(Para tua querida morta, do seu amigo)
2 de novembro de 1877
− “Pelos bosques do olvido, onde o inverno perdura,
Deploras, solitário escravo do solar,Que este sepulcro a dois, nossa casa futura,
Da ausência de buquês se faça consolar.
Sem ouvir Meia-noite e os números que soma,
Só cerras os teus olhos na vigília duraSe aos braços da poltrona antiga enfim assoma
Ao supremo tição a minha Sombra escura.
Quem escolhe a Visita e conhece o segredo
De flores não carrega a pedra que o meu dedoSoergue com o tédio de uma força extinta.
Alma que hesita, trêmula, ante o claro lar,
Para eu volver, basta que aos teus lábios eu sintaO sopro do meu nome em morno murmurar.”
(Pour votre chère morte, son ami)
2 novembre 1877
− “Sur les bois oubliés quand passe l’hiver sombre
Tu te plains, ô captif solitaire du seuil,Que ce sépulcre à deux qui fera notre orgueil
Hélas! du manque seul des lourds bouquets s’encombre.
Sans écouter Minuit qui
jeta son vain nombre,
Une veille t’exalte à ne pas fermer l’oeilAvant que dans les bras de l’ancien fauteuil
Le suprême tison n’âit eclairé mon Ombre.
Qui veut souvent avoir la Visite ne doit
Par trop de fleurs
charger la pierre que mon doigtSoulève avec l’ennui d’une force défunte.
Âme au si clair
foyer tremblante de m’asseoir,
Pour reviver il suffit qu’à tes lèvres j’emprunteLe souffle de mon nom murmuré tout un soir.”
In: Augusto de Campos. Poesia
da recusa. Perspectiva, 2006.
Três
notas:
- Sobre o soneto de Mallarmé e sua tradução,
anotou Augusto de Campos na breve introdução que fez à seção dedicada ao
poeta em Poesia da recusa: “O
soneto (...) que a dedicatória situa em 1877, só foi revelado na edição de
Poésies publicada em 1913 pela
Nouvelle Revue Française, quinze anos depois do falecimento do autor. A obra institui um ritual fantasmagórico
de amor entre o sobrevivente (o amigo a quem o soneto é oferecido) e a
mulher morta. É ela que, figuradamente,
fala ao companheiro inconsolável (“o escravo solar”, na minha versão), a
fim de tranqüiliza-lo: para que ela reviva não são necessárias as flores
que o inverno recusa ao sepulcro (“a ausência de buquês”); basta que ela
ouça o seu nome murmurado nos lábios do amante – “le souffle de mon nom
murmuré tout un soir”, como está no magnífico verso aliterativo e
palindrômico (“mon nom”) que fecha o poema e que a tradução tenta
reproduzir.
- Não quis entrecortar a observação de Augusto com
uma intromissão, mas penso que deva ficar bem claro que o fato de ser a
mulher morta a voz lírica do poema é que explica o uso de aspas ao longo
do texto.
- Sobre a ilustração: ao optar pela “Visitante”,
de Edouard Vuillard - depois de ter
pensado numa das fantasmagóricas e sensuais figuras femininas de Munch – resolvi
estabelecer um diálogo quadro/poema que supõe alguma familiaridade e ao
mesmo tempo um quê de estranhamento com Mallarmé. A familiaridade adviria sobretudo do
fato de Vuillard ser um nos “Nabis“( profetas” em hebraico), grupo de
pintores que na virada do século 19 para 20 constitui uma espécie de
desdobramento do Impressionismo e do Simbolismo pictórico, indo desaguar
um pouco mais tarde no Fauvismo, no
Expressionismo e talvez mesmo no Cubismo.
Entre os Nabis (costumam-se listar no grupo, além de Vuillard, os nomes de Pierre Bonnard, Paul Ranson,
Emille Bernard, Maurice Denis, Louis Arquetin e outros), além de uma
espécie de culto à pintura de Gauguin, havia um fervor de admiração
pela poesia de Mallarmé, que costumavam ler em suas reuniões, como
informa, por exemplo, Giulio Carlo Argan.
Essa “Visitante”, ao retratar não algo como a fantasmagoria do poema mallarmaico, mas
um flagrante da vida doméstica, da vida social, não atua apenas como contraponto ao
soneto, como poderia parecer – minha idéia ao lançar mão dela foi de que
possamos vislumbrar um sentido mais profundo com a obra de Mallarmé se nos
lembrarmos que este também, sem abrir mão jamais de sua poética do rigor,
poetizou cenas, personagens e flagrantes embrenhados na existência cotidiana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário