quinta-feira, 19 de junho de 2014

MURILO MENDES

Ilustração de Talarico
 
 

O poema abaixo encerra o livro Tempo espanhol,  publicado por Murilo Mendes em Portugal   (Lisboa, Morais Editora) em 1959, em plena ditadura franquista.

 
 

O CRISTO SUBTERRÂNEO

Descubro um Cristo secreto
Que nasce na Espanha súbito.
 
Não é o Cristo vitorioso
Dos afrescos catalães,
Nem o Cristo de Lepanto
Suspenso por uma torre
De espadas, velas, paixões.
Não investe uma colina,
Não brilha no meio do altar
Entre ornamentos de prata.
Nem no palácio dos ricos,
Nem no báculo dos bispos.
É um Cristo quase secreto
Que nasce das catacumbas
Da Espanha não-oficial.
Nasce da falta de pão,
Nasce da falta de vinho,
Nasce da funda revolta
Contida pela engrenagem
Da roda de compressão.
Nasce da fé maltratada,
Vagamente definida.
 
É um Cristo dos operários
Atentos, em pé de greve,
Filhos de outros operários
Mortos na guerra civil.
É um Cristo dos estudantes
Sem dinheiro para as taxas.
É um Cristo dos prisioneiros
Que no silêncio cultivam
A pura flor da esperança.
É um Cristo de homens-larvas
Famintos, inacabados,
Morando em covas escuras
De Barcelona e Valência.
É um Cristo da experiência 
De padres inconformistas
Que não abençoam espadas
Nem incensam o ditador.
É um Cristo do tempo incerto.
É um Cristo do vir-a-ser,
Formado nos corações
Da Espanha que não se vê.
 

 

Murilo Mendes. Poesia completa e prosa.  RJ: Nova Aguilar, 1994.

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