domingo, 20 de outubro de 2024

 OUVIR FRED MARTINS E MARCOS SUZANO: BARBARIZANDO GERAL

O desenho da capa é do próprio Fred Martins



FRED MARTINS é um cancionista de mão cheia.  Dito isto, ora pois,  viva o clichê adequado!   E vamos continuar em tom "jornalístico":  Chega agora a seu oitavo disco – sem contar  um inaugural, ainda em vinil, um EP de seis faixas lançada nos idos de 1992 pelo fugaz selo Niterói Discos, cuja capa penduro aqui:




.    Tempo passou,  Fred se viu um dia,  meio que por acaso, numa excursão de cara&coragem&voz&violão,  sozinho e um tanto sem pouso certo,   pela Europa,   e foi se apresentar  numa mostra de música numa universidade alemã (acho que em Hamburgo, não sei ao certo) quando se deu conta de  que por lá havia uma plateia disposta a ouvir sua música ("Um auditório grande, de universidade, cheio de gente que não sabia nada de português, em silêncio respeitoso, ouvindo o que eu tinha pra mostrar, e depois um acolhimento interessado, generoso", ele me contou na época). Pronto:  um pouco antes, ele tinha ganho,   em 2006, o 9º Prêmio Visa de Música Brasileira (vencedor por unanimidade do júri e da votação popular), acabou gravando um DVD por conta do prêmio, mas também, por outro e mesmo lado,  já tinha percebido  que aqui a maré já não estava pra peixe, a água estava virando pó para quem faz música de talento, de proposta, de substância - e são tantos, são muitos.  Mas Fred  desanimou de vez com o panorama dos brasis,  cujas comportas "do sucesso" - ou apenas da visibilidade e da audição dignas -  estão abertas  para fazer sobreviver – ou melhor, viver  bem – só quem entra nas engrenagens da "música gospel", dos sertanários universitejos, das celebridades instantâneas,  e então...  depois de algumas idas e vindas,  frutos de convites diversos, ele  decidiu se fixar    na Europa. Era 2010.  Por aqui deixou,  antes de decidir partir de vez,  duas canções que obtiveram alguma repercussão:  “Novamente” (parceria com Alexandre Lemos), gravada por Ney Matogrosso em 2000 - incluída numa trilha sonora de novela na Globo - , e “Flores” (parceria  com Marcelo Diniz), que Zélia Duncan registrou em 2001. Fixou-se por  sete anos na Galícia – onde gravou  um CD excepcional com a cantora galega Ugia Pedreira em 2012 (Acrobata), e  atualmente está em Lisboa há 7 anos, onde também já lançou diversos CDs, participando nesse tempo ainda de trabalhos  com músicos locais e europeus em geral, compondo trilha sonora inclusive para um balé russo em homenagem a Oscar Niemeyer.  Fez vários giros pela Europa tendo como partner ninguém menos do que Jaques Morelenbaum, apresentou-se em Cabo Verde, no Canadá, enfim, tem passeado pelo mundo. 


Feita esta apresentação breve, pois bem:  Fred juntou-se agora ao excepcional percussionista Marcos Suzano e zás! lançou no último dia 15 uma obra-prima, o CD BARBARIZANDO GERAL, pelo selo Biscoito Fino, trabalho que há tempos vinha sendo gravado em estúdios entre Lisboa e Rio.   É disco de uma força danada, cuja capa é desenhada pelo próprio Fred.   Poucos trabalhos como este - cito de cabeça e rápido o Besta Fera, de Jards Macalé (2019) e o Moribundas vontades, de Fernando Pellon (2016)  entre poucos exemplos -, são capazes de flagrar a maré montante de brutalidade que vivemos neste tempo-lugar e lançar a arte como antídoto para não naufragarmos de vez.   Mas para quem acompanha mais de perto seu trabalho a  maior das surpresas que traz é o fato de  Fred Martins ter assumido também as letras de suas  canções em quatro  das dez faixas, cada uma melhor do que a outra.  Abre com a  faixa-título,  “Barbarizando geral”, um samba sacudido e contundente, que manda logo ver:  “Com tanta gente crente/que cretinamente é contra o diferente/ os velhos ratos do mercado vão seguir barbarizando geral /enquanto o insano e podre bicho humano/vai entrando pelo cano/eu vou chorando minha tão sentida lágrima de crocodilo”.  E o tom irado e irônico vai atravessando o disco, mesclado a maravilhas de pura lírica (resistência à barbárie, como dizia um velho alemão), como em ‘Este amor é Lume /este amor anima/incandesce cada grão /este amor chegou /desconhece a paz /arde este amor demais...” (“Este amor tem nome”).   As duas outras letras que também levam sua assinatura no disco são excelentes:  o irresistível mezzo-samba mezzo-rumba “Abalou”,  e a doce e intrigante  “Trama”, que fecha o disco.





