No livro Firma irreconhecível publiquei o longo
poema a seguir, uma homenagem a João Cabral de Melo Neto, e também a Paulinho da Viola e
Tom Zé, seus ímpares. Claro que se trata de um exercício na dicção cabralina e de,
no mesmo movimento poético, de poética, homenagear outras duas grandes
admirações minhas; além disso, considerando algumas obsessões do poeta, entre
elas a importância que concede ao número par, em especial o 4, ir introduzindo
de maneira também nada regular nem simétrica o ímpar nas estrofes, de 7 versos,
até terminar num longo bloco meio aleatório com 23 versos e mais um, que
finaliza o poema. Ao lado disso, a
redondilha, verso de 7 sílabas, coexiste com o verso de 8 sílabas, pelo qual o
poeta tinha especial predileção (por artes refinadíssimas de prosódia rítmica, mesmo a redondilha
cabralina muitas vezes soa como verso octossilábico). Cabral é também um poeta da admiração de
Paulinho (que o cita, sem nomeá-lo, em “Bebadosamba”) e de Tom Zé. Assim, os ímpares e díspares compositores na
verdade acabam por configurar uma
constelação poética e afetiva, intelectualmente falando, de minha parte.
CABRAL
COM ÍMPARES
1. O véu continua, Cabral
apesar do heroísmo
do teu sol a punhaladas
ou mesmo a golpes de aspirina;
é que persistem essas sombras
e sei que não é só comigo
(nem somente é letra em livro
que a redondilha desmancha).
O 4, o 8 e o 16
tentam, Cabral, empalar-me em
geometria, mas o ímpar
imperfeito e impertinente
que priva em minha fala íntima
não dói como devia
(a fala deste renitente
em público ainda se equilibra)
e ao velar o acabamento
desvela a própria deriva
não por misteriosamente
mas pelo espesso do que vive.
2. Quatro quadras de quadrão
em décima sexta sentina
por cultivar o inenfático
que ao ouvido desafina,
ressoam onde não se espera
expelidas à revelia
em lâmina cega de véspera
em trama de trava-língua.
Que é quando se adormece
fugindo-se ao sol da vigília
e reincidente e temerário
o véu, Cabral, se insidia
mas não necessariamente
em velame de perfídia:
véu somente, sombra somente
(no papel a letra escrita)
incide a certo intervalo
em que o sol se silencia
e a mudez pode não ser
que seja o final da partida;
dizer: a mudez pode não ser
sublime que a boca saliva
vacância de régua e traço
mas justo ponto de partida
e mesmo a mudez do sol
no esgoto da enxovia
por simples dado de lembrança
cresce como parasita
quando o trava-língua destrava
a timidez da desídia
que a inércia também pode
subordinar-se a armadilhas
as quais submetem os silêncios
a ordenações adjetivas
que vendem ardis a distância
como substâncias ferinas.
3. Mas não era isso, Cabral
que na verdade me movia:
movia-me o moto contínuo
da dialética obsessiva
até o limite onde o não
encontra outro não resoluto
de negar o que quer que exista
por vadiagem ou estudo.
A vadiagem, Cabral
ensina o que não o estudo:
assim como o estudo nem sempre
povoa o museu de tudo
o que a vadiagem pode
descartar em sestro mudo:
a brecha por onde o estulto
entra no papel do sisudo
o mesmo de quem é estulto
e veste roupa de sisudo;
a roupa, o papel, a atitude
são todo o tudo do estulto.
4. Por des-exemplo: Tomzé
e seu zunir de estilingue
a extinguir a canção-pássara
tão logo sua pedra a atinge;
em Tomzé o não é severo
embora semelhe a despiste
de quem se achega à arapuca
pela atração do alpiste
e uma vez preso na gaiola
lhe devora tudo em torno
do que é ardil de alimento:
as finas hastes que a compõem
metal ou madeiramento
incorporam-se ao corpo,
tal comedouro e poleiro
mais o plástico de onde bebe
vaza a água que tem dentro
garganta som canto ventre
trinca canção, trincha ferro
maçarico esmerilamento
sem lugar para o canoro
flauteado do lamento
que o ouvido na concha ouça:
voz de mar, mas não da carne
a qual a despeito do olvido
trabalhou em ressofrimento
grossa bátega de mangue
pedra rija de indormido
parida por boca náufraga
burilada à indiferença
de qualquer divina crença
movida a mó de sabença
estridência de esmeril
pérolas no ostracismo
em longos anos de abismo
um silêncio de cinismo
no ouvido do Brasil.
