A Mariana Quadros, linda, amada e sólida fortaleza ética
CONVERSA DE COMPRA DE PASSARINHO
Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro. “Quarenta”. O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:
– Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.
Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim: “- O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:
– Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro.
O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:
– Quanto é o coleiro?
– Ah, esse não tenho para venda, não…
Sei que o velho esta mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “- O senhor dá trinta…?” O velho cala-se, minha nota na mão.
– Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?
Fico calado algum tempo. Ele insiste: “- O senhor diga…” Viro a cachaça, fico apreciando o coleiro.
– Se não quer vinte e cinco vá embora, menino.
Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:
– Passarinho dá muito trabalho…
O velho atende outro freguês, lentamente.
– O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu.
Por trás dele o pescador de bigodes brancos me fez sinal para não comprar. Finjo espanto: “- Quinhentos cruzeiros?”
– Ainda a semana passada eu rejeitei seiscentos por ele. Esse coleiro é muito especial.
Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando sua especialidade. Faço uma pergunta sorna: “- Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde: “- Não tenho tempo para pegar passarinho.”
Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido esse menino desconhecido, por aquele coleiro especial?
– No Rio eu compro um papa-capim mais barato…
– Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.
– Mas quinhentos cruzeiros?
– Quanto é que o senhor oferece?
Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com voz fria, seca: “- Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”
O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”
Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.
– O senhor não leva o coleiro?
Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu – trotando, assobiando e cantando de pura alegria.
In: Quadrante.
RJ: Editora do Autor. 1962.
Penso
sinceramente que depois de um tal texto, qualquer adendo é completamente
dispensável. Mas não me furto a dois
dedos de observações um tanto vadias, tendo sempre como guia as palavras muito
claras que Davi Arrigucci Jr. escreveu certa vez a respeito da prosa de Braga: “Rubem
Braga é um autor de acesso fácil e imediato para quem o lê, mas extraordinariamente difícil para quem quer
falar criticamente do que leu. Nessa naturalidade
complexa lembra ainda muito um poeta que quase sempre ele lembra no trato do
cotidiano, da carne concreta e dos estados fugidios do espírito, das coisas
comuns e humildes, mas espinhosas de se dizer literariamente: Manuel Bandeira.”
Arrigucci ainda observa que não se trata
apenas – embora efetivamente se trate também – de escritores pertencentes a uma
mesma família, de parentesco entre tons e temas. Trata-se de que “o velho Braga não só é um
poeta lírico, ainda que seja um dos maiores que surgiram aqui. Que a sua andadura de prosa não nos
engane. Ele é essencialmente lírico.”
Nesse sentido, esta crônica aí em cima é perfeita, o silêncio
final do narrador – dizer o quê diante da absoluta falta de compaixão e
solidariedade, diante da indiferença pela sorte alheia, tão familiar em nosso
cotidiano, tão concreta e perceptível o tempo todo em cada fração de segundo
nas atitudes mais cotidianas? O lirismo de Braga, aliado ao profundo e claro
senso ético de sua escrita – e aqui ela sempre me remete ao antilírico
Graciliano – parece não envelhecer. É de
se arriscar mesmo dizer que não envelhecerá.
Complemento esta postagem com um dos poucos textos que Rubem
Braga publicou em versos, seu poema mais
conhecido, “Ode aos calhordas”. A calhordice
de que trata o velho Rubem não se restringe a uma suposta elite econômica, como
talvez fosse cômodo, apressado e equivocado ler: a gosma gelatinosa e fétida
que genialmente emana de seu poema nos faz lembrar que invade a tudo, se não
tratarmos de construir uma sociedade e um mundo capazes de eticamente recusar o
status quo calhorda. Mas não vou ficar
aqui nestes resmungos que, de resto, remetem muito mais a um estado de espírito
um tanto pessimista e sombrio em que me vejo envolvido. Melhor mesmo é ler o grande Rubem. Que, sempre que se fizer necessário, voltará a freqüentar este blog.
ODE AOS CALHORDAS
Que às vezes se entregam à benemerência:
As damas dos calhordas chamam-se calhôrdas
E cumprem seu dever com muita eficiência
Os filhos dos calhordas vivem muito bem
E fazem tolices que são perdoadas.
Quanto aos calhordas pessoalmente porém
Não fazem tolices — nunca fazem nada.
Quando um calhorda se dirige a mim
Sinto no seu olho certa complacência.
Ele acha que o pobre e o remediado
Devem procurar viver com decência.
Os calhordas às vezes ficam resfriados
E essa notícia logo vem nos jornais:
"O Sr. Calhorda acha-se acamado
E as lamentações da Pátria são gerais."
Os calhordas não morrem — não morrem jamais
Reservam o bronze para futuros bustos
Que outros calhordas da nova geração
Hão de inaugurar em meio de arbustos.
O calhorda diz: "Eu pessoalmente
Acho que as coisas não vão indo bem
Pois há muita gente má e despeitada
Que não está contente com aquilo que tem."
Os calhordas recebem muitos telegramas
E manifestações de alegres escolares
Que por este meio vão se acalhordando
E amanhã serão calhordas exemplares.
Os calhordas sorriem ao Banco e ao Poder
E são recebidos pelas Embaixadas.
Gostam muito de missas de ação de graças
E às sextas-feiras comem peixadas.
1953
In: BRAGA, Rubem. Livro de versos. Ilustrações de Jaguar e Scliar. Rio de Janeiro: Record, 1993.
Rubem Braga é o maior!
ResponderExcluirJá que a crônica é sobre passarinho, vale a pena ler a "História triste de Tuim", no link abaixo:
http://tecopoetasonhador.blogspot.com.br/2010/05/historia-triste-de-tuim-rubem-braga.html
Um grande abraço.
Claudio
Obrigado, Claudio
ResponderExcluirmas não consegui abrir o link. O gozado é que fui reler a crônica (conto?) numa edição recente de Ai de ti, Copacabana e lá ela vem titulada "História triste de mim" (!) coisas do nosso pobre mundo editorial...
Um abraço do
Roberto Bozzetti