Se chamo a atenção e saúdo o fato de Fred ter gravado tantas letras próprias, é porque na maior parte de sua já consistente obra ele tem se valido de inúmeros parceiros letristas.  O principal deles tem sido Marcelo Diniz, que em BARBARIZANDO GERAL assina apenas uma parceria, o “Rancho da seita suicida”, uma marchinha que consegue a proeza  raríssima – haja Maiakovski e Brecht! – de unir panfleto político e vigor poético ao fustigar a estupidez que atravessamos como país recentemente e ainda corremos tanto o risco de atravessar.  No “Rancho” estão ali os nomes dos bois: “Um bloco macabro suicida/desfila na rua /na epidemia /na frente vai o genocida/aquele demônio de nome Messias”. A faixa tem ainda a participação altamente convincente,  pela veemência,  da bela voz de Nani Medeiros.  Outra faixa cortante, “Senzala”,  é a estreia de um novo letrista, André Sampaio, cuja proeza também não é pequena:   numa letra de rimas todas em vogais abertas, claras, em /a/  traça um quadro geral da escuridão do fogo que a todos nos vai calcinando a céu aberto, pessoas e coisas, reificadas numa persistência rítmica entre a batida do jongo e a do trabalho forçado: “Se pudessem dizer o que a fome já cala/ou se as línguas não fossem cortadas na faca/e se o canto não fosse batido na enxada/ou seus dedos quebrados pregados nas talas// Mais um dia de sol brilha sobre Senzala”.



André Sampaio e eu


Fred, Marcelo Diniz e eu


 Manoel Gomes com “Além do qualquer” a mim me tocou especialmente:   Manoel veio a falecer de forma meio inexplicável e obscura, num atropelamento de madrugada em Niterói em dezembro de 2017 (deixo o link para o texto que postei aqui mesmo no blog na ocasião: https://robertobozzetti.blogspot.com/search/label/Manoel%20Gomes) .   Fred compôs muito com ele, gravou muitas letras suas, sempre de forma magnífica.  Ao ouvir-ler esta “Além do qualquer”, não tive a menor dúvida: trata-se de um testamento poético deixado por Manoel, poeta que como pessoa viveu  sempre além do qualquer e,  além do além,  sua voz ainda se faz ouvir na melodia do samba-canção secundado pela percussão leve de Suzano e um belíssimo bandoneon (que achado!) a cargo do argentino Martin Sued.  Não resisto a deixar aqui toda a letra, que, repito, muito me comove e muito significa para quem conheceu Manel (da última vez em que estivemos juntos, ele me deu de presente um poema especialmente escrito para mim, escrito em letra de forma durante um show a que assistíamos, num papel todo dobrado  – jamais me desculpei o fato de não saber onde a guardei).  Em “Além do qualquer” temos alguém que soube fazer seu próprio auto-retrato:

Por gostar tanto do mundo
Não pode ser qualquer mundo
Meu pano de cena
Por querer tão bem a vida
Não deverá qualquer vida
Assim valer a pena
Por viver tão plena arte
Jamais será qualquer arte
Meu campo de pouso
Por amar forma de gente
Não me encanta qualquer gente
E um verso qualquer não ouso

 


