Se o desavisado leitor bateu com os costados aqui neste blog, achando
que o Faustão em questão é o Fausto Silva, devo dizer que pode xingar e
desistir: não, querido e incauto leitor, o Faustão aqui não é o Silva das
tardes domingueiras na Globo e, naqueles tempos em que se passa a breve
estorinha que vou contar, ele era apenas o perdido na noite paulistana. E aqui acaba a referência a ele, tchau. Já o Aécio é ele mesmo, o Aébrio Neves, dublê
de bon-vivant e de atual presidente do
PSDB, dublê nada, um talento múltiplo pra coisa alguma que não seja estar em evidência. E a gente ia começar a
saber disso justo por aqueles dias, em
torno do enterro do avô dele, o Tancredo, quando sua figura chorosa comovia quem está sempre
disposto a se comover por qualquer coisa (aliás, o que o avô dele fez na vida,
além de ter herdado a caneta do Getúlio e ter morrido pra nos deixar nas mãos
de Sarney?). Mas tergiverso. O ano devia ser 1985. 1986, talvez?
Tínhamos passado pela ditadura, depois, com a derrota da emenda das
eleições diretas para presidente, passáramos também pelo trauma de ter que aturar a costura pra
botar Tancredo no poder, enfim, a decepção maior de todas de ter tido que
engolir mesmo Sarney na presidência.
Listando essas coisas aqui me toco de que no Brasil, se bobear, nos
sentiremos sempre numa espécie de “ressaca cívica”.
Bom, mas o assunto é
outro. Sem mistérios e sem mais adiamentos: o Faustão em questão é Fausto Wolff, acho até que mais merecedor do sufixo de
aumentativo ão do que o outro, pois
tinha fácil uns dois metros de altura.
Faustino Wolffenbüttel, ou Fausto Wolff, era um combativo jornalista, bom
romancista também (Matem o cantor e
chamem o garçom, O equilibrista pede
desculpas e cai, além do infantil Sandra
na Terra do Antes são ótimos livros) que integrara a turma do Pasquim dos tempos heróicos e que fora
um dos últimos a abandonar o barco – naqueles últimos tempos ainda criara o
impagável colunista social e escroque Natanael Jebão.
Eu me aproximara de
Wolff quando, atrás de capa e ilustrações para o que seria meu primeiro
livro, Pouca vergonha, que acabei
não publicando, fui bater um dia, em 1984, na redação do velho hebdomadário – já
na Rua da Carioca, sua última sede. Lá estava a sua figura imensa, que me acolheu e me ouviu
com muita delicadeza, embora eu mesmo não soubesse com precisão o que queria; eu pensava conseguir, para ilustrar meu livro, umas figuras sacanas, uns desenhos a bico de pena que eu me lembrava de ter
visto, por conta de sei lá qual escaninho da memória, em livros antigos, umas figuras
de anjos, de crianças em jogos de diversão e de ambíguas e sugestivas posições
sexuais, uma mescla de candura e safadeza, que de certa forma presidia o
espírito daqueles poemas dos meus vinte e poucos anos, e onde o neocaretismo insuportável de hoje veria
indícios indisfarçáveis de pedofilia.
Fausto me disse que achava que tinha, sim, o que eu procurava, e se
colocou inteiramente à disposição para me fornecer o material, que ele mesmo
recortaria e que eu montaria da forma que achasse melhor para o que pretendia. Muito gentil, muito solícito, muito afetuoso,
me deu telefone e endereço para que eu ligasse e, assim que ele estivesse de
posse desse material – acho que ele desencavaria lá mesmo no Pasquim –, eu marcasse de pegar com ele. Assim foi feito alguns poucos dias depois,
quando me recebeu em seu apartamento, com várias gravuras, melhores do que eu
poderia supor, e travamos uma certa camaradagem. Saímos dali para beber uns goles e falar da
vida, não lembro onde, num boteco qualquer, acho que em Ipanema. Faustão bebia em doses
industriais, eu jamais seria capaz de acompanhá-lo, mas para um pontapé inicial
no que parecia ser uma das de sempre para ele longa noite etílica, travamos, se
não uma amizade, longe disso, uma cordial camaradagem, que de vez em quando se
renovava ao sabor de encontros ao acaso.
Apesar de nosso pouco contato, não
deixa de me comover de certa forma a lembrança de que, ao ser homenageado com o título de
Cidadão Carioca pela Assembléia Legislativa, Faustão fizesse questão de me
mandar convite, de dizer que contava comigo lá na sessão solene e, uma vez
cumprido o prometido, demonstrasse ter ficado feliz da vida que eu tivesse ido. Ficou feliz da vida com todos os que lá estivemos.
Mas agora estamos em 1986, eu
trabalhava no Centro do Rio, na agência principal da CEF e ia, em horário de
almoço, pela Rua da Carioca. Eis que em
frente ao Bar Luiz (aliás, onde mais?), me surge a enorme figura do Faustão a
me abrir os braços e a me envolver num abraço enorme a clamar “Parabéns!
Parabéns, meu jovem!” Eu estava com
alguém -,não lembro quem - , ele também vinha acompanhado não sei de quem. Nossos acompanhantes olhavam o efusivo
cumprimento sem entender; como, aliás, eu também.
Faustão aumentava o volume e o entusiasmo dos parabéns, além de ficar
cada vez mais vermelho de tanto que ria.
Quando resolveu explicar não o fez para mim nem para os que nos
acompanhavam, e sim para a Rua da Carioca inteira, que abarcava com o olhar e
com uma voz que se projetava por longa extensão. Dizia mais ou menos isto: “Aproveito para
parabenizar você, um jovem como o valoroso jovem que vai presidir a empresa em
que você trabalha, afinal a Caixa
Econômica Federal agora terá no seu
comando um jovem de grande valor que nunca fez nada na vida a não ser ser o neto
de Tancredo Neves, credenciais suficientes pra que ele possa gerir um banco
social, como é a Caixa!” E ria, seu
olhar buscava cúmplice o meu, eu ri muito também com ele, trocamos impressões
pasmas sobre o ridículo da situação, sobre o ridículo do país. Mas Fausto exagerava: Aécio não ia na verdade presidir a Caixa, ia "apenas" assumir uma importante diretoria na estatal. Sem, obviamente, jamais ter feito carreira lá.
Agora que na qualidade de presidente
do maior partido de oposição (o sintagma é muito solene pra esculhambação que é
a nossa vida político-partidária), Aébrio se põe a fingir que fala grosso (e dá
pra notar que está com a voz um tanto
engrolada) ao pedir satisfações ao governo sobre a confusão com o boato do término do
bolsa-família, talvez eu tenha me lembrado do episódio. Mas não é isso que vai ficar não. Como também não vou ficar aqui tecendo
considerações sobre a nossa comédia politiqueira. Em vez disso, prefiro reter a figura de
Fausto Wolff, Faustino Wollfenbüttel, Natanael Jebão, admirável jornalista,
ótimo escritor, desaforado, amável e irascível flor de pessoa, combatente do bom
combate, um quase amigo do qual me ficaram estas afetivas lembranças.
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