5. Por contra-exemplo: Paulinho
que a seu nome incorporou
a doce curva da viola
mas com corte: cavaquinho;
por contra-exemplo de Tomzé
a coleção de Paulinho
que um seu Mestre nomeou:
coleção de passarinhos:
rouxinóis de arrabalde
gaturamos do longínquo
em Paulinho a canção-pássara
não teme a pedra que a extingue;
não mais canções não mais pássaros
sabe que no mundo existem
e ele os leva então na voz
e dentro de si: inquilinos
não em gaiola acoitados
ou presos em si clandestinos,
porém mais como passageiros
a descer o Velho Chico
no curso de tanta água
tendo o mar como destino
mas antes do mar tanta água
a atravessar, desmedida
que a canção-pássara que a passa
pervaga um curso intestino
não desfraldada como em mar
mas destilada em alambique
e desce em Oswaldo Cruz
articulando em repique
o repouso dos dormentes
à mordente voz dos trilhos.
6. A bigorna da araponga
grita o sol a palo-seco:
secura do próprio sol
a calcinar até o eco
que reduz então crestado
a araponga ao esqueleto.
Assim sobrevive Tomzé,
melhor dizer: supervive.
Analfabetizado ao ler
súbito um dia Euclides
quando se abriram os sertões
agora em página de livro:
a página-maçarico
a inflamar o que já havia
desde sempre sido vivido:
ausência de sombra e água
ausência de letra em livro
a reclamar o alarme.
A lágrima de pedra rola
lágrima lisa, sem limo
mas não como um seixo rolado:
limpa apenas de seu visgo
como se interno, lamento
vício visguento cativo.
Ao chorar sabe Paulinho
a lágrima que todos choram
por isso seu choro é vivo,
melhor dizer: ultra-vivo
desfaz o visgo que traz dentro
e o faz polícia do ouvido:
o infinito é o precário
marcado num breve tempo
quando o silêncio é cantado
samba curto, porém tenso
em um caso diferente
sem a saudade e seu lamento.
7. Vadios de tanto estudo,
Cabral: Tomzé e Paulinho
acabarão em museu,
morada arisca do risco.
Não de tudo, mas por nada
de nada pejorativo
um bom museu, Cabral, vertebra
a dispersão do que é digno
conjuga aparentes ímpares
insuspeitos como signos
revelando-se improváveis
pares de sóis distintos
assim a pedra em sua pedra
soterrada por monturo
não desanda em chorumela
nem destila qualquer chorume
assim a flor, não por ser bela
mas por nascer do estrume:
o que se há de desfazer
ao tempo irremediável
deixará por fim a pedra
inteiriça, por intocável
deixará por fim nascer
a flor não menos improvável
as coisas quietas conservam
sequidão de extintas águas
água que pede pedra
e que a move e a naufraga
e em paisagens submersas
suspeita-se o que não é água
mais que a letra a voz gravada
(flauta que jogaste fora
por fluidez desprezada)
ameaça de transbordo
como sempre qualquer água
onde pousa o canoro
contrabando de passarinhos
de avião do Irará
de ônibus de Botafogo.
Mas passarinhos, Cabral
que bebem com gosto a água
que passarinhos não bebem
e comem pedra, Cabral
por terem dentro de si
sucos com o que a digerem:
de sol a sol a espessura
(e tal que não esmaece)
de duros ofícios, biscates
baralhos, peixes de feira
brancura de alvaiade
sobre o negrume da pele
didática que se adquire
ou pré-didática em pedreira
lâmina da voz metal
berceuse de britadeira
ou corte certo de alfaiate
no anônimo da vida inteira
entre automóveis, carroças
pó de fuligem, caliça
entranhada no encardido
curtume vivo da pele
em contraste com a cal
como tu mesmo preferes.
Roberto Bozzetti. Firma irreconhecível. Oficina Raquel, 2009.
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