Com Manoel Gomes

Tudo o que escrevi aqui talvez fosse menos suspeito não fosse eu parceiro de três canções de Fred neste disco - mas confiram e ouçam BARBARIZANDO GERAL, que verão que não minto.  Mas dessas parcerias vou falar só em passant:  “Madame Maldade”, a mais antiga,  já tinha sido registrada ao vivo no CD de 2017 A música é meu país. Trata-se de uma brincadeira maldosa – como tem forçosamente de ser – com as passeatas pelo impeachment de Dilma  nas copacabanas do Brasil.   A tal madame é uma personagem que criei no Facebook, que ilustro  sempre com  um retrato daquelas senhoras de Boldini e legendas barbarizantes em geral.  Foi também na mesma rede social, à época em que o Papa Francisco deu umas declarações de tolerância e de amor pelos homossexuais e que Chico Buarque foi agraciado com o Prêmio Camões para contrariedade geral dos nossos imbecis, que escrevi um textinho despretensioso saudando-os, que fez Fred pegar o  embalo e fazer um samba delicioso, todo quebradinho chamado “Dois Chicos”, avisando – até em Libras – “evêm mais chico no caminho!” (Mendes, Science...).   E, por fim, compusemos ainda há uns 5 anos “Ahmed”, uma homenagem ao verdadeiro autor das canções de Chico Buarque (não só: também as de Tom Jobim, Milton, Edu Lobo, Caetano, Paulinho da Viola, Caetano, Gil, João Bosco e Aldir), relegado ao anonimato do qual procuramos resgatá-lo.   Nesta, o luxo foi tanto que até o MPB4 entrou na brincadeira e deu uma força na faixa, resgatando do esquecimento quem merece.  Afinal, como diz o próprio Ahmed: “Só quero ser reconhecido por vocês.”   Chico parecia ter gostado também da brincadeira, mas depois vetou o vídeo no qual ele dava seu depoimento de confissão.  Paciência.   Ahmed declarou numa entrevista outro dia algo que nos soou surpreendente.  Disse ele:  “Dizem que morre o burro, fica o homem, né.  Benjor escreveu isso numa música.  Aliás, só ele,  o Tom Zé, o Nelson Ned e o Odair José nunca me compraram música.  Nem do Julinho da Adelaide.  Na verdade, morrem os mitos, ficam os nomes, né.”  Palavra de Ahmed.

 

https://open.spotify.com/intl-pt/album/2DIyQhIDjt1iJjMEGsduhD?si=tSy6gf7pSoacPhTd_WHbkw

Não deixem de ouvir BARBARIZANDO GERAL, discaço cujo link vai aí em cima.  E eis ali embaixo em ordem cronológica  toda a discografia do Fred Martins.  Vão aí nas internets da vida que garanto que não se arrependerão  A gente ouve o trabalho dele em todos esses canais aqui:



1.         JANELAS (2001)

2.       RARO E COMUM

3.       TEMPO AFORA (2008)

4.       GUANABARA (2009)

5.       ACROBATA (com Ugia Pedreira, 2012 – na Espanha)

6.       PARA ALÉM DO MURO DO MEU QUINTAL (2015 – em Portugal)

7.       ULTRAMARINO (2021 – em Portugal)

8.       BARBARIZADO GERAL (2024 – pela Biscoito Fino)


Fred, eu e +1



quinta-feira, 22 de agosto de 2024

DOIS POEMAS RECRIADOS EM VÍDEO

    O inquieto, criativo, superativo - numa palavra, MULTI - chapa Felipe Ivanicska, lá das Minas Gerais, anda aprontando com textos meus.  O que só posso agradecer.   Aqui ele trabalhou em vídeo dois poemas do meu Despreparaação para a morte (Rio: Texto Território, 2017), cujo resultado, para mim excepcional, posto agora, junto com os textos. 

   Em tempo: a voz leitora é de Carlos Tuviequizal, a quem só posso parabenizar e agradecer. 



HOJE É QUINTA

Hoje é quinta, amanhã é menos,

súbito a conta é subtração.

Enquanto vivemos, a ponta

da seta sempre aponta

em nossa direção:

É o de somenos

é um truísmo

rebarba que redonda

mente ao nosso medo

de dissipação. O diapasão

dá a nota rombuda

que o ouvido não capta

- melhor: capta e deixa

vazio, eco ao fim

de fundo sem som.

Célere não percebemos

o quanto o tempo

desacelera e o que a espera

não cumpre e fica

baldio, resquício

quintal dos fundos

caco de entulho

quarto imprestável

onde se adentra

só pra saber

que não se encontra

o que faria falta

se não fosse menos.

Amanhã é menos

hoje é quinta

de ontem não lembraremos. 







