domingo, 8 de junho de 2014

FRANCISCO ALVIM, VEJAM SÓ

 
 
 


... vejam só! descobri que este blog, que navega levianamente ao léu como um barco bêbado, contrariamente ao que se esperaria talvez de um empreendimento que à frente tem  um professor doutor em literatura, nunca publicou um poema, um mísero poema de FRANCISCO ALVIM, um dos poetas que mais amo dentre os surgidos da década de 1970 para cá.  Como é daquelas coisas que me soam inexplicáveis, para tirar o atraso e saldar a dívida vai aqui logo uma leva de sua poesia admirável, parente da prosa de Machado e Dalton Trevisan.

 



HISTÓRIA ANTIGA

Na época das vacas magras
redemocratizando o país
governava a Paraíba
alugava de meu bolso
em Itaipu uma casa
do Estado só um soldado
que lá ficava sentinela
um dia meio gripado
que passara todo em casa
fui dar uma volta na praia
e vi um pescador
com sua rede e jangada
mar adentro saindo
perguntei se podia ir junto
não me reconheceu partimos
se arrependimento matasse
nunca sofri tanto
jogado naquela velhíssima
jangada
no meio de um mar
brabíssimo
voltamos agradeci
meses depois num despacho
anunciaram um pescador
já adivinhando de quem
e do que se tratava
dei (do meu bolso) três contos
é para uma nova jangada
que nunca vi outra
tão velha
voltou o portador
com a seguinte noticia
o homem não quer jangada
quer um emprego público
 

 
APETITE
 
O problema do coelho
é que estava muito bom
mas
não tinha carne

 

QUER VER?

Escuta

 

ARGUMENTO

Mas se todos fazem

 

GREGORINHO

Mata o cachorro
e quando a dona acha ruim
diz
cala a boca senão vai junto

 

RESTO DE VIDA

A segurança nacional
está acima das legendas partidárias
o azar é dele
que quis enfrentar o Governo
só entra nessa quem quer
se um dia acontecer qualquer coisa aqui
vou morar na Suíça
onde tenho dinheiro para viver –
e muito bem –
o resto da vida

 

DISCORDÂNCIA

Dizem que quem cala consente
eu por mim
quando calo dissinto
quando falo
minto

 

SEM DENTES

Como vai?
Desse jeito

 

CASA PRÓPRIA

O emprego
não me cheira bem
mas o dinheiro
cheira

 

LUTA LITERÁRIA

Eu é que presto
 

 

DISSERAM NA CÂMARA
 
Quem não estiver seriamente preocupado e
perplexo
não está bem informado

 

MEU FILHO

Vamos viver a era do centauro
metade cavalo
metade também

 

LEOPOLDO

Minha namorada cocainômana
me procura nas madrugadas
para dizer que me ama
Fico olhando as olheiras dela
(tão escuras quanto a noite lá fora)
onde escondo minha paixão
Quando nos amamos
peço que me bata
me maltrate fundo
pois amo demais meu amor
e as manhãs empalidecem rápido
 

 
SOL DOS CEGOS

1. No cerne do instante
nada nos vê nada vemos
não nos explica o que somos
o que seremos
Matéria sem sonhos – nítida
matéria – nele nos temos
 
Sou astro, não sou estrela
meu calor não irradia –
a chama que me aquece
é fria
 
2. Sou astro, não sou estrela
minha luz não ilumina –
é lâmina com que me sangro
a retina
 
Francisco Alvim.  Poemas (1968-2000). 7Letras; CosacNaify, 2004.

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