UM COMUNISTA
Um mulato baiano,
muito alto e mulato
filho de um italiano
e de uma preta hauçá
foi aprendendo a ler
olhando o mundo à volta
e prestando atenção
no que não estava a vista
muito alto e mulato
filho de um italiano
e de uma preta hauçá
foi aprendendo a ler
olhando o mundo à volta
e prestando atenção
no que não estava a vista
Assim nasce um comunista
Um mulato baiano
que morreu em São Paulo
baleado por homens
Um mulato baiano
que morreu em São Paulo
baleado por homens
do poder militar
nas feições que ganhou
em solo americano
a dita guerra fria
Roma, França e Bahia
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!
O mulato baiano,
a dita guerra fria
Roma, França e Bahia
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!
O mulato baiano,
minimanual
do guerrilheiro urbano
do guerrilheiro urbano
que foi preso por Vargas
depois por Magalhães
por fim, pelos milicos
sempre foi perseguido
por fim, pelos milicos
sempre foi perseguido
nas minúcias das pistas
como são os comunistas
Não que os seus inimigos
estivessem lutando
contra as nações terror
que o comunismo urdia
mas por vãos interesses
de poder e dinheiro
quase sempre por menos
quase nunca por mais
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!
O baiano morreu
eu estava no exílio
e mandei um recado:
"eu que tinha morrido"
Não que os seus inimigos
estivessem lutando
contra as nações terror
que o comunismo urdia
mas por vãos interesses
de poder e dinheiro
quase sempre por menos
quase nunca por mais
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!
O baiano morreu
eu estava no exílio
e mandei um recado:
"eu que tinha morrido"
e que ele estava vivo,
mas ninguém entendia
vida sem utopia
não entendo que exista
mas ninguém entendia
vida sem utopia
não entendo que exista
Assim fala um comunista
Porém, a raça humana
segue trágica, sempre
indecodificável
tédio, horror, maravilha
Ó, mulato baiano
o samba o reverencia
muito embora não creia
em violência e guerrilha
Porém, a raça humana
segue trágica, sempre
indecodificável
tédio, horror, maravilha
Ó, mulato baiano
o samba o reverencia
muito embora não creia
em violência e guerrilha
Tédio, horror e maravilha
Calçadões encardidos
multidões apodrecem
há um abismo entre homens
e homens, o horror
Quem e como fará
com que a terra se acenda?
e desate seus nós
discutindo-se Clara
Calçadões encardidos
multidões apodrecem
há um abismo entre homens
e homens, o horror
Quem e como fará
com que a terra se acenda?
e desate seus nós
discutindo-se Clara
Iemanjá, Maria, Iara
Iansã, Catijaçara
O mulato baiano
Iansã, Catijaçara
O mulato baiano
já não obedecia
às ordens de interesse
às ordens de interesse
que vinham de Moscou
era luta romântica
era luz e era treva
feita de maravilha,
era luz e era treva
feita de maravilha,
de tédio e de horror
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! os comunistas!
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! os comunistas!
Carlos Marighella |
Ouvindo pela primeira vez “Um comunista’, faixa do mais novo CD de Caetano Veloso me deparo de saída com esta belíssima gênese: “Foi aprendendo a ler/olhando o mundo à volta/e prestando atenção/no que não estava à vista/assim nasce um comunista”, gênese que sempre se poderá argumentar que não precisa ser necessariamente a de um comunista mas de qualquer um com impulso de compreensão humanista do mundo e anseio de justiça social, OK. Mas faz todo o sentido que Caetano se refira na letra a Carlos Marighella, comunista não-alinhado a Moscou, expulso do PCB e morto pela repressão policial-militar em São Paulo em fins de 1969, homenageado na canção. Sob o impacto hoje da morte de outro grande comunista, este sempre alinhado, Oscar Niemeyer, chego a me emocionar quando leio, algumas estrofes abaixo “O baiano morreu/eu estava no exílio/e mandei um recado:/’eu que tinha morrido’/e que ele estava vivo/mas ninguém entendia”, porque, entre outras coisas em 1969 eu li esse texto n’O Pasquim e, obviamente, também não entendi a referência, embora me encantasse, sim, e creio que para sempre, com as imagens desoladas da prosa de Caetano. Emociono-me com a memória, não sei bem precisar esta emoção. Eu tinha na ocasião apenas 13 anos, estava me exercitando em prestar atenção no que não estava à vista, e se O Pasquim estava, se era vendido nas bancas de revista e fazia grande estardalhaço, em boa medida era porque ali sabíamos que se falava de coisas que absolutamente também não estavam á vista. Éramos poucos, talvez? Preparávamo-nos para sermos comunistas, como a direita pensava – e pensa sempre? Éramos jovens com anseios de justiça social e liberdade? Hoje já não sou mais jovem, mas a imagem de Caetano vai na mosca: sigo querendo prestar atenção no que não está à vista. E recomendo o mesmo a todos, aos jovens, meus filhos incluídos.
