sábado, 31 de dezembro de 2016

UM NOVÍSSIMO: DIO COSTA

O SONHO DAS COISAS SEM FIM
(Aos 80 anos de Roberto Piva)



sonhei que era 2017
comemorávamos os 80 anos de roberto piva em sua biblioteca
admiradores saíam de tudo quanto era buraco
a cidade de são paulo tomada de 220 volts oferecia aos ignorantes seus adeptos
alucinados perambulam entre carros
convocam motoristas e passageiros e transeuntes a darem a partida definitiva em suas vidas
tirem as crianças da sala e as coloquem para nos ensinar 
elas desenham no asfalto um céu de laranja descascada 
o convite são versos do poeta na ponta da língua
ou no livro gasto por idas e vindas curiosas
ou no papel amassado esquecido no bolso esquerdo da calça jeans
ou no rótulo da garrafa já aberta para a Expansão
ou na seda lagarta que vira borboleta num sopro ritualístico

sonhei que era 2017
espíritos faziam plantão na porta desde 1961
andré breton é um e fernando pessoa são vários
e lautréamont e baudelaire e pasolini e jorge de lima e murilo mendes e dante alighieri e arthur rimbaud e mário de andrade e oswald de andrade e jack kerouac e allen ginsberg e walt whitman e álvaro de campos e pierre reverdy e octavio paz e guillaume apollinaire e rainer maria rilke e federico garcia lorca e sousândrade e qorpo santo e philippe soupault e alfred jarry e william carlos williams e hart crane e matsuo bashô
manifestos inteiros mantêm-se de pé nos bares mais próximos 
é a paranoia é a para noia é apara noia é paranoir é a paranoiah!
salvador dalí e max ernst e rené magritte desquadram quadros quadrados

sonhei que era 2017
eu conhecia um perfeito beatnik atravessando as piazzas da cidade
marquês de sade e mallarmé e maiakóvski e freud e nietzsche eram cúmplices do mesmo crime
portas abertas para encontros mágicos
a recíproca do lugar é sua ocupação
os interlocutores conectados pelo veneno acordam para o fogo
os deuses dançam e as autoridades dançam e os intelectuais dançam
as universidades sem cor fazem pirraça
zé celso traz a orgia no sorriso
que comecem os jogos! diz dionísio
perde quem chegar primeiro
abra os olhos e diga ah! para o entusiasmo 
o falo enfático nas peripércias pederastas festivas
coxas e virilhas e ânus e submerso e subverso
gritos coletivos do alto do edifício 
maldoror come empédocles que come antinoo que come jacob boehme que come darcy ribeiro que come karl max que come lorenzo de medici que come mircea eliade que come platão que come emanuel swedenborg que come joséphin péladan que come macunaíma que come gérard de nerval que come raul bopp que come joão miramar que come hegel que come william burroughs que come severo sarduy que o aniversariante come nas camadas do seu bolo

sonhei que era 2017
eu ingeria 20 poemas com brócoli e via analogias por todos os lados
o que não é é e o que é é mesmo
a voz trovão de william blake na masturbação de todos os poetas iniciantes
a divina e os comédias
guimarães rosa e jorge luís borges e t.s. elliot entram no banheiro e não saem mais de lá
juntam flores de dentro da privada
a solidão não é uma escolha mas uma encolha grandiosa comum entre os incomuns
recados curtos ao pé do ouvido iluminam a loucura
a quizumba está formada por tantas possessões 
o pacto do fluxo com a consciência assinado pela mão benta de mefistófeles

sonhei que era 2017
ciclones nos levavam para outra dimensão
eu vejo roberto bicelli de óculos escuros com meia dúzia de mafiosos planejando assaltar a mente dos indecisos 
eu vejo rodrigo de haro jogar seu olhar impressionista alemão na poesia de manuel bandeira
eu vejo antônio de franceschi conversando com d.h. lawrence
eu vejo massao ohno voando além dos limites do sonho
eu vejo thomaz souto corrêa traficando caminhos sem volta 
eu vejo wesley duke lee em detalhes 
eu vejo claudio willer deixar de ser um nome e aparecer na minha frente
eu vejo sessões de ácido e shows de rock e tardes de cinema e batuques na floresta
eu vejo um novo século de gaviões com fome
eu vejo inéditos estourando feito rojões

sonhei que era 2017
ainda ecoava o morteiro acesso na sala de aula
o zunido nos ouvidos frágeis do bunda mole
a careta na cara azeda do cuzão
o receio na falta de atitude do frouxo
sonhei com aqueles que bufam e babam e queimam e explodem 
sonhei que era 2017 e era só o começo das coisas sem fim

         Poema postado na página do autor no Facebook: https://www.facebook.com/pagdodio/
Dio Costa



domingo, 18 de dezembro de 2016

SOLANO TRINDADE (1908-1974)




CANTO DOS PALMARES

Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!
 
Há batidos fortes
de bombos e atabaques em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos...
 
Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada contra todas as tiranias!
 
Fecham minha boca
mas deixam abertos os meus olhos
Maltratam meu corpo
minha consciência se purifica
Eu fujo das mãos do maldito senhor!
Meu poema libertador
é cantado por todos, até pelo rio.
 
Meus irmãos que morreram
muitos filhos deixaram
e todos sabem plantar e manejar arcos
Muitas amadas morreram
mas muitas ficaram vivas,
dispostas a amar
seus ventres crescem e nascem novos seres.
 