AUTO

a última

auto-

-ironia

 

 

o último

 

no esgar

do auto-

-engano

 

sorriso

 

ao perceber

o erro de

cálculo

e lembrar

do anjo

perverso

ausente

no banco

vazio

 

do carona



sábado, 8 de junho de 2024

CAMPEÃO DO BRASILEIRO, GUTO LEITE


 

E OUTROS POEMAS, O IMENSO LIVRINHO DO GUTO LEITE QUE ME CHEGA DO RIO GRANDE DO SUL

         A questão fulcral da poesia que se quer “do tempo presente”, creio, creem – e assim devem sentir – os poetas é:   como ferir a carne dos dias com a palavra.   Falemos por enquanto metaforicamente.  Começa pela contingência que leva  o poeta a escrever o poema, por certo.  Mas lógico que a questão não é essa, e sim, e sempre  é o resultado.  Melhor dizendo:  ronda o perigo de o resultado, o poema (ou o que se pretendeu que fosse) acabar sendo insuficiente, datado, ficar preso ao circunstancial, no sentido mais flébil do termo. O poeta olhará  frustrado, se tiver bom senso de autocrítica, o seu poema logrado. 

         Não chego a me considerar poeta.  Digo em termos de resultados do que escrevo ou tento escrever.  Nem sombra de falsa modéstia, é senso de meus limites mesmo,  ante o terrível poder da palavra poética, que me subjuga.  Embora, às vezes até ache que acerto a mão (não disse que não era falsa modéstia?).   Por exemplo: reativei este blog, que estava parado desde 2018, porque me assaltou a urgência de escrever ante os tempos funestos que vivemos e que se pintam – ou se maquiam, vá saber – com tintas de eternidade. Maquiagem ou máscara, como advertiu em célebre conferência Mário de Andrade, da necessidade de “pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece”.   Tenho escrito esses poemas últimos que publiquei neste blog premido por essas circunstâncias, premido pela necessidade –que tenho certeza de que não é vã – de responder ao tempo presente.   Esta necessidade não é vã, embora os resultados a que chego muitas vezes ou quase sempre o sejam.  Aí só o leitor avaliará.

         Ferir a carne dos dias com a palavra... escrevi a frase acima em registro, claro, metafórico. E acabei desdobrando-a em mais metáforas, mesmo alheias.   Para tentar ficar mais claro, mas no fundo tergiversando, passo para alguns exemplos:  poemas de Brecht e de Maiakovski conseguiam fazê-lo, feriam a carne dos dias.  O Drummond de A rosa do povo (Quem não entra com o russo em Berlim?) e de mais alguns poemas próximos cronologicamente a esse livro magistral, certamente.  O Mário de Andrade de Lira paulistana, idem (“Terremoto que a porta do pobre arromba”),  O Chico Buarque assertivo de “Construção” e “Deus lhe pague”,  cruel de “As caravanas”, divinatório de “A flor da terra”, o Caetano de “Um índio”, “Fora da ordem” e da letra de “Haiti” (a melodia é de Gil), o Gil de “Um sonho”...são alguns exemplos.   Talvez esses poucos sejam quase todos, pra falar a verdade, porque não é coisa fácil conseguir esse efeito de que falo.   E antes que me leiam errado: não estou dizendo que esses são, qualitativamente, os melhores poetas, ou que são os melhores poemas e canções desses criadores.   O que quer dizer:  ferir a carne dos dias com a palavra, responder com poesia ao tempo presente à altura, não é O critério de avaliação de um poema ou de uma canção.   Mas é sem dúvida um atestado de se ter atingido um grau de excelência no que foi proposto, a ser confirmado tão somente pelo escrito que o leitor atualiza.

         Não sei se me faço entender.  Mas eis que abro um livrinho umas 60 páginas do Guto Leite, chamado E outros poemas (Editora Zouk, 2024) e me deparo com um poema inicial já atordoante.  Em seguida vem este, que me nocauteia:


         o time que matou meninos em fevereiro

será mais uma vez campeão do brasileiro

 

trouxe de portugal um treinador tarimbado

         faltou para a revisão do ar-condicionado

 

uma zaga segura um meio-campo entertainer

         os garotos da base ficavam num container

 

centroavantes mortais em um esquema  que amassa

         é difícil enxergar quando tem tanta fumaça

 

a cada gol do artilheiro a galera delira

         não deu pra socorrer os moleques, que dormiam

 

aumenta a distância pro segundo colocado

         christian athila arthur rykelmo pablo bernardo

 

         gedson jorge samuel vitor morreram dez

todos sabem o que fazer com a bola nos pés

 

será mais uma vez campeão do brasileiro

         o time que matou meninos em fevereiro

 

