segunda-feira, 12 de outubro de 2015

ALLEN, GINSBERG (1926-1997), “HOWL”; 60 anos da primeira leitura pública do poema

O jovem Ginsberg

         Foi em outubro de 1955, há 60 anos portanto, que “Howl”, o poema de Allen Ginsberg foi lido em público pela primeira vez, antes de sair em livro no ano seguinte, a cargo do poeta e editor Lawrence Ferlinghetti.   A leitura se deu em leitura pública numa galeria de arte  em San Francisco, organizada pelo próprio Ginsberg para recepcionar Jack Kerouac.  “Howl” é considerado um poema emblemático da Geração Beat, da poesia beat, repercutindo intensamente em todos os desdobramentos daqueles jovens “hipsters”, como então se chamavam,  e deflagrando todo o processo da culminaria mais ou menos dez anos depois nas escaramuças da contracultura, no movimento pelos direitos civis, na cultura hippie, no flower power, na resistência à intervenção americana no Vietnam.  O poema é dedicado a Carl Solomon, amigo de Ginsberg, escritor anarquista, dito habitualmente  neo-dadá, que se encontrava internado no manicômio de Rockland quando o poema foi escrito.

         A única tradução para o português, pelo menos do meu conhecimento, pelo menos no Brasil, é esta que apresento, de Cláudio Willer, de 1984.  Transcrevo a palavras do próprio Willer no Prefácio à edição de Uivo, Kaddish e outros poemas, tradução, organização e apresentação a seu encargo.  É Willer quem nos diz:

 

         “Sua publicação foi recebida com um processo de obscenidade, acarretando até mesmo a detenção de Ferlinghetti e a interdição do livro até o ano seguinte, quando foi liberado por decisão da Suprema Corte.  Uma vez comercializado, Uivo e outros poemas  foi um sucesso editorial, logo seguido pelo lançamento de outros textos dos Beat que estavam na gaveta ou na fila de espera das editoras: On the Road, de Kerouac e a poesia de Corso, Ferlinghetti, etc.  A criação de uma mística Beat teve a colaboração de matérias na grande imprensa, do Time Magazine e Life, divulgando-a mas também focalizando-a depreciativamente e tentando diluí-la. (...)

         A reação da crítica a Uivo foi, de um modo geral, muito desfavorável.  (...) Um artigo famoso de Norman Podhoretz (...) sintetiza e reproduz a maior parte das críticas: anti-intelectualismo ingênuo, desprezo por valores culturais, alegria de viver confundida com falta de engajamento e de consciência política (a postura de determina da esquerda para a qual o engajamento  implica o ressentimento e a culpa), etc. Há coisas piores ainda, como as críticas tentando demonstrar que a Beat era especificamente uma manifestação de viciados em drogas; ou seja, uma visão totalmente policialesca, esquecendo o fato de, naquele momento, correrem soltos os mais diversos tipos de drogas, sem que isso provocasse o aparecimento de uma miríade de poemas como Uivo ou de narrativas em prosa como On the Road.

         (...)

         Como muito bem lembra Ginsberg, essa postura da crítica teve apenas um efeito: atrasar o fim do período macarthista e a circulação de obras de cuja tradição eles faziam parte, como a de  [Walt] Whitman, [William Carlos] Williams e [Hart] Crane.”

         Este blog nunca ostentou uma postagem tão extensa.  De fato o  poema é, para os padrões poéticos atuais (pós-Poe?), bastante grande.   Mas a importância de texto tão emblemático para a poesia que se estende da segunda metade do século XX aos nossos dias,  e a qualidade da tradução e do trabalho dedicado a toda a divulgação dos Beat no Brasil empreendido por Cláudio Willer o justificam.  E vou mesmo quebrar o protocolo do blog, deixando de postar o texto original em inglês.  Mas ao final da tradução o caro leitor terá a grata supresa de se deparar com um link para um vídeo de animação assinado por Eric Drooker, legendado (em inglês), para Uivo.  Drooker, que conviveu com Ginsberg nos anos 80/90, exercita sua autonomia de artista gráfico, quadrinhista, desenhista de animação,  e não segue o poema na íntegra.  Mas sua obra é uma eloqüente leitura intersemióticfa do poema.