O opressor convoca novas forças
vem de novo ao meu acampamento...
Nova luta.
As palmeiras ficam cheias de flechas,
os rios cheios de sangue,
matam meus irmãos, matam minhas amadas,
devastam os meus campos,
roubam as nossas reservas;
tudo isto para salvar a civilização e a fé...
 
Nosso sono é tranqüilo
mas o opressor não dorme,
seu sadismo se multiplica,
o escravagismo é o seu sonho
os inconscientes entram para seu exército...
 
Nossas plantações estão floridas,
Nossas crianças brincam à luz da lua,
nossos homens batem tambores,
canções pacíficas,
e as mulheres dançam essa música...
 
O opressor se dirige aos nossos campos,
seus soldados cantam marchas de sangue.
O opressor prepara outra investida,
confabula com ricos e senhores,
e marcha mais forte,
para o meu acampamento!
Mas eu os faço correr...
 
Ainda sou poeta
meu poema levanta os meus irmãos.
Minhas amadas se preparam para a luta,
os tambores não são mais pacíficos,
até as palmeiras têm amor à liberdade...
 
Os civilizados têm armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é para os meus irmãos mortos.
Minhas amadas cantam comigo,
enquanto os homens vigiam a terra.
 
O tempo passa
sem número e calendário,
o opressor volta com outros inconscientes,
com armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é simples,
como a própria vida.
Nascem flores nas covas de meus mortos
e as mulheres se enfeitam com elas
e fazem perfume com sua essência...
 
Meus canaviais ficam bonitos,
meus irmãos fazem mel,
minhas amadas fazem doce,
e as crianças lambuzam os seus rostos
e seus vestidos feitos de tecidos de algodão
tirados dos algodoais que nós plantamos.
 
Não queremos o ouro porque temos a vida!
E o tempo passa, sem número e calendário...
O opressor quer o corpo liberto,
mente ao mundo
e parte para prender-me novamente...
 
- É preciso salvar a civilização,
Diz o sádico opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas selvas
a grandeza da civilização
a Liberdade!
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....
 
- É preciso salvar a fé,
Diz o tratante opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas matas
a grandeza da fé  a Liberdade...
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....
 
Saravá! Saravá!
repete-se o canto do livramento,
já ninguém segura os meus braços...
Agora sou poeta,
meus irmãos vêm comigo,
eu trabalho, eu planto, eu construo
meus irmãos vêm ter comigo...
 
Minhas amadas me cercam,
sinto o cheiro do seu corpo,
e cantos místicos sublimizam meu espírito!
Minhas amadas dançam,
despertando o desejo em meus irmãos,
somos todos libertos, podemos amar!
Entre as palmeiras nascem
os frutos do amor dos meus irmãos,
nos alimentamos do fruto da terra,
nenhum homem explora outro homem...
 
E agora ouvimos um grito de guerra,
ao longe divisamos as tochas acesas,
é a civilização sanguinária que se aproxima.
Mas não mataram meu poema.
Mais forte que todas as forças é a Liberdade...
 
O opressor não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema é cantado através dos séculos,
minha musa esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido...



TEM GENTE COM FOME

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
pra dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiii

estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio do ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuu






GRAVATA COLORIDA

Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada…

Solano Trindade. Poemas antológicos de Solano Trindade.  SP: Nova Alexandria, 2008.


sábado, 10 de dezembro de 2016

TRÊS VEZES FRANCISCO CÉSAR MANHÃES (1962)



TROIAS
Não haveria troias sem
helenas, nem mesmo hélades
e ilíadas e odisséias haveria.
Quer toscas vidas teriam heródotos
sem história, maquiáveis sem
mais os bórgias.  Sem potosis
e antilhas e astecas que pobres
seriam espanhas.  Portugais
e inglaterras sem navios, que seriam?
Sobretudo, que seriam do ouro
e da prata, das glórias mundanas,
sem súbito, no azul estupefato,
o raio límpido de um riso?



ANTECEDENTES

Hoje sabemos que homero foi uma prévia de borges;
que shakespeare foi copiado por carcamanos
uns tantos séculos antes de compor o Otelo.
O que não sabemos é como sobre
as ruínas de tão vigorosos mortos
escreveremos nós com a mesma rebuscada inocência.



NEGREIROS

Não sei nem saberemos
que palavras diziam
em flamengo, inglês,
ladino, espanhol,
português, papiamento
aqueles grandes filhos sem
mãe que atravessaram
o escorbuto e o mar oceano
para levar o mal e as almas
pelos pélagos do Atlântico.

Sei que perderam e
que estão mortos, mais
que mortos, seus nomes
enterrados mais fundo
que o oceano mesmo
que sulcavam.

Ninguém os lembra
ninguém os quer como ancestres.
Do fundo do Hades, do
quinto dos infernos, seus
gritos nadam imersos
no chumbo do esquecimento.

                   Francisco César Manhães. Punhal inútil.  Rio: TextoTerritório, 2016.





domingo, 4 de dezembro de 2016

FERREIRA GULLAR

FIM

Como não havia ninguém
na casa aquela
terça-feira tudo
é suposição: teria
tomado seu costumeiro
banho
de imersão por volta
de meio-dia e trinta e
de cabelos ainda
úmidos
deitou-se na cama para
descansar não
para morrer
         queria
dormir um pouco
apenas isso e
assim não lhe
terá passado pela
mente – até
aquele último segundo
antes de
se apagar no
silêncio – que
jamais voltaria
ao ruidoso mundo
da vida


Ferreira Gullar.  Muitas vozes.  4 ed. RJ: José Olympio, 2000.

foto de Eder Chiodetto
(http://www.tirodeletra.com.br/index.htm)