Em
1982 dei por pronto o Pouca vergonha,
que teria sido meu primeiro livro a ser editado. Era um volume que reunia 43 poemas, com uma estrutura
dual – no fundo, o velho Ariel e Caliban que Álvares de Azevedo foi buscar em
Shakespeare– mas internamente desordenada. Sendo mais explícito: uma parte dos
poemas seria regida pela “Musa séria”, outra pela “Musa galhofeira (paródica e
autoparódica)”, só que entremeadas na estrutura interna do livro, nem sempre
havendo uma delimitação clara entre as duas partes – ou as duas musas. Mas como na verdade eu achava importante, mais do que deixar claro
essa diferença entre, digamos, o “espírito” dos poemas, sinalizar para uma suposta “originalidade” na
estrutura do livro, urdi o seguinte: os poemas de índole paródica entrariam e
sairiam de maneira intempestiva, irregularmente, de modo a tentar desmanchar o discurso sério
dos demais e causar algum estranhamento no leitor pela
sua ocorrência inesperada, como se os poemas na verdade fossem quase que uma anotação apócrifa, irreconhecível,
perturbadora e meio que incontrolável ante o tom dos demais. Para isso, resolvi brincar com um dado que
cultivava ainda certo anacronismo,
homenageando uma paródia radiofônica, o programa PRK-30 (Lauro Borges e Castro
Barbosa!), que naquele começo de década de há muito já não existia, mas de que
sempre ouvira falar e do qual tinham sido feitos dois LPs que eu ouvia a ponto de arranhá-los
pelo uso. Assim, o título do livro
ganhou um subtítulo e ficou deste jeito: Pouca vergonha – com a interferência da
transmissão apócrifa e clandestina do radiolivro O sarau do troglodita.
Foi em 1983, enquanto eu cursava uma excelente
especialização em Modernismo na UERJ – que então iniciava a sua
pós-graduação – que a professora Dirce Cortes Riedel, de querida memória, que
coordenava o curso, leu meu livro, gostou e me encaminhou a um editor no Rio,
de editora que publicava muita poesia – bancada pelos autores, claro – e que vinha
ganhando certo prestígio no meio intelectual.
Daí para a frente tudo deu errado com meu Pouca vergonha: recebido o dinheiro adiantado, a pretexto de que
era muito trabalhoso graficamente, devido às irrupções “incontroláveis” do
troglodita em seu sarau, que previa uso de tipos diferentes de letras e dificultaria ainda sobremaneira a paginação e a
diagramação do volumezinho (o que não deixava de ser verdade), o fato é que o editor acabou me enrolando, pretextando
problemas de ordem gráfica cada vez mais insolúveis, sem jamais vislumbrar soluções alternativas, e acabando por não produzir
livro nenhum. Enfim: me dando o
cano. Depois de quase um ano de idas e
vindas na tentativa de editar o livro , acabei por processar editor e editora – foi quando eu soube que era
mais um que o fazia –, e lá por 1986,
1987 talvez, ganhei a causa, recebi de
volta a grana, mas... já não queria mais saber do Pouca vergonha. Achava-o
muito datado, muito colado a um pastiche
de poesia marginal, mais do que
propriamente paródia de qualquer coisa, deixei-o para lá.
Tem algum
tempo, topei aqui em casa com o livro datilografado, cópias de poemas que o
integravam e de muitos outros, e em meio a um papelório em vias de ir-se em pó,
repassei o Pouca vergonha para o
arquivo do computador. Como eu recuperei
também várias anotações, consegui determinar
a data de alguns poemas, pena que menos da metade deles. Mas dá pra saber com segurança que foram
escritos entre 1976 e 1982, ou seja, dos meus 20 aos 26 anos, praticamente
durante toda a minha graduação em Letras.
Me divirto ainda hoje com alguns deles, especialmente os paródicos –
embora datados, alguns são comentários que ainda acho divertidos, muitos
versando sobre poesia e vida literária, alguns até bem resolvidos poeticamente, segundo avalio;
os mais “sérios” são praticamente todos insalváveis. Ainda assim, para minha surpresa gerada pela
desmemória, me toco que um poema do Firma irreconhecível, que inclusive já
postei aqui, “Obversão”, é uma retomada de um poema do livro antigo. E quanto aos humorísticos, uma vez ao mostrar ao Marcelo
Diniz a tresloucada “biografia de Victor Hugo” que consta do conjunto, ele
disse que eu era “o inventor do besteirol”, e acho mesmo que o disse em intenção, se talvez se possa assim dizer,
sem me enganar, quer dizer, salvo engano, ou má avaliação, digamos, elogiosa.
