quarta-feira, 22 de agosto de 2012

ANTONIO CÍCERO


BLACKOUT

Passo a noite a escrever.
Do lado de lá da rua
poderia alguém me ver,
daquele prédio às escuras,
em frente ao meu,e mais alto.
Que voyeur me espiaria?
De interessante, só faço
escrever. Ele veria
decerto a parte traseira
do computador: talvez,
daquela outra janela,
avistasse, de viés,
o lado esquerdo da minha
face de perfil: jamais
entretanto enxergaria
certos versos de cristal
líquido, que mal secreto
com o sal do meu suor,
já anunciam segredos
só meus e de algum leitor
que partilhará comigo
o paraíso e o desterro,
o pranto que vem do riso,
o acerto que vem do erro.
Disso tudo, meu vizinho
nem de longe desconfia.
Mas e se ele, tendo lido
meus lábios, que pronunciam
o que na tela está escrito,
perceber-se desterrado
não só do meu paraíso:
do meu desterro, coitado?
E se ele a tudo atentar
e por inveja e recalque
me der um tiro de lá?
Melhor fechar o blackout.

Antonio Cícero. Porventura.  Record, 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário