sábado, 8 de junho de 2024

CAMPEÃO DO BRASILEIRO, GUTO LEITE


 

E OUTROS POEMAS, O IMENSO LIVRINHO DO GUTO LEITE QUE ME CHEGA DO RIO GRANDE DO SUL

         A questão fulcral da poesia que se quer “do tempo presente”, creio, creem – e assim devem sentir – os poetas é:   como ferir a carne dos dias com a palavra.   Falemos por enquanto metaforicamente.  Começa pela contingência que leva  o poeta a escrever o poema, por certo.  Mas lógico que a questão não é essa, e sim, e sempre  é o resultado.  Melhor dizendo:  ronda o perigo de o resultado, o poema (ou o que se pretendeu que fosse) acabar sendo insuficiente, datado, ficar preso ao circunstancial, no sentido mais flébil do termo. O poeta olhará  frustrado, se tiver bom senso de autocrítica, o seu poema logrado. 

         Não chego a me considerar poeta.  Digo em termos de resultados do que escrevo ou tento escrever.  Nem sombra de falsa modéstia, é senso de meus limites mesmo,  ante o terrível poder da palavra poética, que me subjuga.  Embora, às vezes até ache que acerto a mão (não disse que não era falsa modéstia?).   Por exemplo: reativei este blog, que estava parado desde 2018, porque me assaltou a urgência de escrever ante os tempos funestos que vivemos e que se pintam – ou se maquiam, vá saber – com tintas de eternidade. Maquiagem ou máscara, como advertiu em célebre conferência Mário de Andrade, da necessidade de “pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece”.   Tenho escrito esses poemas últimos que publiquei neste blog premido por essas circunstâncias, premido pela necessidade –que tenho certeza de que não é vã – de responder ao tempo presente.   Esta necessidade não é vã, embora os resultados a que chego muitas vezes ou quase sempre o sejam.  Aí só o leitor avaliará.

         Ferir a carne dos dias com a palavra... escrevi a frase acima em registro, claro, metafórico. E acabei desdobrando-a em mais metáforas, mesmo alheias.   Para tentar ficar mais claro, mas no fundo tergiversando, passo para alguns exemplos:  poemas de Brecht e de Maiakovski conseguiam fazê-lo, feriam a carne dos dias.  O Drummond de A rosa do povo (Quem não entra com o russo em Berlim?) e de mais alguns poemas próximos cronologicamente a esse livro magistral, certamente.  O Mário de Andrade de Lira paulistana, idem (“Terremoto que a porta do pobre arromba”),  O Chico Buarque assertivo de “Construção” e “Deus lhe pague”,  cruel de “As caravanas”, divinatório de “A flor da terra”, o Caetano de “Um índio”, “Fora da ordem” e da letra de “Haiti” (a melodia é de Gil), o Gil de “Um sonho”...são alguns exemplos.   Talvez esses poucos sejam quase todos, pra falar a verdade, porque não é coisa fácil conseguir esse efeito de que falo.   E antes que me leiam errado: não estou dizendo que esses são, qualitativamente, os melhores poetas, ou que são os melhores poemas e canções desses criadores.   O que quer dizer:  ferir a carne dos dias com a palavra, responder com poesia ao tempo presente à altura, não é O critério de avaliação de um poema ou de uma canção.   Mas é sem dúvida um atestado de se ter atingido um grau de excelência no que foi proposto, a ser confirmado tão somente pelo escrito que o leitor atualiza.

         Não sei se me faço entender.  Mas eis que abro um livrinho umas 60 páginas do Guto Leite, chamado E outros poemas (Editora Zouk, 2024) e me deparo com um poema inicial já atordoante.  Em seguida vem este, que me nocauteia:


         o time que matou meninos em fevereiro

será mais uma vez campeão do brasileiro

 

trouxe de portugal um treinador tarimbado

         faltou para a revisão do ar-condicionado

 

uma zaga segura um meio-campo entertainer

         os garotos da base ficavam num container

 

centroavantes mortais em um esquema  que amassa

         é difícil enxergar quando tem tanta fumaça

 

a cada gol do artilheiro a galera delira

         não deu pra socorrer os moleques, que dormiam

 

aumenta a distância pro segundo colocado

         christian athila arthur rykelmo pablo bernardo

 

         gedson jorge samuel vitor morreram dez

todos sabem o que fazer com a bola nos pés

 

será mais uma vez campeão do brasileiro

         o time que matou meninos em fevereiro

 