         E dou aqui ainda o link para o excelente blog de Cláudio Willer. https://claudiowiller.wordpress.com/


Ginsberg no Royal Albert Hall

UIVO


         Para Carl Solomon

I
 
 
Eu vi os expoentes da minha geração, destruídos pela
loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada
em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo
contato celestial com o dínamo estrelado da
maquinaria da noite,
que pobres esfarrapados e olheiras fundas, viajaram
fumando sentados na sobrenatural escuridão dos
miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando
sobre os tetos das cidades contemplando o jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado
e viram anjos maometanos cambaleando iluminados
nos telhados das casas de cômodos,
que passaram por universidades com olhos frios e
radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz
de Blake entre os estudiosos da guerra,
que foram expulsos das universidades por serem loucos
& publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes pintura
descascada em roupa de baixo queimando seu
dinheiro em cestos de papel escutando o Terror
através da parede,
que foram detidos em suas barbas púbicas voltando
por Laredo com um cinturão de marihuana para
Nova Iorque,
que comeram fogo em hotéis mal pintados ou
beberam terebentina em Paradise Alley, morreram ou
flagelaram seus torsos noite após noite com
sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília,
alcool e caralhos em intermináveis orgias,
incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula,
e clarão na mente pulando nos postes dos pólos de
Canadá & Paterson, iluminando completamente o
Mundo imóvel do Tempo intermediário,
solidez de Peite dos corredores, aurora de fundo de
quintal das verdes árvores do cemitério, porre de vinho
nos telhados, fachadas de lojas de subúrbio
na luz cintilante de neon do tráfego na
corrida de cabeça feita do pazer, vibrações de
sol e lua e árvore no tronco de crepúsculo de
inverno de Brooklyn, declamações entre latas
de lixo e a suave soberana luz da mente,
que se acorrentaram aos vagões do metrô para o
infindável percurso do Battery ao sagrado Bronx
de benzedrina até que o barulho das rodas e
crianças os trouxesse de volta, trêmulos, a boca
arrebentada o despovoado deserto do cérebro
esvaziado de qualquer brilho na lúgubre luz do
Zoológico,
que afundaram a noite toda na luz submarina
de Bickford´s, voltaram à tona e passaram a tarde
de cerveja choca no desolado Fuggazi´s escutando
o matraquear da catástrofe na vitrola
automática de hidrogênio,
que falaram setenta e duas horas sem parar do
parque ao apê ao bar ao Hospital Bellevue ao
Museu à Ponte do Brooklyn,
Batalhão perdido de debatedores platônicos saltando
dos gradis das escadas de emergência dos parapeitos
das janelas do Empire State da Lua,
tagarelando, berrando, vomitando, sussurrando fatos
e lembranças e anedotas e viagens visuais e choques
nos hospitais e prisões e guerras,
intelectos inteiros regurgitados em recordação total
com os olhos brilhando por sete dias e noites,
carne para a sinagoga jogada à rua,
que desapareceram no Zen de Nova Jersey de
lugar algum deixando um rastro de postais ambíguos
do Centro Cívico de Atlantic City,
sofrendo suores orientais, pulverizações tangerianas
de ossos e enxaquecas da China por causa da
falta da droga no quarto pobremente mobiliado de Newark,
que deram voltas e voltas à meia noite no pátio da
ferrovia perguntando-se aonde ir e foram, sem
deixar corações partidos,
que acenderam cigarros em vagões de carga, vagões
de carga, vagões de carga, que rumavam ruidosamente
pela neve até solitárias fazendas dentro da noite do avô,
que estudaram Plotino, Poe, São João da Cruz, telepatia
e bop-cabala pois o Cosmos instintivamente
vibrava a seus pés em Kansas,
que passaram solitários pelas ruas de Idaho procurando
anjos índios e visionários que eram anjos índios e visionários
que só acharam que estavam loucos quando Baltimore
apareceu em estase sobrenatural,
que pularam em limusines com o chinês de Oklahoma
no impulso da chuva de inverno na luz das ruas
da cidade pequena à meia-noite,
que vaguearam famintos e sós por Huston procurando
jazz ou sexo ou rango e seguiram o espanhol
brilhante para conversar sobre a América e a Eternidade,
inútil tarefa, e assim embarcaram
num navio para a África,
que desapareceram nos vulcões do México
nada deixando além da sombra das suas calças
rancheiras e a lava e a cinza da poesia espalhadas
pela lareira Chicago,
que reapareceram na Costa Oeste investigando o FBI
de barba e bermudas com grandes olhos pacifistas
e sensuais nas suas peles morenas, distribuindo
folhetos ininteligíveis,
