a realidade
como um bicho de couro e tripas quentes
com o bisturi da lucidez doente
de Augusto dos Anjos, sem piedade

- nem precisão: ia cortando tudo,
abrindo e maquinando nos miolos
uma dor, uma dúvida, um consolo,
com a mesma avidez com que um mudo
se pudesse entrava nas conversas,
com a esperança e com o desespero
com que eu lia, tão tonto e sincero,
Carlos Marx na segunda e terça,
São Francisco na quarta, na quinta
qualquer coisa que cheirasse angústia;
na sexta, alguns poemas de Augusto,
no sábado escrevia um poema sinistro.

Tinha 14 anos, trinta espinhas
na cara, nos ombros, e um vulcão
comunicando cabeça e coração.
O oceano numa lata de sardinha.
Todos os exércitos num homem.
Leitor de todos os jornais do mundo.
Vítima de todos, curioso de tudo.
De dia, sono.  De noite, lobisomem.

Me perguntava:  quem entende, quem ensina?
Sobre os telhados meu boné de confusão.
Se chamasse Raimundo não seria solução.
Cuspia na sopa pra respingar na família.

Ancorava na esquina como um poste
à disposição do vento que passasse,
à espera de quem me pregasse cartazes,
recruta, mártir, ovo de sacerdote
ou projeto colorido de descrente,
herói, tatu peva, rato, borboleta,
centro indiscutível do planeta,
primata de todos os descontentes.

Ali estava eu considerando-me
resultado da minha própria cabeça
enquanto transitavam bicicletas
com operários, operários com marmitas,
nessas marmitas de folhas-de-flandres
arroz, feijão, mandioquinha frita
e outras raízes e rins gozando-me
com seu sarcasmo de óleo e de usina.

Nem teme quem te adora a própria morte.
A Revolução Russa não me esperara.
Numa fotografia vi que não estava
entre os Dezoito do Forte.
Na Segunda Guerra os submarinos
emergiram  e afundaram apesar
de eu ainda nem respirar o ar
tão necessário aos submarinos.

E eu queria embarcar pra combater.
Queria estar na tela dos cinemas
em forma de herói, de cinza ou bomba.
Queria escrever,
                         rasgava os poemas;
gastar a pilha toda como um bobo
gasta energia com os seus trejeitos;
quebrar um cadeado como se o peito
fosse o telefone vigiado da farmácia
e ligar para todos os cinemas
perguntando que horas que passava
o filme das dúvidas organizadas.

E transitavam grevistas pelos dias,
a inflação roia na cozinha,
prenderam um ladrão num dos vizinhos
mas eu não via.
                            Eu não sabia,
Getúlio deixara um testamento,
um tio se suicidara de desgosto
e minha tia trazia no rosto
toda a História do Casamento.

Eu não lia os jornais nas entrelinhas.

Na eleição do diretório (*) , não votei.
Me enfiei na biblioteca e lá fiquei
ciscando assustado como galinha.


In: Poesia Viva 2 (org, Moacyr Félix).  RJ: Civilização Brasileira, 1979. 


(*) Na edição utilizada está “velório” por “diretório”.   Optei por este termo porque acontece que minha lembrança deste poema é mais antiga do que a data de sua publicação no livro organizado por Moacyr Félix indica.  Certamente o li em alguma das revistas literárias da época, nas quais tanto a poesia quanto a ficção narrativa de Domingos Pellegrini eram habituais.  Tentei localizar entre meus guardados onde estaria essa publicação anterior, confesso que não achei.  Também não encontrei o poema na internet.  Vai assim então em nome não exatamente -  ou não apenas  - da minha memória , mas em nome também do sentido:  qual seria a razão, descabida sob todos os aspectos, desse “velório”, num poema que trata da formação  do poeta enquanto homem politizado?   



segunda-feira, 21 de novembro de 2016

DOIS POEMAS DE MÁRIO CHAMIE (1933-2011)



           GALERIAS

Nas vastas galerias de sombras
passam os detritos.  As ondas.

Um barco navega: fantasma
com ferrugem nos casco
com caveiras no mastro
com salsugem nas quilhas.

