Ilustração de Talarico |
para o Leon Navarro, que propiciou
Uma matéria que circula por esses
dias na rede acabou chamando minha atenção.
Trata-se de um livro organizado pelo colombiano Javier Naranjo, que
compila, à maneira de um dicionário, algo em torno de 500 definições formuladas
por crianças para pouco mais de 130 palavras.
O livro Casa das estrelas: o
universo contado pelas crianças tornou-se um sucesso editorial na Colômbia
desde sua primeira edição, em 1999, tendo inspirado obras semelhantes na
Venezuela e no México. As definições foram colhidas por Naranjo, no
tempo em que trabalhou como professor de escolas rurais no interior da Colômbia,
em exercícios de criação literária com a
criançada.
Veja-se o link:http://mulher.uol.com.br/gravidez-e-filhos/noticias/bbc/2013/05/18/dicionario-de-criancas-colombianas-surpreende-adultos.htm
Quem
já parou para prestar atenção à maneira criativa como crianças captam e
expressam o mundo pela linguagem não se surpreende com os verbetes do dicionário, colhidos na matéria do UOL. Alguns exemplos:
Água: transparência que se pode tomar (Tatiana Ramirez, 7 anos)
Céu: de onde sai o dia (Duván Arnulfgo Arango, 8 anos)
Colômbia: é uma partida de futebol (Diego Hiraldo, 8 anos)
Escuridão: é como o frescor da noite (Ana Cristina Henao, 8
anos)
Igreja: onde a pessoa vai perdoar Deus (Natália Bueno, 7
anos)
Lua: é o que nos dá a noite (Leidy Johanna García, 8 anos)
Mãe: Mãe entende e depois vai dormir (Juan Alzate, 6 anos)
Tempo: coisa que passa para lembrar (Jorge Armando, 8 anos)
Universo: casa das estrelas (Carlos Gómez, 12 anos)
Quando eu digo que não se
surpreende, não quero dizer que não se encante, se não tiver perdido essa capacidade. Desde os românticos, pelo menos, os poetam
sabem que emular a linguagem infantil é
abrir portas e mais portas da percepção para o mundo, rompendo com o
conformismo e a estereotipia que insidiosos sempre começam pela linguagem. Entre nós, brasileiros, nem foram tanto os românticos, em geral um tanto conformados a seus próprios
estereótipos, e sim os modernistas que,
contemporâneos de Freud, souberam instrumentalizar ideologicamente o potencial
subversivo da linguagem das crianças e fazer dela uma arma de combate vigorosa
– pero sin perder la ternura... – contra os valores estabelecidos pelo conformismo
acadêmico nos embates intelectuais da época: o “olhar inaugural” sobre o mundo,
reivindicado pelos modernistas, atuou como um correlato, entre outras
coisas, da visão inovadora a respeito da
realidade brasileira sobre a qual eles se
debruçaram. Basta lembrar o que há de “olho de criança” na poesia de Bandeira,
na poesia e na prosa (João Miramar...)
de Oswald, ou de Mário (inclusive, e
muito, em Macunaíma); num outro
viés, o de uma vigorosa desidealização do mundo pela linguagem, via negatividade acendrada, será oportuno lembrar
do Graciliano de Vidas secas (os
capítulos que tratam dos meninos, por exemplo) e de Infância, entre outros momentos.
Eu conto há muito tempo – desde que
aconteceu – em minhas aulas, um episódio
que ilustra de forma eloqüente para mim
a vivência radical que as crianças têm da linguagem – e procuro estender os
sentidos desse episódio para um aprendizado fulcral da linguagem . Essa vivência, que os modernistas gostavam de
dizer fundadora, é comentada por Oswald
com felicíssima clarividência em seu poema “3
de maio”:
Aprendi
com meu filho de dez anos
que
a poesia é a descoberta
das
coisas que eu nunca vi.
Eu experimentei no corpo a realidade
desse curto poema – é isso que conto
sempre para meus alunos desde que o episódio aconteceu já lá se devem ir uns 15
anos – quer dizer, eu propriamente o incorporei quando, andando certa vez a
segurar a mão de um dos meus filhos pelo shopping Rio Sul, nos
vimos num setor pouco comum em shoppings: uma área em que todas as escadas
rolantes “se emendam” umas nas outras, isto é, você está subindo – ou descendo
– numa delas e passa para a seguinte sem
precisar se deslocar nada. Como se sabe, nos shoppings as conexões entre um e outro segmento de
escada nunca são assim, justo para que o
consumidor – nesses lugares há apenas consumidores
– caminhe mais um pouquinho, de modo a
ser seduzido por alguma vitrine no curto espaço-tempo.
Mas o fato é que lá no Rio-Sul há uma área onde se
emendam as escadas, quase que uma “área de serviço” que dá direto pros andares
de estacionamento. Pois bem: caminhava
eu com meu filho pela mão por essa área quando, ao ver de longe esse conjunto
de escadas “emendadas”, ele – que na
ocasião tinha uns 5 ou 6 anos – disse: “Olha só, pai, parece os elefantes
caminhando pela floresta, não é?” Meio atônito, ainda olhei para ver se o
“elefante” seria eu, caso houvesse algum espelho. Mas não, nada de espelho. Resolvi entender: “Como assim? Por quê?” “Porque o de trás pega com a tromba no rabo
do que vai na frente...” ele me respondeu com a maior segurança e com aquele tom
de quem diz quase o óbvio. Não sei se o leitor já percebeu do que se
tratava, mas na hora eu saquei, não por grande mérito meu, claro, mas porque
com filhos pequenos os desenhos animados se tornam alimento cotidiano. Leon estava se referindo ao “Dumbo”, da
Disney, em que os elefantes saem em
cortejo pela floresta, numa fila indiana na qual o que vai atrás agarra com a tromba o rabo do elefante
que vai imediatamente a sua frente. A
“metáfora lancinante” – para usar um termo que os futuristas inventaram – capaz
de fazer ver numa seqüência de escadas rolantes
um cortejo de elefantes é genial demais para ser dita assim no acaso de
uma conversa por um adulto: talvez um poeta adulto a escrevesse em um poema. Mas ele teria que se tornar muito criança
para fazê-lo. E fazê-la fluir num papo descompromissado, desarmado
exigiria uma tomada de posição de sua poesia perante o mundo, muito firme enquanto opção poética, prenhe de estratégias, como em Oswald. Ou Jorge
Ben (Jor) em alguns de seus grandes momentos. Manoel de Barros não faria
cerimônia. Joan Brossa tampouco.
Experimentar no corpo a sensação de um poema, tal
como meu filho me possibilitou com o
poema de Oswald, tornou-me, quero crer,
um professor melhor, mais apto para lidar com essas questões que estão no meu
dia-a-dia profissional. E o ganho suplementar, que nada tem de desprezível, é,
sem dúvida, a capacidade de enxergar num shopping-center uma dimensão que
esteja além do simples consumismo, que ali mesmo, no grande templo do consumo,
remeta a uma outra dimensão, a uma outra representação do mundo, mesmo que seja
uma clareira numa
floresta-da-Disney.
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