que apagaram cigarros acesos nos seus braços
protestando contra o nevoeiro narcótico de
tabaco do Capitalismo,
que distribuiram panfletos supercomunistas em Union
Square, chorando e despindo-se enquanto as
Sinrenes de Los Alamos os afugentavam gemendo
mais alto que eles e gemiam pela Wall Street e
também gemia a balsa de Staten Island
que caíram em prantos em brancos ginásios desportivos,
nus e trêmulos diante da maquinaria de outros esqueletos,
que morderam policiais no pescoço e berraram de
prazer nos carros de presos por não terem cometido
outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica,
que uivaram de joelhos no metrô e foram arrancados do
telhado sacudindo genitais e manuscritos,
que se deixaram foder no rabo por motociclistas
santificados e berraram de prazer,
que enrabaram e foram enrabados por esses serafins
humanos, os marinheiros, carícias de amor
atlântico e caribeano,
que transaram pela manhã e ao cair da tarde em
roseirais, na grama de jardins públicos e cemitérios,
espalhando livremente seu sêmen para
quem quisesse vir,
que soluçaram interminavelmente tentando gargalhar
mas acabaram choramingando atrás de um tabique
de banho turco onde o anjo loiro e nu veio
trespassá-los com sua espada,
que perderam seus garotos amados para as três
megeras do destino, a megera caolha do dólar heterossexual, megera caolha
que pisca de dentro do ventre e a megera caolha que só sabe
sentar sobre sua bunda retalhando os dourados
fios intelectuais do tear do artesão,
que copularam em êxtase insaciável com um garrafa
de cerveja, uma namorada, um maço de cigarros, uma
vela, e caíram na cama e continuaram
pelo assoalho e pelo corredor e terminaram
desmaiando contra a parede com uma visão da
boceta final e acabaram sufocando o derradeiro lampejo da
consciência,
que adoçaram as trepadas de um milhão de garotas
trêmulas ao anoitecer, acordaram de olhos vermelhos
no dia seguinte mesmo assim prontos
para adoçar trepadas na aurora, bundas luminosas
nos celeiros e nus no lago,
que foram transar em Colorado num miríade de
carros roubados à noite, N.C., herói secreto destes
poemas, garanhão e Adônis de Denver – prazer
ao lembrar suas incontáveis trepadas com garotas
em terrenos baldios & pátios dos fundos de
restaurantes de beira de estrada, raquíticas fileiras
de poltronas de cinema, picos de montanha
cavernas com esquálidas garçonetes no
familiar levantar de saias solitário à beira da
estrada & especialmente secretos solipsismos de
mictórios de postos de gasolina & becos da cidade
natal também,
que se apagaram em longos filmes sórdidos, foram
transportados em sonho, acordaram num
Manhattan súbito e conseguiram voltar com uma
Impiedosa ressaca de adegas de Tokay e horror
dos sonhos de ferro da Terceira Avenida &
cambalearam até as agências de desemprego,
que caminharam a noite toda com os sapatos cheios
          de sangue pelo cais coberto por montões de
neve, esperando que uma porta se abrisse no
East River dando para um quarto cheio de vapor e ópio,
que criaram grandes dramas suicidas nos penhascos
de apartamentos do Huston à luz azul de holofote
antiaéreo da luta & suas cabeças receberão
coroas de louro no esquecimento,
que comeram o ensopado de cordeiro da imaginação
ou digeriram o caranguejo do fundo lodoso dos
rios de Bovery,
que choraram diante do romance das ruas com seus
carrinhos de mão cheios de cebola e péssima música,
que ficaram sentados em caixotes respirando a
escuridão sob a ponte e ergueram-se para construir
clavicórdios em seus sótãos,
que tossiram num sexto andar do Harlem coroando de
chamas sob um céu tuberculoso rodeados pelos
caixotes de laranja da teologia,
que rabiscaram a noite toda deitando e rolando sobre
invocações sublimes que ao amanhecer amarelado
revelaram-se versos de tagarelice sem sentido,
que cozinharam animais apodrecidos, pulmão coração
pé rabo borsht & tortilhas sonhando com
o puro reino vegetal,
que se atiraram sob caminhões de carne
em busca de um ovo,
que jogaram seus relógios do telhado fazendo seu
lance de aposta pela Eternidade fora do Tempo
& despertadores caíram em suas cabeças por
todos os dias da década seguinte,
que cortaram seus pulsos sem resultado três vezes
seguidas, desistiram e foram obrigados a abrir
lojas de antiguidades onde acharam que estavam
ficando velhos e choraram,
que foram queimados vivos em seus inocentes
ternos de flanela em Madison Avenue no meio das
rajadas de versos de chumbo & o estrondo contido
dos batalhões de ferro da moda & os guinchos
de nitroglicerina das bichas da propaganda &
o gás mostarda de sinistros editores inteligentes
ou foram atropelados pelos taxis bêbados
da Realidade Absoluta,
