domingo, 9 de junho de 2013

MANOEL DE BARROS


De RETRATO APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE  NADA

 

III

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Almoço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
 A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando –
            no silêncio líquido
            com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.

 

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.

 

VIII

Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas, Ovídio mostra seres humanos [transformados em pedras, vegetais, bichos, coisas.
Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisa, [larval, pedral etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural –
Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

 

 
                             In: Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda). Civilização Brasileira, 1990

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