OLHOS DE RESSACA
minha deusa
negra quando anoitece
desce as
escadas do apartamentoe procura a estátua no centro da praça
onde faz o ponto provisoriamente
eu fico na
cama pensando na vida
e quando me
canso abro a janelaenxergando o porto e suas luzes foscas
o meu coração se queixa amargamente
penso na
morena do andar de baixo
e no meu
destino cego, sufocadoneste edifício sórdido e sombrio
sempre mal e mal vivendo de favores
e a minha
deusa corre os esgotos
esta rede
obscura sob as cidadesdesde que a noite é noite e o mundo é mundo
senhora das águas, dos encanamentos
eu escuto o samba mais dolente & negro
e a luz difusa que vem do inferninho
no primeiro andar do prédio condenado
brilha nos meus tristes olhos de ressaca
bebe o suor de um marinheiro turco
e às vezes tem os olhos onde a lua
eu recordo os laços na beira da cama
percorrendo os álbuns de fotografias
e não me contendo enquanto me visto
chego à janela e grito pra estátua
se não fosse o espelho que me denuncia
e a obrigação de guerras e batalhas
eu me arvoraria em herói como você, meu caro,
pra fazer barulho e preservar os cabarés
in: Verão
vagabundo. RJ: Achiamé, s/d.
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