quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

TEMPORADA DE VERÃO, COPACABANA.1


Véspera de natal.

Chego cedo na casa dos pais, almoço com eles, depois do almoço a indispensável sesta. 

Depois de alguns minutos, acordo sem entender direito.  No quarto ao lado, aos berros, meu pai chama por minha mãe.  Ela, da sala, lhe responde, pachorrentamente, o que me indicava não haver nada de anormal na aparente emergência: “ – O que há? O que você quer?”  Recebeu de volta outra pergunta: “- O que você está fazendo?” Vem deitar!” “Vou, mas primeiro vou acabar de ver o filme de Maria e José. Ela passou três meses fora e chega grávida, ele não está gostando nada disso.  Acho que ela vai ser apedrejada. Você não quer ver? Vem ver o apedrejamento”  A conversa é, das palavras à entonação com que são ditas, mais o que exalam de absoluto à vontade na certeza do que o outro está pensando, um resumo de quase 70 anos de vida em comum.  No que obviamente devem se incluir as lições de catecismo, o beabá da história da sagrada família e outras informações do almanaque religioso que minha mãe, como boa filha de italiano, tem de cor e salteado.  Meu pai responde, de dentro de sua picardia, que se aguça, a depender da ocasião,  pelo Alzheimer contraído há não muito tempo: “- Vou ver nada, eu não!  Ela não é apedrejada. Se Maria  foi apedrejada, foi com pedras de gelo.”

Do quarto ao lado, começo a rir. Foi-se a sesta. Acabou num quase Monty Python.

Foto de Ivo Korytowski

Falei em catecismo... meus pais moram hoje na Barão de Ipanema  em frente à igreja de São Paulo Apóstolo, a qual, vista de cima,  me ocorre que  deveria ser chamada de basílica de São Paulo Apóstolo por  conta de sua cúpula redonda. Só que diferente do que eu pensava, isso parece não ser o bastante para que uma igreja seja chamada basílica  Enfim... os que são católicos   que se entendam.  Anexo à São Paulo Apóstolo  fica o colégio Guido de Fontgalland. Colégio pequeno, particular, ensino religioso.  Olho pela janela do apartamento de minha mãe e lembro que os mais antigos resquícios de catolicismo em mim, todos muito débeis em termos de reverência respeitosa, ligam-se àquela igreja e àquela escola.  Que mal freqüentei.  A ambos. Espaços com os quais não estabeleci a mínima proximidade afetiva.  Provável mesmo que,  até muito pelo contrário, quero-os afetivamente distantes.

Ali eu fui reprovado pela primeira vez em catecismo. Tenho medo de me confundir aqui ao escrever, já que parece que existe – ou existia – um colégio da própria igreja.  Mas não quero que esses detalhes me travem, sigo.



 

 Penso que tive duas experiências marcantes na minha relação com o catolicismo e ambas só fizeram afastar-me dele.  Houve uma anterior a este desastrado catecismo, mas conto esta primeiro: matriculado numa turma onde também estavam alguns colegas de escola (eu estava na 2ª. ou na 3ª. série), a professora era nada menos que assustadora: uma negra imensa de óculos de lentes escuras, uma voz trovejante, encorpada,  que ela emitia sempre  com muita intensidade.  Não bastasse, ainda brandia  uma régua, a exemplo daqueles mestres que vemos  em gravuras de livros antigos.  Leio  “assustadora” e “negra” e nem de longe enxergo qualquer laivo de racismo no que escrevi.  O “negro” do assustador não se liga ao fato de a professora ser uma pessoa negra, estou certo disso.  Claro que ela o era.  Mas vem  do fato de que,  lembro agora,  as vezes em que fui à malfadada aula – penso que talvez tenha ido a duas, três, não mais do que isso – a professora trajava sempre uns vestidos de tecido escuro,  pesados – e me ocorre também  que eu às vezes a via fora dali, no dia-a-dia do bairro  e sempre a via assim trajada. E mais do que isso, eu a associei desde logo, e ainda agora, também por conta de uns óculos puxados para fora,  à montanha demoníaca que aparece em  “Uma noite no Monte Calvo”, de Mussorgski, no Fantasia de Disney, filme que vivia passando nos cinemas de Copa e que lembro de ter assistido várias vezes, mesmo muito antes  do advento dos vídeos caseiros.  No filme, o belíssimo poema sinfônico de Mussorgski faz um medley com a “Ave Maria” de Schubert, as trevas demoníacas sendo banidas pela luminosidade celestial, o tormentoso de Mussorgski trocado pela impressionante placidez de Schubert, o cortejo de fantasmas,  pela procissão.  Quem viu o desenho de Disney sabe.


