De RETRATO APAGADO EM QUE SE PODE VER
PERFEITAMENTE NADA
III
Chove torto
no vão das árvores.
Chove nos
pássaros e nas pedras.O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Almoço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando –
no silêncio líquido
com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.
VII
O sentido
normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se
dar um gosto incasto aos termos.Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.
VIII
Nas Metamorfoses, em duzentas e
quarenta fábulas, Ovídio mostra seres humanos [transformados em pedras,
vegetais, bichos, coisas.
Um novo estágio seria que os entes
já transformados falassem um dialeto coisa, [larval, pedral etc.Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural –
Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.
Manoel, Manoel. Repito os versos três vezes, para ter certeza!
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