Uma presença que muito me honrou ao saber que compartilhávamos a mesma publicação foi a do poeta baiano Florisvaldo Mattos. Mattos é uma eminente figura da intelectualidade baiana, melhor dizendo, soteropolitana, que promoveu, a exemplo de João Carlos Teixeira Gomes e Glauber Rocha, entre outros, uma intensa agitação cultural na Salvador dos anos 60. Nascido em 1932 é professor aposentado da UFBA e jornalista. Por este link, chegamos a um belo perfil de sua atividade (que foi também onde colhi as fotos desta postagem): http://jeitobaiano.atarde.uol.com.br/?tag=florisvaldo-mattos
A seguir um dos poemas publicados em Nerval:
GALOPE AMARELO
Quando ele
voltou
a moça do
portão estava casadao prefeito era uma cruz e uma placa
as aves mudaram de itinerário
como os ônibus
o irmão mais moço tomava ópio
para esquecer.
Quando ele voltou
o empregado da esquina respondera
a um processo
onde perdeu a esperança e os dedos
o pai fuzilara um estudante
a mãe fugira com um mascate.
Quando ele partiu
a primavera galopava nos rosais
os campos de begônia floresciam
o gado esturrava nos currais
a terra desafiada vicejava como
uma égua na véspera do galope.
Quando ele partiu
o alimento dos olhos era verdura
de paisagem além da cerca
as goiabas enchiam os cestos
as mulheres voltavam com os meninos
os velhos falavam de assombração
a lua espreitava o pátio e o quintal.
Quando ele voltou
o ministro citava o arquiteto
com a pretensão de restaurar
o tempo à revelia dos relógios
o muro substituía o horizonte
autoridades sonolentas distribuíam
o passaporte dos homens para o sanatório.
Quando ele voltou
as leis se haviam tornado ainda mais fósseis
as oligarquias muito mais poderosas
os poderosos mais astutos
o ministro lembrava “a pá sob os escombros”
o menino relia as manchetes da guerra
os preconceitos rimavam com a economia.
Quando ele voltou
havia uma encruzilhada e um alto-falante
a moça do portão estava casada
o irmão caçula era um soldado velho.
Quando ele partiu
a primavera
galopava nos rosais.Quando ele voltou
O céu era só um galope amarelo.
Florisvaldo Mattos em foto de 2011 |
Mergulhando em direção à origem dos tempos, fui num esforço
tentar me lembrar da primeira vez que o nome, de curiosas ressonâncias
parnasianas, do poeta nada parnasiano, me apareceu. E lembrei. E, para minha sorte, ainda tenho
aqui a publicação. Foi no número 2 da
ANIMA, revista editada em 1976 por Abel Silva e Capinam, que durou justamente
esses dois números, naquela barra pesada ainda dos anos de chumbo. O poema era este aqui:
POEMA PREPOSICIONADO
a Glauber Rocha
Debaixo
dessas pontes de limo
debaixo
desses rios paradospor que nos quererão ativos
mas não honrados?
Por sobre esses
verões poluídos
por sobre
esses ventos domados,por que nos quererão amigos,
mas não amados?
Diante
desses mares vencidos,
diante
desses muros inviolados,por que nos quererão sorrindo,
no instante mais trágico?
Por entre roteiros proibidos,
por entre símbolos reinventados,
por que nos quererão perdidos
viajantes sem mapa?
Atrás
dessas botas de verniz,
atrás
dessas máscaras de aço,por que nos quererão submissos
seres programados?
Nesse fosso
de espanto e mito,
nessa fria
massa de ocasos,por que não paramos de rijo
o fóssil barco?
Com as ferramentas da vida
com os amantes com os amados,
por que logo não explodimos
a frágil máquina?
Fique no ouvido o som terrível,
cravem na carne os estilhaços,
antes me quero morto ou sofrido,
porém honrado.
Florisvaldo na década de 60,com Glauber |
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