domingo, 15 de julho de 2012

CAMPOS DE CARVALHO


O.P.Q.R.S.T.U.V.X.Y.Z.

SEGUNDA E DEFINITIVA CARTA AO ‘TIMES”
(Com vista ao sr. Redator da Seção Necrológica)

            Escrevo-lhe esta em prantos, não para comunicar-lhe a morte de um ente querido, mas a minha própria morte.  Como tudo que parece estranho, isto que acabo de anunciar tem na realidade uma explicação muito simples:  é que resolvi suicidar-me e o senhor foi (à falta de um parente ou amigo, que não tenho) a única pessoa a quem me ocorreu dar, de antemão, a dolorosa notícia.  Ao chegar esta à sua mesa repleta de avisos fúnebres e de convites de missa de 7º. dia, já meu corpo, se foi encontrado, estará repousando no lugar que lhe compete dentro da imensidão da terra, ao lado de outros corpos de indigentes anônimos e esquecidos do mundo, com os quais possivelmente me comunicarei nas noites de tédio infinito.

            Ainda uma hora atrás eu não sabia que hoje iria dormir em companhia dos mortos – hoje ou amanhã, conforme o tempo que levem para descobrir meu corpo franzino entre estes enormes eucaliptos e sob este cipreste que espero venha a cobrir um dia minha sepultura rasa.  Como tudo que tenho feito na vida, decidi realizar minha morte sem pensar muito tempo no assunto, mesmo porque sempre me pareceu que a morte não é tão importante quanto querem fazer crer os vivos, dada a nossa perfeita insignificância dentro do Universo.  A morte de um mosquito é tão importante quanto a  minha própria morte, digo-o sem falsa modéstia, e disso o senhor mesmo terá prova ao ficar sabendo do meu suicídio, que o afetará tanto quanto a morte de um dos milhões de perus sacrificados à véspera do Natal.  A comunhão dos mortos ainda pode ser uma realidade, pelo menos para os que nela creem piamente, à sombra da necrofilia católica ou que outro nome tenha;  a comunhão dos vivos, porém, ainda está por existir e com toda certeza não existirá nunca, dada a pouca cordialidade existente entre os homens, como de resto entre todas as feras de uma mesma espécie.

            Sei que é de praxe o suicida invocar grandes razões, e se possível belas, para justificar seu gesto tresloucado, como dizem – e sinto ter que decepcioná-lo não invocando nenhuma razão maior para explicar esta minha fuga prematura de um mundo que afinal é o único mundo com o qual podemos contar honestamente.  Se eu quisesse, certamente poderia encontrar uma dúzia ou mesmo duas de belas razões (metafísicas, econômicas, políticas, etc., etc.) capazes de justificar não apenas o meu suicídio como de toda a humanidade, nos dias que correm como em todos os tempos.  Prefiro, porém ser honesto e dizer que me mato pelo prazer único de matar-me, como existem casos de sujeitos que matam um desconhecido qualquer (não falando da guerra) pelo simples prazer de vê-lo cair morto ou para experimentar uma arma nova.  Sei que é raro isto acontecer, mas acontece; e o meu caso é exatamente um desses.  Enjoei de mim, como poderia ter enjoado da cara de um vizinho que nunca me tivesse feito mal em sua vida – e como não sou obrigado a viver de enjoo, cortei simplesmente o mal pela raiz, eliminando-me da minha vista.  É possível que num dia de primavera e com os bolsos cheios de dinheiro eu não pensasse em eliminar-me com tanta facilidade, mesmo porque o homem é suficientemente tolo  para contentar-se com pouca coisa, eterna criança que é; acontece que hoje não é primavera, nem tenho os bolsos abarrotados de notas de mil francos, de sorte que me sinto decididamente disposto ao suicídio, como o estaria para o homicídio também.  O certo mesmo seria chamar a este meu suicídio de homicídio, já que em mim eu mato o homem que não me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até simpático. 