que se jogaram da ponte de Brooklyn, isso realmente
aconteceu, e partiram esquecidos e desconhecidos
para dentro da espectral confusão das ruelas
de sopa & carros de bombeiros de Chinatown,
nem uma cerveja de graça,
que cantaram desesperados nas janelas, jogaram-se
da janela do metrô saltaram no imundo rio
Paissac, pularam nos braços dos negros, choraram
pela rua afora, dançaram sobre garrafas
quebradas de vinho descalços arrebentando
nostálgicos discos de jazz europeu dos anos 30
na Alemanha, terminaram o whisky e vomitaram
gemendo no toalete sangrento, lamentações nos
ouvidos e o sopro de colossais apitos a vapor,
que mandaram brasa pelas rodovias do passado
viajando pela solidão da vigília da cadeia de
Gólgota de carro envenenado de cada um ou então
a encarnação do Jazz de Birmingham,
que guiaram atravessando o país durante setenta e duas
horas para saber se eu tinha tido uma visão ao se ele tinha
tido uma visão para descobrir a Eternidade,
que viajaram para Denver, que morreram em Denver,
que retornaram a Denver & esperaram em vão,
que espreitaram Denver & ficaram parados pensando
& solitários em Denver e finalmente partiram
para descobrir o Tempo & agora Denver está
saudosa de seus heróis,
que caíram de joelhos em catedrais sem esperança
rezando por sua salvação e luz e peito até que a
alma iluminasse seu cabelo por um segundo,
que se arrebentassem nas suas mentes na prisão
aguardando impossíveis criminosos de cabeça
dourada e o encanto da realidade em seus corações
que entoavam suaves blues de Alcatraz,
que se recolheram ao México para cultivar um
vício ou às Montanhas Rochosas para o suave
Buda ou Tânger para os garotos do Pacífico Sul
para a locomotiva negra ou Havard para Narciso
para o cemitério de Woodlaw para a coroa
de flores para o túmulo,
que exigiram exames de sanidade mental acusando
          o rádio de hipnotismo & foram deixados com sua
loucura & e mãos & um júri suspeito,
que jogaram salada de batata em conferencistas da
Universidade de Nova Iorque sobre Dadaísmo
e em seguida se apresentaram nos degraus de
granito do manicômio com cabeças raspadas e
fala de arlequim sobre suicídio, exigindo
lobotomia imediata,
e que em lugar disso receberam o vazio concreto da
insulina metrazol choque elétrico hidroterapia
psicoterapia terapia ocupacional pingue-pongue
& amnésia,
que num protesto sem humor viraram apenas uma
mesa simbólica de pingue-pongue mergulhando
logo a seguir na catatonia,
voltando anos depois, realmente calvos exceto por
uma peruca de sangue e lágrimas e dedos
para a visível condenação de louco nas celas da
cidades-manicômio do Leste,
Pilgrim State, Rockland, Greystone, seus corredores
fétidos, brigando com os ecos da alma, agitando-se
e rolando e balançando no banco de solidão à
meia-noite dos domínios de mausoléu
druídico do amor, o sonho da vida um
pesadelo , corpos transformados em pedras
tão pesadas quanto a lua,
com a mãe finalmente ***** e o último livro
          fantástico atirado pela janela do cortiço e a última
porta fechada às 4 da madrugada e o último
telefone arremessado contra a parede em
resposta e o último quarto mobiliado esvaziado até
a última peça de mobília mental, uma rosa de papel
amarelo retorcida num cabide de arame do armário
e até mesmo isso imaginário, nada mais
que um bocadinho esperançoso de alucinação -
ah, Carl, enquanto você não estiver a salvo eu não
estarei a salvo e agora você está inteiramente
mergulhado no caldo animal total do tempo –
e que por isso correram pelas ruas geladas obcecadas
por um súbito clarão da alquimia do uso da elipse
do catálogo do metro inviável & do plano vibratório,
que sonharam e abriram brechas encarnadas no
Tempo & Espaço através de imagens justapostas
e capturaram o arcanjo da alma entre 2 imagens
visuais e reuniram os verbos elementares e
juntaram o substantivo e o choque da consciência
sSaltando numa sensação de Pater Omnipotens
Aeterne Deus,
para recriar a sintaxe e a medida da pobre prosa
humana e ficaram parados à sua frente, mudos e
inteligentes e trêmulos de vergonha, rejeitados
todavia expondo a alma para conformar-se ao
ritmo do pensamento em sua cabeça nua e infinita,
o vagabundo louco e Beat angelical no Tempo,
desconhecido mas mesmo assim deixando aqui
o que houver para ser dito no tempo após a morte,
e se reergueram reencarnados na roupagem
fantasmagórica do jazz no espectro de trompa
dourada da banda musical e fizeram soar o
sofrimento da mente nua da América pelo
amor num grito de saxofone de eli eli lama lama
sabactani que fez com que as cidades tremessem
até seu último rádio,
com o coração absoluto do poema da vida arrancado
de seus corpos bom para comer por mais mil anos
 