Nas baixas galerias das vias,
o lodo concentra-se em pilhas,
um sapo deglute a mosca,
seu peixe de água salobra.

Nas sujas galerias do esgoto,
um crime carrega seu corpo,
um trem trafega sem rumo,
um lodo concentra seu sumo.

Nas vastas galerias de sombras,
o pesadelo pesado do povo
pesa seu sono de chumbo,
dorme em seu leito de escombros.





     SIDERURGIA S.O.S.

Se der o ouro: sidéreo   opus   horáriO

Sem     sol o sal    do  erário:   saláriO

Se der orgia/semistério: o empresáriO

Siderurgia do    opus    o só    o eráriO

Se der a via   do pus   opus       erradO

Se der o certo no errado: o empregadO

Se der errado no certo:   o emprecáriO






Mário Chamie.  Sábado na hora da escuta:  antologia.  SP: Summus, 1978.



quarta-feira, 16 de novembro de 2016

WALLACE STEVENS (1879-1955)

CONNOISSEUR DO CAOS

I
A. Uma ordem violenta é uma desordem; e
B. Uma grande desordem é uma ordem.  Essas 
Duas coisas são uma só. (Seguem páginas de exemplos).


II
Se todo o verde da primavera fosse azul – e é;
Se as flores da África do Sul estivessem brilhando
Nas mesas de Connecticut – e estão;
Se os ingleses passassem sem chá em Ceilão – e passam;
E se tudo andasse em ordem –
E anda; uma lei de oposições interiores,
De unidade essencial, é deliciosa como um cálice de porto.
Deliciosas como as pinceladas de um ramo
De certo ramo especial – digamos, de Marchand.


III
Afinal de contas o lindo contraste entre vida e morte
Prova que essas coisas opostas participam de uma só,
Pelo menos era essa a teoria, no tempo em que os livros dos bispos
Resolviam o mundo.  Não podemos voltar a isso.
Os fatos coleantes ultrapassam a mente escamosa,
Se é que se pode falar assim.  Seja como for a relação persiste,
Uma pequena relação se espalhando como a sombra
De uma nuvem na areia, uma forma ao lado de um outeiro.



IV
A. Bem, uma velha ordem é uma ordem violenta.
O que não prova nada.  Uma verdade a mais, um elemento
Na imensa desordem das verdades.
B. É abril enquanto escrevo.  O vento
Sopra após dias e dias de chuva constante.
Tudo isso, naturalmente, mais cedo ou mais tarde, dá em verão
Mas suponhamos que a desordem das verdades dê um dia
Numa ordem, muito Plantageneta, muito estabelecida...
Uma grande desordem é uma ordem.  Agora, “A”
E “B” não são como estátuas posando
Para uma foto no Louvre.  São coisas riscada a giz
Na calçada, para que os pensativos possam vê-las.



V
Os pensativos... Esses podem ver a águia pairando, a águia
Para quem os Alpes complicados não passam de um só ninho.







CONNOISSEUR OF CHAOS


 I
A. A violent order is a disorder; and
B. A great disorder is an order. These
Two things are one. (Pages of illustrations.)



II
If all the green of spring was blue, and it is;
If all the flowers of South Africa were bright
On the tables of Connecticut, and they are;
If Englishmen lived without tea in Ceylon,
             and they do;
And if it all went on in an orderly way,
And it does; a law of inherent opposites,
Of essential unity, is as pleasant as port,
As pleasant as the brush-strokes of a bough,
An upper, particular bough in, say, Marchand.



 III
After all the pretty contrast of life and death
Proves that these opposite things partake of one,
At least that was the theory, when bishops' books
Resolved the world. We cannot go back to that.
The squirming facts exceed the squamous mind,
If one may say so . And yet relation appears,
A small relation expanding like the shade
Of a cloud on sand, a shape on the side of a hill.



 IV
A. Well, an old order is a violent one.
This proves nothing. Just one more truth, one more
Element in the immense disorder of truths.
B. It is April as I write. The wind
Is blowing after days of constant rain.
All this, of course, will come to summer soon.
But suppose the disorder of truths should ever come
To an order, most Plantagenet, most fixed. . . .
A great disorder is an order. Now, A
And B are not like statuary, posed
For a vista in the Louvre. They are things chalked
On the sidewalk so that the pensive man may see.