         É um poema desconcertante, é um dos tais poemas que ferem a carne dos dias.  Tento ser um pouco mais preciso:  um poema capaz de dizer do tempo presente em sua concisão verbal, em sua precisão formal ao mesmo tempo em que,  justo por isso,  flagra este presente em visada capaz  de abranger em imagens terrificantes o esgoto, o esgoto calcinante em que vamos mais e mais nos tornando,  como país, como humanidade, que sei eu, como seres vinculados ao que chamamos modernidade, ao que chamamos Ocidente, ao que chamamos capitalismo.  Que começa, o poema,  por ser à queima-roupa em quem gosta de futebol, em quem tem um time, ou já gostou ou já teve e hoje não mais – volto a meu próprio exemplo.  E como não chorar, a não ser que se seja um canalha, com o absurdo fato da morte dos dez adolescentes da base de futebol do Flamengo em fevereiro de 2019?  Mas o magistral desempenho com que os versos se desnovelam ante nossos olhos, em um virtuosismo de craque poeta que fala ao mesmo tempo de futebol, de poesia e do medonho que nos cerca.   O belo da criação estética não se perde na indignação, o belo se faz  e se queima dentro do horror que contemplamos: “uma zaga segura, um meio campo entertainer/os garotos da base ficavam num container”.  Me tirou o fôlego.   Os dez meninos mortos nomeados em impressionantes  versos de 13 sílabas – chamados “bárbaros”, será um acaso? – , que se mantêm ao longo de todo o texto.  Guto não perde o andamento.

         E o pior, digo, o melhor.  Ou: o melhor é o pior.   O livrinho está cheio de poemas assim, de igual excelência. Que inclusive dialogam amorosa e asperamente com o melhor legado nosso em poemas, de Drummond (“ó louça infinita, Aleph de vasilhas,/se em espasmos de tempo sumires inaudita//nós vos recriaremos”) e outros poetas, em canções de Caetano (“o fim do mundo será por extenso//o menino do rio/derreteu”) e outros cancionistas (Guto também o é, com três CDs gravados).   São poemas de impressionante potência e – atenção – , Guto é um poeta residente em Porto Alegre, na Porto Alegre destes dias trágicos.   Seus poemas premonitórios são espantosos,  sem nada terem de divinatórios: são poemas de um poeta atento, leitor de seu tempo em suas implicações concretas, sociais, ecológicas. Capaz de poetizar o fato na medida mesmo em que sabe que fato e fatalidade não podem ser confundidos.

Por exemplo, no admirável e já citado “causas naturais”, dividido em nove segmentos, o poeta nos diz no segmento 2:

 

         os cabelos são arrancados

         à mão

         e um fio d’água

         correndo o cocoruto

 

         se espalha

 

         imagine então

         as margens

         desarvoradas

         de um rio

 

         E no encerramento do mesmo poema, no segmento 9:

        

            não há outro tema que não o fim do mundo

            é obsceno fazer poema sobre o fim do mundo

 

         A vontade que tenho, para fechar estas páginas de justo elogio disfarçado de crítica impressionista, é poder me estender a cada um dos poemas o quanto eles- todos eles –  merecem.  Quem sabe, me empenho dia desses,  num texto de maior fôlego.  Por ora, deixo aqui com vocês o também atordoante “A anoa” (que me remete a Murilo Mendes em sua modernização do arcaico num livro como Convergência), como um testemunho de que o tempo presente é sempre, como as pinturas rupestres a que o texto alude.  E que a poesia tem de estar sempre à sua altura. 

         Guto Leite, querido, professor doutor Carlos Augusto Bonifácio Leite, muito obrigado por estes e outros poemas e canções.

 

A ANOA

 

na parede de uma caverna

em leang bulu’sipong

uma anoa resiste

a caçadores com lanças

 

sobrevinda às crianças

de homens antes dos homens

às quilhas de brilhantes barcos

da frota srivijaya

às velas e caravelas

de dom francisco serrão

à companhia  holandesa

às bombas de hiroito

 

a anoa que não se rende

a quarenta e quatro mil rotas

como o gesto de seu artista

impresso na tez da rocha

está já por todo o tempo

que vir a ser o futuro

 

 

(Aqui uma postagem anterior sobre o mesmo poeta: https://robertobozzetti.blogspot.com/2018/02/guto-leite.html)

 



quinta-feira, 6 de junho de 2024

SONETO DO GATO MORTO, de Vinícius de Moraes

 



SONETO DO GATO MORTO

                        Vinícius de Moraes

Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade
 
De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.
 
Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e a morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto
 
Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.

 

Florença, novembro de 1963


MORAES, Vinícius de.  Obra reunida v. 1.  Org. Eucanaã Ferraz.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.