A lua vem da Ásia foi recentemente montado por Chico Diaz sob forma de monólogo
 
             E já que falei em simpatia, devo deixar claro que morro tão antipático como sempre vivi, tomando-se por base naturalmente a opinião dos outros a meu respeito, não a minha própria.  A náusea que venho de sentir pelo meu corpo cheio de esperma, lágrimas e outros humores trágicos, é uma náusea que, bem ou mal, eu poderia superar com ajuda de alguma filosofia, desde que me dispusesse a praticar a necessária ginástica mental diante do espelho; ao passo que a antipatia que me inspiram os outros, e vice-versa, é algo que nasceu comigo e será hoje comigo assassinado, e que só pode ter explicação na perfeita dessemelhança existente entre mim e os meus semelhantes, entre o meu EU e o que se convencionou chamar de o homem comum. Todas as normas de educação que me tentaram impingir no cérebro tinham por objetivo convencer-me  de que eu e o meu vizinho éramos feitos da mesma massa e consequentemente da mesma qualidade de alma, havendo mesmo alguns exagerados que chegavam a proclamar que ambos  éramos filhos do mesmo pai celestial, a cuja imagem e semelhança havíamos sido feitos em nove meses; a experiência, porém convenceu-me exatamente do contrário, e não foi preciso muito tempo para eu descobrir que não passava de um pequeno monstro dentro da minha espécie, de alguém que não parecia nem sequer consigo mesmo nos diversos momentos e que já nascera fatalmente marcado para a solidão.  E como eu não podia andar metido num escafandro todas as horas do dia, embora já tenha exercido a profissão de escafandrista na penúltima guerra, deu-se o entrechoque fatal entre a minha multidão de almas e a alminha dos meus pseudo-semelhantes. Com consequentes ódios e ressentimentos de parte a parte, como ficou provado nas páginas do meu Diário Íntimo e que um dia ainda serão publicadas.  Nesse livro aparentemente triste, eu me situo na posição de antípoda de todos os seres com os quis vivo esbarrando-me pelas ruas ou mesmo dentro de casa – o que talvez em parte explique meu contínuo peregrinar pelos quatro cantos do mundo,à procura de outro polo no qual certamente  houvesse um outro antípoda à minha espera.

            Mas, sr. redator de assuntos fúnebres, nada mais tenho a dizer, por ora, neste in extremis que já se vai fazendo longo e sem graça , e que certamente será tido por V. S. na devida consideração, atirando-o simplesmente à cesta de papéis velhos.  Desconhecendo-me como o sr. me desconhece, é justo que não queira levar-me a sério e nem sequer se dê ao trabalho de procurar no mapa onde fica San Juan de la Sierra, onde dentro em pouco entregarei a alma ao Criador ou a quem lhe faça as vezes, como quem restitui um guarda-chuva que apenas lhe foi dado em empréstimo.  E para que o sr. me acredite em parte, e bem assim não se sinta de todo roubado em seu precioso tempo, deixo-lhe de presente o meu relógio de estimação, que pertenceu a um enforcado das minhas relações e marca todos os minutos da vida com uma precisão realmente cronométrica, apesar de também já ter sido enforcado com o seu dono.

            Funereamente seu,

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In: A lua vem da Ásia.  2 ed. José Álvaro, Editor, 1965.

          Campos de Carvalho (1916-1998) é um escritor que amo,  desde as crônicas que publicava n' O Pasquim na década de 70.  Foi difícil então achar edições de seus romances, e o primeiro que consegui foi deste A lua vem da Ásia, cuja primeira edição é de 1954. sua obra hoje é, felizmente, mais conhecida, e existem edições recentes de seus livros.  Para uma visão panorâmica e muito lúcida de seu legado, recomendo o excelente artigo de Nelson de Oliveira e Sinvaldo Júnior, publicado na também excelente revista online O bule, cujo link segue:  http://www.o-bule.com/2010/02/vinganca-do-icone-iconoclasta.html .

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