 V
The pensive man . . . He sees the eagle float
For which the intricate Alps are a single nest.

                                               Tradução de Mário Faustino



In: Mário Faustino.  Poesia completa, poesia traduzida.  SP: Max Limonad, 1985.





quinta-feira, 10 de novembro de 2016

TORQUATO NETO NASCIMENTO VIDA E MORTE

         No dia 10 de novembro de 1972 Torquato Neto completaria – não sei se chegou a completar – 28 anos.  Matou-se na madrugada, abriu os bicos do gás no apartamento onde morava na Tijuca.  Numa última frase de seu texto de suicida, pedia um cuidado especial com o filho:  “Vocês aí, não sacudam demais o Thiago.  Ele pode acordar”. O impacto de sua morte em mim, que tinha 16 anos, foi imenso.  Mas o impacto de Torquato vivo tinha sido maior.  Hoje ele completaria 72 anos.  Por isso é do Torquato vivo que falarei.


         Meus primeiros contatos com algo que se possa chamar de poesia do século XX, melhor, com a arte do século XX, se deram através da coluna “Geléia Geral”, que Torquato manteve no jornal Última Hora de agosto de 1971 a março de 1972.  Não, minha memória nada tem de extraordinária, muito menos para datas: essa precisão eu devo aos dois belos volumes organizados por Paulo Roberto Pires, sob o título de Torquatália, lançamento da Rocco em 2004. Mas a memória que eu tenho de Torquato e de sua coluna e de tudo a que me levaram seus textos provocantes, informativos, desconcertantes e tantas vezes desaforados, essa memória é enorme e a ela sou muito grato.  Como  a deste, que saiu em 14 de junho de 1971,  e que colo aqui: 



Por exemplo: a foto de Godard com a legenda “Godard. Poeta. Nunca teve medo de quebrar a cara. Quebrou?”  No moleque de 15 anos isso de “Godard poeta” ficava martelando: quem é esse poeta?  Fui ver, fui correr atrás (era um tempo sem internet, googles, wikipedias,  se é que dá pra pensar nisso hoje e, sim, alô saudosistas do que não sabem, era um tempo de enorme cerceamento à informação, a qualquer informação,  no país sob feroz ditadura), descobri que Godard era um cineasta francês, um nome de referência no cinema, mas no cinema de pirados de modo geral, diretor de filmes “incompreensíveis”, “fracassados” etc.  enfim: Godard era um poeta do cinema.  Um poeta, sim.  Cuja linguagem – que ele levava e leva –a  limites impensáveis era o filme.  Assim se faziam as descobertas, fim do exemplo.

       A coluna do Torquato me dava notícias enviesadas, elípticas (eram aqueles tempos e era também uma proposta de não ser didático, a não ser para quem estava a fim de aprender alguma coisa com o ímpeto e o risco)  de um Chico Buarque alvo de censura burra e torpe  e de recriminações mal bem pensantes, de Caetano e de Gil no exílio, dos movimentos subterrâneos na vida cultural, do samba e dos rocks  dos guetos,  da esquerda boêmia carioca que envelhecia, mesmo genial, no Pasquim, da vida que se fazia vigorosa, resistente, frágil entre a antropofagia e o vampirismo,  o Nosferatu que Torquato encarnara em Nosferatu no Brasil, super-8 de Ivan Cardoso (filme, aliás, que nunca vi).



Foi Torquato que me direcionou de forma mais provocativa em direção aos irmãos Campos, a Pound, a Oiticica, foi ele quem primeiro chamou minha atenção para o novíssimo Chacal, quem me dimensionou bem Paulinho da Viola, quem direcionou meus ouvidos para Jards Macalé, os olhos curiosos para as polêmicas do cinema underground x Cinema Novo,  quem me apontou para Waly Salomão e sua “descoberta” Luíz Melodia, um moleque do morro de São Carlos  de 20 anos, cuja “Pérola Negra”, cantada no antológico show  –Fa-tal - , de Gal Costa na virada 1971/72, me deslumbraria, como deslumbra até hoje.   Falo em Waly Salomão,  e a lembrança de Torquato me evoca também a sua.  Estive com Waly uma vez, em 1984, num ciclo de discussões sobre música popular que ajudei o pessoal do Diretório de Letras das UFF (eu já estava formado) a organizar.  Mediei uma mesa dele com o também grande poeta e letrista Abel Silva.