         É um poema desconcertante, é um dos tais poemas que ferem a carne dos dias.  Tento ser um pouco mais preciso:  um poema capaz de dizer do tempo presente em sua concisão verbal, em sua precisão formal ao mesmo tempo em que,  justo por isso,  flagra este presente em visada capaz  de abranger em imagens terrificantes o esgoto, o esgoto calcinante em que vamos mais e mais nos tornando,  como país, como humanidade, que sei eu, como seres vinculados ao que chamamos modernidade, ao que chamamos Ocidente, ao que chamamos capitalismo.  Que começa, o poema,  por ser à queima-roupa em quem gosta de futebol, em quem tem um time, ou já gostou ou já teve e hoje não mais – volto a meu próprio exemplo.  E como não chorar, a não ser que se seja um canalha, com o absurdo fato da morte dos dez adolescentes da base de futebol do Flamengo em fevereiro de 2019?  Mas o magistral desempenho com que os versos se desnovelam ante nossos olhos, em um virtuosismo de craque poeta que fala ao mesmo tempo de futebol, de poesia e do medonho que nos cerca.   O belo da criação estética não se perde na indignação, o belo se faz  e se queima dentro do horror que contemplamos: “uma zaga segura, um meio campo entertainer/os garotos da base ficavam num container”.  Me tirou o fôlego.   Os dez meninos mortos nomeados em impressionantes  versos de 13 sílabas – chamados “bárbaros”, será um acaso? – , que se mantêm ao longo de todo o texto.  Guto não perde o andamento.

         E o pior, digo, o melhor.  Ou: o melhor é o pior.   O livrinho está cheio de poemas assim, de igual excelência. Que inclusive dialogam amorosa e asperamente com o melhor legado nosso em poemas, de Drummond (“ó louça infinita, Aleph de vasilhas,/se em espasmos de tempo sumires inaudita//nós vos recriaremos”) e outros poetas, em canções de Caetano (“o fim do mundo será por extenso//o menino do rio/derreteu”) e outros cancionistas (Guto também o é, com três CDs gravados).   São poemas de impressionante potência e – atenção – , Guto é um poeta residente em Porto Alegre, na Porto Alegre destes dias trágicos.   Seus poemas premonitórios são espantosos,  sem nada terem de divinatórios: são poemas de um poeta atento, leitor de seu tempo em suas implicações concretas, sociais, ecológicas. Capaz de poetizar o fato na medida mesmo em que sabe que fato e fatalidade não podem ser confundidos.

Por exemplo, no admirável e já citado “causas naturais”, dividido em nove segmentos, o poeta nos diz no segmento 2:

 

         os cabelos são arrancados

         à mão

         e um fio d’água

         correndo o cocoruto

 

         se espalha

 

         imagine então

         as margens

         desarvoradas

         de um rio

 

         E no encerramento do mesmo poema, no segmento 9:

        

            não há outro tema que não o fim do mundo

            é obsceno fazer poema sobre o fim do mundo

 

         A vontade que tenho, para fechar estas páginas de justo elogio disfarçado de crítica impressionista, é poder me estender a cada um dos poemas o quanto eles- todos eles –  merecem.  Quem sabe, me empenho dia desses,  num texto de maior fôlego.  Por ora, deixo aqui com vocês o também atordoante “A anoa” (que me remete a Murilo Mendes em sua modernização do arcaico num livro como Convergência), como um testemunho de que o tempo presente é sempre, como as pinturas rupestres a que o texto alude.  E que a poesia tem de estar sempre à sua altura. 

         Guto Leite, querido, professor doutor Carlos Augusto Bonifácio Leite, muito obrigado por estes e outros poemas e canções.

 

A ANOA

 

na parede de uma caverna

em leang bulu’sipong

uma anoa resiste

a caçadores com lanças

 

sobrevinda às crianças

de homens antes dos homens

às quilhas de brilhantes barcos

da frota srivijaya

às velas e caravelas

de dom francisco serrão

à companhia  holandesa

às bombas de hiroito

 

a anoa que não se rende

a quarenta e quatro mil rotas

como o gesto de seu artista

impresso na tez da rocha

está já por todo o tempo

que vir a ser o futuro

 

 

(Aqui uma postagem anterior sobre o mesmo poeta: https://robertobozzetti.blogspot.com/2018/02/guto-leite.html)

 



quinta-feira, 6 de junho de 2024

SONETO DO GATO MORTO, de Vinícius de Moraes

 



SONETO DO GATO MORTO

                        Vinícius de Moraes

Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade
 
De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.
 
Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e a morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto
 
Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.

