Duas mãos - foto de Marcelo Diniz |
Marcelo Diniz postou, como volta e meia
o faz, poemas novos em seu perfil no Facebook – não eram sonetos, modalidade em
que sua mestria é absoluta e à qual tem se dedicado com quase exclusivismo. No
corre-corre, os dois que li – não sei se
postou mais - eram poemas extraordinários, e acabei pedindo uns dias depois a ele que mos enviasse, que eu gostaria de ter a primazia de posta-los aqui no
Firma. Gentilmente ele me enviou três, a
que chamou de”seleta pro firma de rascunhos bárbaros e livres”. Dou-os aqui,
com muita alegria e orgulho – e a admiração de sempre. Talarico ilustrou.
1.
é possível encontrar palavras sem
procurá-las
as
bárbaras cambalhotas de um guarda-chuva aberto pela calçada
e
o que se tem à mão ao abri-lo sempre nos trai como um morcego estropiado
palavrões
sempre são encontrados em semelhantes circunstâncias
a
nódoa no brim o rasgo dos fundilhos
há
palavras que parecem arrancadas de nós
o
que falamos sem saber por mais que pensemos depois
fazendo
brotar o sentido como uma vegetação atrasada
o
que por mais que pensemos vaza sem efígie
um
significado inusitado e ao mesmo tempo tão antigo
tropeçamos
a todo momento no murmúrio
não
que sejamos necessariamente atrapalhados com as palavras
nunca
as estudamos tanto nunca enxergamos tanto através delas
existência
mais consistente do que a mudez que nos rodeia
lixo
espacial de antigos satélites
e
que risca o céu quando algum pedaço cai
e
esfria seu metal na terra e enferruja
as
palavras estão sempre onde não as supomos
topada
martelo no dedo língua entre dentes
capazes
de dizer eu te amo na hora mais adversa
as
palavras nos dizem
é
preciso escutá-las e lê-las como uma camisa ao avesso
ver-lhes
o oco articulado
ver-lhes
a corda o mecanismo a chave e ainda
ouvi-las
com risco e encanto
lê-las
com lento maravilhamento e súbita revelação
a
que repetida se torna real
e
a que repetida perde o sentido
a
que grita e propaga
a
que sussurra hesita e naufraga
no
travesseiro no elevador
2.
– vô
como
fosse o adão das coisas
substantivos
na boca e dêiticos no indicador
como
se me ensinasse a língua
que
sabia com orgulho e gosto
de
um mundo vasto e repleto de motivos
como
se toda palavra fosse um fruto
macio
mordido pela primeira vez
como
se sua fala colasse à coisa falada
e
ria satisfeito e me traduzia
o
que não me era nítido ainda
e
não eram os passos temerosos de colono recém chegado
e
não era a inocência imaginada dos colonizados
nem
era a catequese do cosmos
não
havia ainda a palavra astúcia
havia
a interjeição com o fato de cada coisa cor
responder
ao som que repetisse e eu repetia
como
se repetindo provasse do mesmo fruto
como
se a flor do pequeno jardim fosse
o
sabor da vogal extraída
e
as pétalas coubessem o imaculado esplendor
na
cor de uma única sílaba
de
fato o mundo começara ali
a
satisfação de fazer sentido
nada
mais tinha história naquele vocabulário abrupto
cuja
sintaxe se desenhava entre prosódia e gesto
quando
enfim me deu nome
Ilustração de Talarico |
desce
pelo ralo com meus resquícios para sempre
vejo
as pessoas passando e percebo muitas
não
se acham belas e a beleza é um desperdício
a
incidência de restar paralelo como um segredo
cultivando
certa voz que lhe soprasse sempre
a
verdade que mais se estima do que é inútil
o
brilho de alumínio da embalagem descartada
que
reflete o céu aleatório de seu destino
o
que respiram as cerdas da vassoura enquanto
chiam
no chão da barbearia no meio da tarde quente
o
clarão de um fósforo riscado em cômodo escuro
a
consistência da bolha de luz que arrasta pelos móveis
o
rumor de sombra de sua pele oscilante
o
desperdício sempre foi sua insistente atenção
à
musa que visita os alvéolos efêmeros dos fungos
à
cultura de poeira e seu ilegível inventário de ácaros
ao
azinhavre do utensílio que aposentou seu dono
à
alegria provável do que é desnecessário
porque
deixou de sê-lo e também à graça de nunca ter sido
o
desperdício de olhar a esquina e não exigir mais nada
abandonar
o saco plástico e imaginar a quanto
será
elevado antes da tempestade na rua vazia
a
parede descascada é uma paisagem extraterrestre
o
alívio indiferente à chuva de meteoros
que
dizimou de vez a urgência da vida de outrora
o
universo decerto fosse mais seco não se infiltrasse
esta
espessura de lágrima e riso que o desperdício
acumula
em cada nicho de sua minuciosa colmeia
a
inaudível aspereza do vento se houver vento
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