        Adorei o rápido contato com Waly, embora não tenha certeza de a recíproca ser verdadeira, até porque não tive tempo nem interesse em esclarecer.  Mas o jeito de Waly, gestos largos e voz baiana tonitroante e desabusada, a fazer uma fala generosa ao auditório lotado de estudantes (lá pelas tantas apareceram ainda Antonio Cícero, que se não me engano era professor-substituto de Filosofia lá na UFF, e Alex Varella), e ao mesmo tempo reclamar que não havia sequer um “pro-labore” para os convidados (“Vocês precisam correr atrás de patrocínios!” ele bradava), me conquistou,  sobretudo quando fez um “descarrego” (chamemo-lo assim) do peso do fantasma de Torquato no martirológio em que o queriam incluir (como gostamos de martirológios no Brasil, mas apenas para celebrar os santos, não para fazer-lhes justiça...).  Waly dizia algo do tipo “Torquato está morto, nós aqui estamos vivos, sua poesia, sua trajetória não merecem ser domesticadas por esse coitadismo, esse martirológio, o que ele deixou está acima de tudo isso e não vamos ficar gostando do que ele fez pelas razões erradas!”  Vejo a foto e me  novamente ouço sua fala veemente. Waly morreria em 2003, também grande como Torquato.


A Coleção Postal, da Azougue Editorial e da Editora Cozinha Experimental, acaba de lançar seu segundo livro (o primeiro foi dedicado a Roberto Piva, vejam a postagem anterior a esta), o volume Torquato Neto , com vários textos inéditos. Claro que eu recomendo e já estou me deleitando com ela.  Mas folheando aqui os diversos textos da coluna “Geléia Geral” reunidos no volume 2 de Torquatália, me deparo com um ao qual nunca tinha prestado atenção, não devo tê-lo lido na época.  Só pra informação, Lena Rios é uma conterrânea de Torquato, piauiense, que iniciava uma carreira musical naquela época.  Entre outras coisas, lembro que ela gravou a música-tema (parceria de Torquato com Carlos Pinto) de Sem essa, aranha, filme de Rogério Sganzerla, de 1970. Não sei se a cantiga em questão foi musicada.


CANTIGA PIAUIENSE PARA LENA RIOS

Sempre andei por um caminho
Que não conhecia bem;
Sequer me lembro se vinha
Sozinha, ou se com alguém
E nem sei se aqui chegada
Faço morada, me aquieto
Pois é certo que procuro
Algo que deve andar perto:
Mas o que vejo é incerto
E o que consigo não dura.
(Eu sempre quis outra vida
Eu sempre quis ser feliz,
Por isso naquele tempo
Fiz minha mala e parti)
Sempre andei por um caminho
Que não sabia direito;
Do que perdi na viagem
Já me esqueci por completo
Não guardei nada e o que trouxe
Eram apenas utensílios
De fácil desprendimento:
Dois filhos que nunca tive
Um velho anel de família
E uma saudade no peito.
(Eu sempre quis outra vida
Eu sempre quis ser feliz:
Dos dois filhos, da saudade
E até do anel me desfiz).
Sempre andei por um caminho
Que não tem ponto final
E a paisagem que eu via
Era toda e sempre igual:
Depois da noite outro dia
Com suas mesmas desgraças,
Mas também algumas casas
Com jantar posto na mesa.
Agora:
EU SEMPRE QUIS SER CONTENTE
E PODE SER QUE EU JÁ SEJA.

         
         Haveria e há muito a se falar ainda de Torquato, mas isto aqui foram apenas alguns flashes de memória de alguém que foi tão importante para mim, que de certa maneira continua sendo, e cuja obra é provável que ainda tenha muito a render aosd interessados de todas as eras.  Vocês aí descubram por conta e risco.  Aqui mesmo no Firma Irreconhecível há outras postagens.  Divirtam-se.  Vivam. 

Torquato no traço de Luís Trimano