 
 
 
 
 
II

 
 
Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus
crânios e devorou seus cérebros e imaginação?
Moloch! Solidão! Sujeira! Fealdade! Latas de
Lixo o dólares intangíveis! Crianças berrando
sob as escadarias! Garotos soluçando nos
exércitos! Velhos chorando nos parques!
Moloch! Moloch! Pesadelo de Moloch! Moloch o
mal-amado! Moloch mental! Moloch o pesado
juiz dos homens!
Moloch a incompreensível prisão! Moloch o
presidio desalmado de tíbias cruzadas e o Congresso
dos sofrimentos! Moloch cujos prédios são
julgamento! Moloch a vasta pedra da guerra!
Moloch os governos atônitos!  
Moloch cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujo
sangue é dinheiro corrente! Moloch cujos
dedos são dez exércitos! Moloch cujo peito é
um dínamo canibal! Moloch cujo ouvido é
um túmulo fumegante!
Moloch cujos olhos são mil janelas cegas! Moloch
cujos arranha-céus jazem ao longo de ruas como
Infinitos Jeovás! Moloch cujas fábricas sonham
e grasnam na neblina! Moloch cujas colunas de fumaça
e antenas coroam as cidades!
Moloch cujo amor é interminável óleo e pedra!
Moloch cuja alma é eletricidade e bancos!
Moloch cuja pobreza é o espectro do gênio!
Moloch cujo destino é uma nuvem de hidrogênio
sem sexo! Moloch cujo nome é a Mente!
Moloch em que permaneço solitário! Moloch em
que sonho com anjos! Louco em Moloch!
chupador de caralhos em Moloch! Mal-amado
e sem homens em Moloch!
Moloch que penetrou cedo na minha alma! Moloch
em quem sou uma consciência sem corpo!
Moloch que me afugentou do meu êxtase natural!
Moloch a quem abandono! Despertar em Moloch!
Luz escorrendo do céu!
Moloch! Moloch! Apartamentos de robôs! Subúrbios
invisíveis! Tesouros de esqueletos! Capitais cegas!
indústrias demoníacas! Nações espectrais! Invencíveis hospícios! Caralhos de granito! Bombas monstruosas!
Eles quebraram suas costas erguendo Moloch ao Céu!
Calçamento, arvores, rádios, toneladas! Levantando
a cidade ao Céu que existe e está em todo lugar
ao nosso redor!
Visões! Profecias! Alucinações! Milagres! Êxtases!
descendo pela correnteza do rio americano!
Sonhos! Adorações! Iluminações! Religiões! O
carregamento todo em bosta sensitiva!
Desabamentos! Sobre o rio! Saltos e crucificações!
         descendo a correnteza! Ligados! Epifanias!
         Desesperos! Dez anos de gritos animais e suicídios!
mentes! Amores novos! Geração louca! Jogados
nos rochedos do Tempo!
Verdadeiro riso no santo rio! Eles viram tudo! O olhar
selvagem! Os berros sagrados! Eles deram adeus!
pularam do telhado! Rumo à solidão! Acenando! Levando
flores! Rio abaixo! Rua acima!

