sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

DOIS MULATOS BAIANOS NÃO ALINHADOS: MARIGHELLA E CAETANO



UM COMUNISTA

Um mulato baiano,
muito alto e mulato
filho de um italiano
e de uma preta hauçá

foi aprendendo a ler
olhando o mundo à volta
e prestando atenção
no que não estava a vista

Assim nasce um comunista

Um mulato baiano
que morreu em São Paulo
baleado por homens
do poder militar

nas feições que ganhou
em solo americano
a dita guerra fria
Roma, França e Bahia

Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!

O mulato baiano,
minimanual
do guerrilheiro urbano
que foi preso por Vargas

depois por Magalhães
por fim, pelos milicos
sempre foi perseguido
nas minúcias das pistas

como são os comunistas

Não que os seus inimigos
estivessem lutando
contra as nações terror
que o comunismo urdia

mas por vãos interesses
de poder e dinheiro
quase sempre por menos
quase nunca por mais

Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!

O baiano morreu
eu estava no exílio
e mandei um recado:
"eu que tinha morrido"

e que ele estava vivo,
mas ninguém entendia
vida sem utopia
não entendo que exista

Assim fala um comunista

Porém, a raça humana
segue trágica, sempre
indecodificável
tédio, horror, maravilha

Ó, mulato baiano
o samba o reverencia
muito embora não creia
em violência e guerrilha

Tédio, horror e maravilha

Calçadões encardidos
multidões apodrecem
há um abismo entre homens
e homens, o horror

Quem e como fará
com que a terra se acenda?
e  desate seus nós
discutindo-se Clara

Iemanjá, Maria, Iara
Iansã, Catijaçara

O mulato baiano
 já não obedecia
às ordens de interesse
que vinham de Moscou

era luta romântica
era luz e era treva
feita de maravilha,
de tédio e de horror

Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! os comunistas!

Carlos Marighella 

 
Ouvindo pela primeira vez “Um comunista’, faixa do mais novo CD de Caetano Veloso me deparo de saída  com esta belíssima gênese: “Foi aprendendo a ler/olhando o mundo à volta/e prestando atenção/no que não estava à vista/assim nasce um comunista”, gênese que sempre se poderá argumentar que não precisa ser necessariamente a de um comunista mas de qualquer um com impulso  de compreensão humanista do mundo e anseio de justiça social, OK.  Mas  faz todo o sentido que Caetano se refira  na letra a Carlos Marighella, comunista não-alinhado a Moscou, expulso do PCB e morto pela repressão policial-militar em São Paulo em fins de 1969, homenageado na canção.  Sob o impacto hoje da morte de outro grande comunista, este sempre alinhado, Oscar Niemeyer, chego a me emocionar quando leio, algumas estrofes abaixo “O baiano morreu/eu estava no exílio/e mandei um recado:/’eu que tinha morrido’/e que ele estava vivo/mas ninguém entendia”, porque, entre outras coisas em 1969 eu li esse texto n’O Pasquim e, obviamente, também não entendi a referência, embora me encantasse, sim, e creio que para sempre,  com as imagens desoladas da prosa de Caetano.  Emociono-me com a memória, não sei bem precisar esta emoção. Eu tinha na ocasião apenas 13 anos, estava me exercitando em prestar atenção no que não estava à vista, e se O Pasquim estava, se era vendido nas bancas de revista  e fazia grande estardalhaço, em boa medida era porque ali sabíamos que se falava de coisas que absolutamente também não estavam á vista.  Éramos poucos, talvez?  Preparávamo-nos para sermos comunistas, como a direita pensava – e pensa sempre? Éramos jovens com anseios de justiça social e liberdade?  Hoje já não sou mais jovem, mas a imagem de Caetano vai na mosca: sigo querendo prestar atenção no que não está à vista. E recomendo o mesmo a todos, aos jovens, meus filhos incluídos.
Mas tergiverso.  A ideia desta postagem  é  sobretudo informação.  Assim, vou transcrever na íntegra o texto de Caetano, publicado originalmente na edição d’O Pasquim de 27/11 a 02/12/1969.  Confiro no Google que Marighella foi morto no começo de novembro de 1969.  Eis  texto de Caetano, referido na canção, que hoje está no volume organizado por Eucanaã Ferraz, O mundo não é chato, da Companhia das Letras, 2005:

Hoje quando eu acordei

            Hoje quando eu acordei eu dei de cara com a coisa mais feia que eu já vi na minha vida.  Essa coisa era a minha própria cara. Eu sou um sujeito famoso no Brasil, muita gente me conhece.  Eu acredito que a maneira pela qual esse conhecimento se dá pode dizer muito a mim mesmo sobre mim.  Acho que uma capa de revista pode ser como um espelho para um homem famoso.  Quando um homem vê a sua cara no espelho ele vê objetivamente em que estado a vida o deixou.
            O videoteipe, a fotografia colorida e as manchetes que incluem o nome de um homem famoso são também assim como o espelho.  Durante todo o tempo em que eu estive trabalhando com música popular no Brasil, eu sempre levei em conta esse fato.  E eu pensava que estava fazendo alguma coisa, pois a imagem que me era devolvida era a de alguém vivo, em movimento, passando realmente por entre as coisas.
            Hoje eu fui à aula de inglês e Mr. Lee me ensinou a usar direct speech  em lugar de reported speech.  Depois da aula King’s Road estava uma beleza sob uma chuva fria e crônica.  Eu atravesso as ruas sem medo, pois eu sei que eles são educados e deixam o caminho livre para eu passar.  Mas eu não estou aqui e não tenho nada com isso.
            Estou andando como os homens, com meus dois pés.  Não penso em fazer nada.  Alguém entende o que seja isso?
            O cara que vende cigarro no Picasso fala espanhol. Na janela da casa onde eu estou morando tem uns gerânios que já estão secando por causa do outono.  Meu coração está cheio de um ódio opaco.  As crianças inglesas são belas e agressivas.  A Rainha Elizabeth está pedindo aumento de salário.  Eu não dependo disso tudo.  Nada disso depende de mim.  O aspirador não serve para limpar as cortinas porque é muito pesado.  Aqui em casa.  O Rei esteve ontem aqui em casa e eu chorei muito.  Se você quiser saber quem eu sou eu posso lhe dizer; entre no meu carro, na estrada de Santos, você vai me conhecer.
            Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso.  Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu.  Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço pra esses caras.  Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar.  Mas virão outros.  Nós estamos mortos.
            Ele está mais vivo do que nós.”
 
          Que fale por si o texto, mas acrescento algumas notinhas, apenas como adendos informativos, sem querer avançar em interpretações.  Reponta a referência a João Cabral, decisiva influência no Caetano pré-tropicalista e que volta e meia marca presença em sua poética ainda hoje.  No caso, a referência é vigorosa e se faz pela  afirmação da vida, superando os signos  da morte: a imagem de “alguém vivo realmente passando entre as coisas”  é a imagem da  “espessura da vida” n’ “O cão sem plumas”, as afirmações do movimento do rio, da espada, do cão, do homem, de quem se diz que se sabem vivos na medida em que “viver é ir entre o que vive”, assim como “uma ave que vai cada segundo conquistando seu voo”.  Outra curiosidade do texto é a frase “Eu atravesso as ruas sem medo, pois eu sei que eles são educados e deixam o caminho livre para eu passar”  que depois surgirá quase idêntica no inglês de “London London” (supondo estou, claro, que a canção seja posterior ao texto).  E finalmente a referência à visita que Roberto Carlos faz a Caetano em Londres, que depois será contada em Verdade tropical e em outras ocasiões:  é muito próprio de Caetano esse movimento desconcertante de deriva do texto; no caso aqui,  depois de se ater a aspectos e observações banais de sua vida no exílio londrino, inclusive a nota cômica de a Rainha estar pedindo aumento de salário, quando fala no Rei “aqui em casa”  quem  estaria seguro para saber que se trata do “Rei” Roberto Carlos, mesmo com a referência óbvia a “As curvas da estrada de Santos”, lançada  no disco daquele ano?  José Miguel Wisnik teve uma grande sacada ao designar como “oculto óbvio” esse traço de Caetano, muito presente em suas canções e atitudes no tropicalismo e imediatamente após, e que será mesmo tematizado em canções (“Não-identificado”, “A voz do morto”, “A voz do vivo” e de forma eloquente em “Um índio”).  O “oculto óbvio”, afinal, responde tanto pela referência ao baiano Marighella quanto ao fato de ninguém ter percebido a (óbvia) referência (oculta).  