* v. Nota ao final |
Lembro
ainda que quando pensava editá-lo eu queria que a capa do Pouca vergonha, assim como
todo o trabalho gráfico do volume, evocasse um tipo de desenho antigo que
de vez em quando eu via n’O Pasquim. Sem ter muita certeza do que seria, pensava
em algo como se fossem gravuras sacanas, e ao mesmo tempo inocentes, de crianças em situações ambíguas, embaraçosas
sem perder a aura de inocência infantil...
como de vez em quando eu topava com Fausto Wolff, remanescente dos tempos
heróicos do velho semanário, falei com ele do que eu estava querendo, e ele prontamente dispôs me atender – já
contei isso aqui também – me arranjando umas cópias de ilustrações de ótima qualidade exatamente do que eu
pensava. Creio que na ocasião ele não me
falou nada da autoria daqueles maravilhosos desenhos, que desde há algum tempo,
passeando pela rede, descobri tratarem-se de obras de uma gravurista francesa
do século XVII, Claudine Bouzonnet-Stella (1636-1697). Aqui neste link http://semema.com/brincadeiras-e-jogos-infantis-do-seculo-xvii/
há uma boa
amostra dessas gravuras, que trazem ainda pequenos – e deliciosos - poeminhas
como legendas, várias das quais – como a que ilustra esta postagem, ‘
“Brincadeira do peido na cara” – estavam
entre as que Wolff me apresentara e presenteara.
Quanto aos poemas do livro propriamente
dito, agora ao preparar este texto dei uma passeada pela “Advertência” que o
abre. Me deparei com parágrafos assim:
“foi
só me pôr a refletir na multiplicidade de eus
que me habitavam que a interferência se insinuou decisiva: “aí hem, realizando
seu sonho, seu fernando pessoa de merda!”
Bem, todo
este passeio me ensejou a fazer uma postagem que trouxesse um pouco do Pouca vergonha aqui para o Firma irreconhecível. Posto portanto a seguir dois poemas da “Musa
séria” ensanduichando quatro pequenos poemas paródicos. Estes têm por título geral “Rápidas apostilas: Supletivos de todos os
graus”; abro e fecho com os dois da
“Musa séria”: respectivamente, “Quadro” e “Instante”, este talvez o mais antigo do
conjunto, amostra fiel da minha “lira dos vinte anos” particular.
QUADRO
no
almanaque
encontrei
um teu retrato.
fiquei com
saudade olhando pra mim
e espanei
a poeira daquilo
que hei de
viver um dia
numa cidade
de sonho
e concreto
tão perto
um teu
retrato me dizia de tudo
(rápidas apostilas:
Supletivo de todos os graus
Instrução
(militarização pedagógica
ensinam
a deitar no chão
e fingir
de morto
(literatura
Modernidade
alguns
vestidos têm fímbria
outros
gente dentro
O pequeno-burguês aposentado
( história
natural
(na idade de ler Proust
EM BUSCA
DO TEMPO PERDIDO
às custas do dinheiro ganho
Evolucionismo
não
tendo mais feijão
daremos
graças
pelo
arroz concedido
não
tendo mais arroz
daremos
graças
pelo pão
concedido
não
tendo mais pão
daremos
graças
pelo sal
concedido
e não
tendo mais sal
lamentaremos
tanto mar
INSTANTE
quebro o
vidro da noite
e te
acordo
quem me
cortou bruscamente o sonho?
quem
caminha pela calçada?
quem foi
que matou a mulher
no
desespero da madrugada?
quem volta
bêbado e exausto
de mais
noites amarguradas?
quem
perdeu seu amigo e agora
corta os
pulsos exasperado?
quem
acabou o poema
e fecha a
tampa da privada?
quem
beijou minha boca hoje?
quem me
trouxe para casa?
quem me
puxou as cobertas?
quem me
aqueceu do frio?
quem
morreu por mim agora
ou pela
desconhecida amada?
* Nota: Ao pé da gravura, reproduzida em publicação tal como colhida na fonte indicada no site acima, há, sem indicação de autoria, os seguintes versos:
“Ce plaisir est fort innocent,
Et dans ce jeu divertissant
Les enfants se donnent carrière;
Mais, comme ils se serrent de pres,
Soit par megarde, ou tout express,
Le nez doit craindre le derrière.”
quem
quebra vidros a essa hora
de
perguntas mal acordadas?
dormes.
* Nota: Ao pé da gravura, reproduzida em publicação tal como colhida na fonte indicada no site acima, há, sem indicação de autoria, os seguintes versos:
Les enfants se donnent carrière;
Mais, comme ils se serrent de pres,
Soit par megarde, ou tout express,
Le nez doit craindre le derrière.”
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