 

Florença, novembro de 1963


MORAES, Vinícius de.  Obra reunida v. 1.  Org. Eucanaã Ferraz.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. 




sexta-feira, 24 de maio de 2024

CANÇÃO SEM VELÓRIO


 

CANÇÃO SEM VELÓRIO
 
Tanto faz onde me enterrem
a água vai levar tudo
as cinzas, se me cremarem
tomarão rumo de esgoto
engarrafando o emissário
 
ou chegarei lá nas Cagarras
ou qualquer outro arquipélago
agregado a mil dejetos
cumprindo a fatalidade
deste tempo em mim inscrita.
 
Deste tempo em mim inscrito
a água vai levar tudo
cravejado de adesivos
QR codes, códigos
indícios de assassinatos
 
tempos idos e vividos
encharcados e afogados
chegarão lá nas Cagarras
tudo imenso arquipélago
no pélago das mandíbulas
 
de assassinos  planetários
cumprindo a fatalidade
tanto faz onde me enterrem
melhor que me deixem à tona
em cardume de podridos
 
descurado do planeta
negligente do universo
trânsfuga de igrejas
desertor de falsos deuses
tanto que me empenhei
 
pra água me colher cedo
liquefazer remotos ossos
revestidos de adiposes
de carvão fóssil derivados
povoado de adjetivos.
 
De toda matéria extinta
o amálgama se incompleta
a água levará tudo
tanto faz que não me enterrem
tanto tempo acreditamos
 
em rituais benfazejos
encomendas a divindades
ritos de passagem tolos
magias do insondável
luto a ser respeitado
 
e tudo era só um lixão
retratos assinaturas
eletrodomésticos joias
documentos em braile
conversas criptografadas
 
divindades de encomenda
enquanto também na torrente
a coroa mais cara enviada
saudades eternas inscritas 
 segue o périplo do nada.

 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

CAVALHEIRO SÓ, Pablo Neruda


 

    É extraordinário este poema do chileno Pablo Neruda (1904-1973), pela capacidade de falar por um eu poético perverso, reprimido sexualmente, que se enxerga solitário, punido, cercado de demônios libertinos.  


CAVALHEIRO SÓ

 



PAES, José Paulo (sel. org. tradução e notas), Poesia erótica em tradução. São Paulo:

Companhia das letras, 1990.






sábado, 11 de maio de 2024

DIONISIO MORRE, Alberto Lins Caldas


 








Alberto Lins Caldas é pernambucano, com formação em Geografia e Arqueologia, professor aposentado da UFPE.   É autor de vasta obra, tanto na teoria quanto na narrativa ficcional (contos e romances).  Publicou os seguintes livros de poesia:  No Interior da Serpente (Pindorama, Recife, 1987), senhor krauze (Revan, Rio de Janeiro, 2009), Minos (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2011) e De Corpo Presente (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2013), 4x3 - Trílogo in Traduções (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2014,  com Tavinho Paes e João José de Melo Franco), a perversa migração das baleias azuis (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2015), a pequena metafisica dos babuinos de gibraltar (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2016), minha pessoa sob o dominio dos barbaros (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2018), tantalo (Flan deTal, Vila do Conde-Portugal, 2019) corpos de troia (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2021). Publicou ainda poemas em jornais, blogs e revistas como Coyote, Escamandro, Intempestiva, Eutomia, Continente Multicultural, Flanzine, Rascunho, Caliban, Gueto, Blecaute, Incomunidade, Ruído Manifesto, Cândido, Conexão Literatura, Germina, Quatetê, Pausa, Zona de Impacto, Caderno de Criação, Literatura e Fechadura, Zona da Palavra, Alagunas, Diversos Afins, Gratuita, Mallarmargens, Tlön, Vallejo and Company, Gazeta de Poesia Inedita, plaquetes pela Galileu Edições.   Participou ainda das antologias: Fandago, Simultâneos Pulsando: Uma antologia fescenina da poesia brasileira contemporânea, Poetas Siglo XXI, Pandemoinhos, Vinagre: uma antologia de poetas neobarracos, Escriptonita: Pop/Poesia, Mitologia-Remix & Super-Heróis de Gibi, Lula Livre*Lula Livro, Atlas da Literatura Digital Brasileira, Poesia Viva do Recife, 70 Poemas  para Adorno.

 

Para conhecimento de sua poesia, que a mim muito impressiona, eis o link:www.poemasalbertolinscaldas.blogspot.com.br