Marighella morto em tocaia, novembro de 69.  A foto saiu na imprensa e é possível que seja a ela que Caetano se refere




            Nas suas memórias dos tempos do tropicalismo, Verdade tropical, lançado em  1997, é assim que Caetano situa todos os acontecimentos de que fala o texto e a letra da recente canção (ele fala em “nós”, referindo-se à dupla de exilados, ele e Gil):

            “Acompanhávamos de longe o que se passava no Brasil. Sem que eu estivesse certo do que poderia resultar de uma revolução armada, o heroísmo dos guerrilheiros como única resposta radical à perpetuação da ditadura merecia meu respeito assombrado. No fundo, nós sentíamos com eles uma identificação à distância, de caráter romântico, que nunca tínhamos sentido com a esquerda tradicional e o Partido Comunista.  Nós os víamos – e um pouco nos sentíamos – à esquerda da esquerda.  Quando mataram Marighella, o líder da guerrilha urbana, um baiano que pertencera ao Partido Comunista e que tinha a fama de ter respondido, quando estudante, às questões de uma prova de química em versos decassílabos rimados, coincidiu de publicarem as primeiras fotos que fizeram de nós no exílio na mesma capa de revista em que expunham a de Marighella morto.  Isso me pareceu doloroso. Eu enviava então, a pedido de Luís Carlos Maciel, artigos para o jornal O Pasquim, e, considerando o peso simbólicos da coincidência das duas imagens naquela capa de revista (a de maior tiragem do Brasil de então), escrevi um longo e amargurado texto que terminava  com a afirmação: ‘Nós estamos mortos; ele está mais vivo do que nós’.  Nem uma só pessoa no Brasil percebeu do que eu estava falando. Recebi muitas cartas tentando reconfortar-me pelo sofrimento de estar exilado e conversei com várias pessoas que passavam por Londres e por Paris: mesmo os que mencionavam a execução de Marighella e o meu artigo não relacionavam nem remotamente uma coisa à outra.  Fiquei espantado e isso meu deu uma espécie de medida da distância psicológica que nos separava dos que estavam vivendo no Brasil.  As notícias de ações terroristas causavam um misto de entusiasmo e apreensão.  Afinal, doces tocadores de violão saídos  dos lares da classe média não se sentem muito à vontade diante da perspectiva de violência.  Mas as trocas de embaixadores de países ricos por grupos de prisioneiros – com as agradáveis confirmações por parte dos sequestrados de que foram tratados com humanidade – apareciam como gloriosas vitórias daqueles que lutavam a boa luta da resistência.”

Caetano no exílio londrino

 
Só mais um "aliás": sobre Oscar Niemeyer, morto ontem, dediquei-lhe um poema, por ocasião de seus 100 anos, que publiquei em meu livro Firma irreconhecível, e que foi igualmente uma das primeiras postagens deste blog.  O leitor que quiser lê-lo pode acessar o link http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2010/12/oscar-niemeyer.html.

Nenhum comentário:

Postar um comentário