1. De “literato cantábile”
a) A virtude é a mãe do vício
conforme se sabe:
acabe logo comigo
ou se acabe.
b) A virtude e o próprio vício
- conforme se sabe –
estão no fim, no início
da chave.
c) Chuvas da virtude, o vício,
conforme se sabe:
é nela propriamente que eu me ligo,
nem disco, nem filme:
nada, amizade. Chuvas de virtude:
chaves.
d) (amar-te/a morte/morrer:
há urubus no telhado e a carne seca
é servida: um escorpião encravado
na sua própria ferida, não escapa: só escapo
pela porta da saída).
e) A virtude, a mãe do vício
como eu tenho vinte dedos,
ainda, e ainda é cedo:
você olha nos meus olhos
mas não vê nada, se lembra?
f) A virtude
mais o vício: início da
MINHA
transa, início, fácil, termino:
“como dois mais dois são cinco”
como Deus é precipício,
durma,
e nem com Deus no hospício
(durma) nem o hospicio
É refúgio. Fuja.
2. COGITO
Eu sou como eu sou
pronome
pessoal instranferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
Eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
Eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
Eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.
3. PESSOAL INTRANSFERÍVEL
Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.
Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena, etc. difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo, menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.
E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar: citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.
(In: Os últimos dias de paupéria, 1973)
Torquato Neto (1944-1972) era piauiense, ligado ao grupo tropicalista, trabalhava como jornalista e agitador cultural, sendo ainda um letrista importante, com parcerias de vulto com Caetano Veloso (“Mamãe, coragem: “Ai de mim Copacabana”...), Gilberto Gil (“Geleia Geral”, “Domingou”...), Edu Lobo (“Pra dizer adeus”...), Jards Macalé (“Let’s play that”), entre outros.
Torquato suicidou-se no dia de seu aniversário de 28 anos. Tinha diversas internações em hospitais psiquiátricos, e seus escritos dispersos (poemas, letras, cartas, anotações, diários etc) foram reunidos pela primeira vez por Waly Salomão na obra póstuma Os últimos dias de paupéria, cuja primeira edição foi lançada no ano seguinte ao de sua morte (uma 2ª. edição, revista e ampliada, saiu em 1982). Em 2004, Paulo Roberto Pires lançou Torquatália, em dois volumes (Do lado de dentro e Geleia geral) reunindo muito material inédito que se acrescentou ao que já havia antes saído.
Torquato é um poeta-letrista dos mais ricos de sua geração: como poeta, é nitidamente marcado por Drummond, a que eu acrescentaria ainda Oswald e a presença do experimentalismo concretista. Mas talvez o mais interessante do que deixou escrito é a constante preocupação de enlaçar ética e estética, fazer da linguagem um território a ser explorado de forma inseparável dos compromissos éticos com os quais severamente sua geração – e sua “turma “ – teve que se haver. Essa postura, “vitalista”, por assim dizer, faz com que possa pensar em Torquato como um nome chave (talvez junto com Waly) de transição entre a geração experimentalista das neovanguardas dos anos 60 e a geração dos poetas marginais da década seguinte.
No disco Cinema transcendental, de 1979, Caetano inclui “Cajuína”, uma canção homenagem-recordação de/a Torquato. Sérgio Brito, dos Titãs, põe melodia no texto de “Go back”, até então inédita, e a canção vira um dos grandes sucessos da banda em 1988.
"quem não se arrisca não pode berrar",
ResponderExcluirpena q foi embora cedo, crise dos 7...
Helga,
ResponderExcluirsó não entendi a "crise dos 7"... depois me explica?
beijão do
Roberto Bozzetti
Ele teve a crise existencial dos 27, no caso dele, 27+1...
ResponderExcluirObs. Guardei o último, "Pessoal Intransferível", lembrou quando vc disse (via facebook) que casca de poesia é pior que casca de ferida, não é?
Beijus, Helga.
Não lembro de ter formulado assim não, mas se você diz que eu disse não tenho por que duvidar. E concordo comigo, enfim. Quanto ao 27 + 1...
Excluirbeijos
do Bozzetti