Eu poderia
me chamar João Cabral de Melo
Neto e
estudar ciências abstrusas, números irracionais, letras
apagadas e
ter amor ao que faço ou finjo
fazer, criar
corvos ou urubus, entrar e sair de
tretas
ir ao
mercado comprar maçãs, apostar no bicho
jogar o
peixe pescado aos gatos
e nem de
longe pensar em nada parecido com assassinatos
ao redor de
mim
e eu não
teria por que ser morto
Eu gostaria
mesmo é que meu nome de fato
fosse Marcus
Vinícius da Cruz de Mello
Moraes e ainda
que eu fosse ruim de bola
a ponto de ser barrado até no gol, mas bom da bola,
dedicaria meu tempo a organizar os comerciários
contra
comerciantes argentários
ainda que me
ameaçassem em vão com assassinato
meu provável
fim
eu não teria
por que ser morto
Eu quereria
me chamar Joaquim Maria Machado
de Assis e ser herdeiro de um vasto latifúndio de
infortúnios
e de tanto
me esforçar tornar-me exemplo
exímio
construtor de pontes e túneis e expulsar
de tantos
outros templos os vendilhões de sempre
a atender para
todo o sempre orações mediante depósitos
para
encomendar assassinatos
sem fim
e eu não
teria por que ser morto
E se eu me
chamasse Edson Arantes do Nascimento
e
demonstrasse desde a mais tenra idade
um talento
invulgar para a geometria euclidiana
e as
especulações de fundo pitagórico
ou fosse eu
um mero Afonso Henriques de
Lima Barreto
e traçasse a geometria do espanto e do descalabro
de todo o
meu país de inutilidades e pegasse
o trem às 5
da tarde, sonhando topografias trocando
ideias
infindas em conversas intermináveis
com Caetano
Emanoel Vianna Telles Veloso
e Heitor
Villa-Lobos, e súbito entrassem no trem
Manuel
Carneiro de Sousa Bandeira Filho e Olavo Brás Martins dos
Guimarães
Bilac, amigos de turma e boemia
e
aguardássemos ansiosos a hora de nos encontrarmos
com Cecília
e Clarice e Hilda e Adélia
Vera, Maria
da Graça, Conceição, Tamires
vindas todas
das dimensões nada etéreas
mas muito
concretas portadoras de imensas sabedorias
e
dedicássemos nossos tempos e nossos futuros
a passar
verões à beira-mar e invernos entre serros
e não
não teríamos
por que sermos mortos
Mas me
chamaram Bernardo e entre uma aula e outra
uma gôndola
e outra um cheetos e um hambúrguer
entre ser o
Pedro ou o Rafael a Stéphanie ou a Gioconda
o Vitor ou o
Valber o Kássio ou a Helga a Sandra ou
o Leo ou o
Roberto
eu fui eu e
não
o outro
e fui morto.