Com Bob Dylan

Com Paul MacCartney
 
 
 
III
 

Cal Solomon! Eu estou com você em Rockland
onde você está mais louco do que eu
Eu estou com você em Rockland
onde você deve sentir-se muito estranho
Eu estou com você em Rockland
onde você imita a sombra da minha mãe
Eu estou com você em Rockland
onde você assassinou suas doze secretárias
Eu estou com você em Rockland
onde você ri desse humor invisível
Eu estou com você em Rockland
onde somos grandes escritores na mesma
abominável máquina de escrever
Eu estou com você em Rockland
onde seu estado se tornou muito grave e é
noticiado pelo rádio
Eu estou com você em Rockland
onde as faculdades do crânio não agüentam
         mais os vermes dos sentidos
Eu estou com você em Rockland
onde você bebe o chá dos seios das solteironas
de Utica
Eu estou com você em Rockland
onde você bolina os corpos das suas
enfermeiras as harpias do Bronx
Eu estou com você em Rockland
onde você grita de dentro de uma camisa de
força que está perdendo o verdadeiro jogo
de pingue-pongue do abismo
Eu estou com você em Rockland
onde você martela o piano catatônico a alma
é inocente e imortal e nunca poderia morrer
impiamente num hospício armado,
Eu estou com você em Rockland
onde com mais de cinqüenta eletrochoques
sua alma nunca mais retornará a seu corpo de
volta de sua peregrinação rumo a uma cruz
no vazio
Eu estou com você em Rockland
onde você acusa seus médicos de loucura e
prepara a revolução socialista hebraica contra
o Gólgota nacional e fascista
Eu estou com você em Rockland
onde você rasga os céus de Long Island e faz
surgir seu Jesus vivo e humano do túmulo
sobre-humano
Eu estou com você em Rockland
onde há mais de vinte e cinco mil camaradas
loucos todos juntos cantando os versos finais da
Internacional
Eu estou com você em Rockland
onde abraçamos e beijamos os Estados Unidos
sob nossas cobertas os Estados Unidos que
tossem a noite toda e não nos deixam dormir
Eu estou com você em Rockland
onde despertamos eletrocutados do coma pelos
nossos próprios aeroplanos da mente roncando
sobre o telhado eles vieram jogar bombas
angelicais o hospital ilumina-se paredes imaginárias
desabam Ó legiões esqueléticas correi para fora
o choque de misericórdia salpicado de estrelas
a guerra eterna chegou Ó vitória esquece tua roupa
de baixo estamos livres
Eu estou com você em Rockland
nos meus sonhos você caminha gotejante de volta
de uma viagem marítima pela grande rodovia que
atravessa a América em lágrimas até a porta do
meu chalé dentro da Noite Ocidental.
Tradução de Cláudio Willer
 
In: Allen Ginsberg. Uivo, Kaddish e outros poemas.  Seleção, tradução e notas de Cláudio Willer. Porto Alegre. L&PM, 1984.
 

Com Carl Solomon
 
Aqui o link para o vídeo com a excelente animação Howl, de Eric Drooker, com legendas em inglês.

 

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