Mas tergiverso. A ideia desta postagem é sobretudo informação. Assim, vou transcrever na íntegra o texto de Caetano, publicado originalmente na edição d’O Pasquim de 27/11 a 02/12/1969. Confiro no Google que Marighella foi morto no começo de novembro de 1969. Eis texto de Caetano, referido na canção, que hoje está no volume organizado por Eucanaã Ferraz, O mundo não é chato, da Companhia das Letras, 2005:
Hoje quando eu acordei
Hoje quando eu acordei eu dei de cara com a coisa mais feia que eu já vi na minha vida. Essa coisa era a minha própria cara. Eu sou um sujeito famoso no Brasil, muita gente me conhece. Eu acredito que a maneira pela qual esse conhecimento se dá pode dizer muito a mim mesmo sobre mim. Acho que uma capa de revista pode ser como um espelho para um homem famoso. Quando um homem vê a sua cara no espelho ele vê objetivamente em que estado a vida o deixou.
O videoteipe, a fotografia colorida e as manchetes que incluem o nome de um homem famoso são também assim como o espelho. Durante todo o tempo em que eu estive trabalhando com música popular no Brasil, eu sempre levei em conta esse fato. E eu pensava que estava fazendo alguma coisa, pois a imagem que me era devolvida era a de alguém vivo, em movimento, passando realmente por entre as coisas.
Hoje eu fui à aula de inglês e Mr. Lee me ensinou a usar direct speech em lugar de reported speech. Depois da aula King’s Road estava uma beleza sob uma chuva fria e crônica. Eu atravesso as ruas sem medo, pois eu sei que eles são educados e deixam o caminho livre para eu passar. Mas eu não estou aqui e não tenho nada com isso.
Estou andando como os homens, com meus dois pés. Não penso em fazer nada. Alguém entende o que seja isso?
O cara que vende cigarro no Picasso fala espanhol. Na janela da casa onde eu estou morando tem uns gerânios que já estão secando por causa do outono. Meu coração está cheio de um ódio opaco. As crianças inglesas são belas e agressivas. A Rainha Elizabeth está pedindo aumento de salário. Eu não dependo disso tudo. Nada disso depende de mim. O aspirador não serve para limpar as cortinas porque é muito pesado. Aqui em casa. O Rei esteve ontem aqui em casa e eu chorei muito. Se você quiser saber quem eu sou eu posso lhe dizer; entre no meu carro, na estrada de Santos, você vai me conhecer.
Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço pra esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos.
Ele está mais vivo do que nós.”
Que fale por si o texto, mas acrescento algumas notinhas, apenas como adendos informativos, sem querer avançar em interpretações. Reponta a referência a João Cabral, decisiva influência no Caetano pré-tropicalista e que volta e meia marca presença em sua poética ainda hoje. No caso, a referência é vigorosa e se faz pela afirmação da vida, superando os signos da morte: a imagem de “alguém vivo realmente passando entre as coisas” é a imagem da “espessura da vida” n’ “O cão sem plumas”, as afirmações do movimento do rio, da espada, do cão, do homem, de quem se diz que se sabem vivos na medida em que “viver é ir entre o que vive”, assim como “uma ave que vai cada segundo conquistando seu voo”. Outra curiosidade do texto é a frase “Eu atravesso as ruas sem medo, pois eu sei que eles são educados e deixam o caminho livre para eu passar” que depois surgirá quase idêntica no inglês de “London London” (supondo estou, claro, que a canção seja posterior ao texto). E finalmente a referência à visita que Roberto Carlos faz a Caetano em Londres, que depois será contada em Verdade tropical e em outras ocasiões: é muito próprio de Caetano esse movimento desconcertante de deriva do texto; no caso aqui, depois de se ater a aspectos e observações banais de sua vida no exílio londrino, inclusive a nota cômica de a Rainha estar pedindo aumento de salário, quando fala no Rei “aqui em casa” quem estaria seguro para saber que se trata do “Rei” Roberto Carlos, mesmo com a referência óbvia a “As curvas da estrada de Santos”, lançada no disco daquele ano? José Miguel Wisnik teve uma grande sacada ao designar como “oculto óbvio” esse traço de Caetano, muito presente em suas canções e atitudes no tropicalismo e imediatamente após, e que será mesmo tematizado em canções (“Não-identificado”, “A voz do morto”, “A voz do vivo” e de forma eloquente em “Um índio”). O “oculto óbvio”, afinal, responde tanto pela referência ao baiano Marighella quanto ao fato de ninguém ter percebido a (óbvia) referência (oculta).
Caetano no exílio londrino |
Só mais um "aliás": sobre Oscar Niemeyer, morto ontem, dediquei-lhe um poema, por ocasião de seus 100 anos, que publiquei em meu livro Firma irreconhecível, e que foi igualmente uma das primeiras postagens deste blog. O leitor que quiser lê-lo pode acessar o link http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2010/12/oscar-niemeyer.html.
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