segunda-feira, 20 de outubro de 2014

BAUDELAIRE: O CISNE


O CISNE

            A Victor Hugo

 

I
Andrômaca, é em ti que eu penso! Aquele rio,
Espelho triste, em que outrora resplandeceu
Tua dor de viúva em majestoso brio,
Simoente irreal que teu choro cresceu,

Súbito fecundou minha fértil saudade,
Quando ia cruzar o Carrossel atual.
A velha Paris não é mais! (uma cidade
Muda mais rápido, ai, que um coração mortal);

Em minha mente vejo o campo de barracas,
Fustes, capitéis numa pilha de bosquejos,
Ervas, pedras que as poças tornam verdes placas, 
Brilhos do bricabraque sobre os azulejos.

Ali ficavam bichos em exibição;
Ali eu vi num dia de céu claro e frio,
No instante em que o trabalho acorda, e um tufão
De lixo vem cortar o ar sombrio em silêncio,

Um cisne, que fugira da gaiola, só,
A esfregar os seus pés no seco pavimento,
E arrastar sua branca plumagem no pó.
Junto ao regato sem água, o bico sedento,

Nervoso, no chão duro as asas mergulhando, 
Seu coração imerso no lago natal,
Dizia: "Sem trovões, sem chuvas, até quando?"
Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal,

Erguer algumas vezes, qual o homem de Ovídio,
Rumo ao azul irônico e cruel dos céus,
A cabeça ansiosa, convulso, em dissídio,
Como a endereçar reprovações a Deus!

II
Paris muda! porém minha melancolia
Não!, andaimes, palácios novos, avenidas,
Blocos, para mim tudo vira alegoria, 
E mais que as pedras, pesam lembranças queridas.

Também em frente ao Louvre uma imagem me oprime:
Penso em meu cisne, no seu gesto delirante,
Tal qual os exilados, grotesco e sublime,
Roído de um desejo sem fim! e adiante,

Andrômaca, em ti, de um grande esposo roubada,
Sob o poder de Pirro, gado sem valor, 
Junto à tumba deserta em êxtase curvada;
Mulher de Heleno, mas a viúva de Heitor!

Penso naquela negra, magricela e tísica,
Os pés na lama, os olhos na procura aflita 
Dos coqueiros ausentes da África magnífica
Por detrás das muralhas de bruma infinita;

Nos que perderam o que não se recupera
Jamais, jamais! nos que lambem suas feridas
E vão mamar na Dor como uma boa fera! 
Nos órfãos magros tal qual flores ressequidas!

No exílio, na floresta onde fiz minha trilha, 
Uma velha Lembrança sopra seus metais!
Penso nos marinheiros deixados na ilha, 
Nos presos, nos vencidos! ... e outros tantos mais!

                                                         Tradução de Duda Machado
 
 
Imagens da Praça do Carrossel em Paris , onde Baudelaire ambientou o poema, e arredores,  no período da reforma urbana contemporânea do poeta, a cargo do Barão Haussmann.



Aspecto da Praça do Carrossel, c. 1870.

Fotografia de Charles Marville
 

LE CYGNE
À Victor Hugo
I
Andromaque, je pense à vous! Ce petit fleuve,
Pauvre et triste miroir où jadis resplendit
L'immense majesté de vos douleurs de veuve,
Ce Simoïs menteur qui par vos pleurs grandit,


A fécondé soudain ma mémoire fertile,
Comme je traversais le nouveau Carrousel.
Le vieux Paris n'est plus (la forme d'une ville
Change plus vite, hélas! que le coeur d'un mortel);


Je ne vois qu'en esprit tout ce camp de baraques,
Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts,
Les herbes, les gros blocs verdis par l'eau des flaques,
Et, brillant aux carreaux, le bric-à-brac confus.


Là s'étalait jadis une ménagerie;
Là je vis, un matin, à l'heure où sous les cieux
Froids et clairs le Travail s'éveille, où la voirie
Pousse un sombre ouragan dans l'air silencieux,


Un cygne qui s'était évadé de sa cage,
Et, de ses pieds palmés frottant le pavé sec,
Sur le sol raboteux traînait son blanc plumage.
Près d'un ruisseau sans eau la bête ouvrant le bec


Baignait nerveusement ses ailes dans la poudre,
Et disait, le coeur plein de son beau lac natal:
«Eau, quand donc pleuvras-tu? quand tonneras-tu, foudre?»
Je vois ce malheureux, mythe étrange et fatal,


Vers le ciel quelquefois, comme l'homme d'Ovide,
Vers le ciel ironique et cruellement bleu,
Sur son cou convulsif tendant sa tête avide
Comme s'il adressait des reproches à Dieu!




Fotografia de Charles Marville
 

II
Paris change! mais rien dans ma mélancolie
N'a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie
Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.


Aussi devant ce Louvre une image m'opprime:
Je pense à mon grand cygne, avec ses gestes fous,
Comme les exilés, ridicule et sublime
Et rongé d'un désir sans trêve! et puis à vous,


Andromaque, des bras d'un grand époux tombée,
Vil bétail, sous la main du superbe Pyrrhus,
Auprès d'un tombeau vide en extase courbée
Veuve d'Hector, hélas! et femme d'Hélénus!


Je pense à la négresse, amaigrie et phtisique
Piétinant dans la boue, et cherchant, l'oeil hagard,
Les cocotiers absents de la superbe Afrique
Derrière la muraille immense du brouillard;


À quiconque a perdu ce qui ne se retrouve
Jamais, jamais! à ceux qui s'abreuvent de pleurs
Et tètent la Douleur comme une bonne louve!
Aux maigres orphelins séchant comme des fleurs!


Ainsi dans la forêt où mon esprit s'exile
Un vieux Souvenir sonne à plein souffle du cor!
Je pense aux matelots oubliés dans une île,
Aux captifs, aux vaincus!... à bien d'autres encor!


 
Praça Carrossel com o Louvre e a pirâmide invertida, hoje
 

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