terça-feira, 23 de dezembro de 2014

AH, UM SONETO... MAIS UM DE MALLARMÉ


 

                                               (Para tua querida morta, do seu amigo)

                                               2 de novembro de 1877

 

− “Pelos bosques do olvido, onde o inverno perdura,
Deploras, solitário escravo do solar,
Que este sepulcro a dois, nossa casa futura,
Da ausência de buquês se faça consolar.

Sem ouvir Meia-noite e os números que soma,
Só cerras os teus olhos na vigília dura
Se aos braços da poltrona antiga enfim assoma
Ao supremo tição a minha Sombra escura.

Quem escolhe a Visita e conhece o segredo
De flores não carrega a pedra que o meu dedo
Soergue com o tédio de uma força extinta.

Alma que hesita, trêmula, ante o claro lar,
Para eu volver, basta que aos teus lábios eu sinta
O sopro do meu nome em morno murmurar.”

 
                                                           Tradução de Augusto de Campos

Edouard Vuillard, A visitante
 


                                               (Pour votre chère morte, son ami)

                                               2 novembre 1877

 

− “Sur les bois oubliés quand passe l’hiver sombre
Tu te plains, ô captif solitaire du seuil,
Que ce sépulcre à deux qui fera notre orgueil
Hélas! du manque seul des lourds bouquets s’encombre.

Sans écouter Minuit qui jeta son vain nombre,
Une veille t’exalte à ne pas fermer l’oeil
Avant que dans les bras de l’ancien fauteuil
Le suprême tison n’âit eclairé mon Ombre.

Qui veut souvent avoir la Visite ne doit
Par trop de fleurs charger la pierre que mon doigt
Soulève avec l’ennui d’une force défunte.

Âme au si  clair foyer tremblante de m’asseoir,
Pour reviver il suffit qu’à tes lèvres j’emprunte
Le souffle de mon nom murmuré tout un soir.”

 

In: Augusto de Campos.  Poesia da recusa.  Perspectiva, 2006.

 


Três notas:

  1. Sobre o soneto de Mallarmé e sua tradução, anotou Augusto de Campos na breve introdução que fez à seção dedicada ao poeta em Poesia da recusa: “O soneto (...) que a dedicatória situa em 1877, só foi revelado na edição de Poésies publicada em 1913 pela Nouvelle Revue Française, quinze anos depois do falecimento do autor.  A obra institui um ritual fantasmagórico de amor entre o sobrevivente (o amigo a quem o soneto é oferecido) e a mulher morta.  É ela que, figuradamente, fala ao companheiro inconsolável (“o escravo solar”, na minha versão), a fim de tranqüiliza-lo: para que ela reviva não são necessárias as flores que o inverno recusa ao sepulcro (“a ausência de buquês”); basta que ela ouça o seu nome murmurado nos lábios do amante – “le souffle de mon nom murmuré tout un soir”, como está no magnífico verso aliterativo e palindrômico (“mon nom”) que fecha o poema e que a tradução tenta reproduzir.
  2. Não quis entrecortar a observação de Augusto com uma intromissão, mas penso que deva ficar bem claro que o fato de ser a mulher morta a voz lírica do poema é que explica o uso de aspas ao longo do texto.
  3. Sobre a ilustração: ao optar pela “Visitante”, de Edouard Vuillard  - depois de ter pensado numa das fantasmagóricas e sensuais figuras femininas de Munch – resolvi estabelecer um diálogo quadro/poema que supõe alguma familiaridade e ao mesmo tempo um quê de estranhamento com Mallarmé.  A familiaridade adviria sobretudo do fato de Vuillard ser um nos “Nabis“( profetas” em hebraico), grupo de pintores que na virada do século 19 para 20 constitui uma espécie de desdobramento do Impressionismo e do Simbolismo pictórico, indo desaguar um pouco mais tarde  no Fauvismo, no Expressionismo e talvez mesmo no Cubismo.  Entre os Nabis (costumam-se listar no grupo, além de Vuillard,  os nomes de Pierre Bonnard, Paul Ranson, Emille Bernard, Maurice Denis, Louis Arquetin e outros), além de uma espécie de culto à pintura de  Gauguin, havia um fervor de admiração pela poesia de Mallarmé, que costumavam ler em suas reuniões, como informa, por exemplo, Giulio Carlo Argan.  Essa “Visitante”, ao retratar não algo como  a fantasmagoria do poema mallarmaico, mas um flagrante da vida doméstica, da vida social,  não atua apenas como contraponto ao soneto, como poderia parecer – minha idéia ao lançar mão dela foi de que possamos vislumbrar um sentido mais profundo com a obra de Mallarmé se nos lembrarmos que este também, sem abrir mão jamais de sua poética do rigor, poetizou cenas, personagens e flagrantes embrenhados  na existência cotidiana.  

 

 
 

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