 

 

Mas o que ficou de aterrorizante dessa minha primeira experiência catecúmena frustrada foi de início ouvir o que a professora falava com enorme prazer, que sua voz aterradora chegava a tornar quase palpável: dizia ela sobre os atributos divinos, antegozando o êxtase do terror que devia saber que semeava na garotada,  que a onipotência, a onisciência e a onipresença de Deus significavam especialmente que  “Deus vê e sabe de tudo que você faz e pensa” , acrescentando com cada vez  mais ênfase  o  Não há onde alguém possa fugir da presença de Deus, nem mesmo antes de nascer!” ... alguns anos depois vim a me divertir com a coincidência desse mesmo medo pânico na canção de Raul Seixas, “Para Nóia”: “Deus vê sempre tudo o que cê faz/mas eu não via Deus... achava assombração...”

Mas por aquela época aquilo não me divertiu, horrorizou-me. Ainda mais quando o Marco Antonio, um menino que era da minha turma na escola e era como se dizia “muito levado”, aprontou alguma durante a temível lição, certamente entre um mandamento  e outro,  que fez com que a professora partisse irada para cima dele, de  régua em punho, com o propósito mesmo de alcança-lo, e o alcançaria,   e sei lá o que faria com o pobre moleque, se não fosse a existência de um  tablado onde ela ministrava suas aterradoras lições – tablado que a deixava ainda mais alta, mais corpulenta, mais ameaçadora - , o qual  fez com que ela pisasse em falso ao descê-lo, tentasse ainda se segurar mas em vão numa carteira próxima, e viesse se desequilibrando, catando cavaco até desabar estrondosamente no chão, o terrível monstro do Monte Calvo ali, prostrado a nossos pés infantis, tudo sem deixar em nenhum momento de bradar “Capeta, menino dos infernos!” e repetindo, repetindo, repetindo a frase, mesmo derreada no chão.   Engraçado é que da cena lembro só mesmo desse enorme desabar e da frase que o monstro repetia.  Não sei se é honesto dizer que Marco Antonio foi tomado de pânico e correu porta afora, ou se isso já é por conta de uma necessidade minha de saber os desdobramentos da narrativa.  Essa veracidade não sou capaz de assegurar.  Não tenho mais a mínima lembrança de nenhum outro pormenor relativo ao catecismo. Sei que, também sem saber detalhes das circunstâncias, ao final do curso fui declarado ainda não apto para a primeira comunhão – sei que nunca fui capaz de decorar aquele decálogo perverso  de interdições.  O que foi um alívio, já que outro pânico que me infundiram foi com relação ao fato de que a hóstia representa o corpo de Cristo e que se partir na boca na hora da comunhão terá sido um pecado muito sério, que Cristo ficaria  triste e ferido, eu chegava a imaginar minha boca com o gosto do sangue do Filho de Deus, horror dos horrores!  Mas a demonstração pragmática que Deus dera de sua onisciência e onipotência ao derrubar a temida professora tinha sido eloqüente demais para que eu não passasse desde então a viver arrumando pretexto para justificadamente  me esconder sempre dele.  Digo, Dele. Brrrrrrrrrr.

 


Falei antes que esse episódio não tinha sido a minha primeira experiência marcante a me afastar do catolicismo (penso mesmo que das religiões em geral, certamente pelo menos as monoteístas) . Nem sequer o fato de ter sido reprovado em catecismo o  foi, já que  houve ainda outra reprovação, na verdade um abandono do curso em prol do sagrado exercício da pelada, que eu até já contei aquihttp://robertobozzetti.blogspot.com.br/2011/02/em-torno-d-missa-de-behr-e-de-mim.html

 

Mas a experiência anterior a que me refiro, acho mesmo que até mais decisiva, se deu com o livro Marcelino pão e vinho.
 
 
Foi o primeiro livro que li, aos 6 anos.  Eu só fui para a escola com 7 anos, entrei direto na segunda série, fui alfabetizado em casa por meu irmão – acho que ele nem sabe o quanto lhe sou ternamente grato até hoje por isso.  Escrito por José Maria Sánchez Silva, publicado pela primeira vez nos primeiros anos  da ditadura franquista (para quem não sabe, um dos esteios de Franco era a igreja católica), é a estória de um menino órfão que é adotado por monges franciscanos, passando a viver no mosteiro com eles.  Apesar de ser alegre e muito inquieto, entre mil peripécias  Marcelino vai bater num sótão, onde a entrada lhe era expressamente proibida, e lá se depara com uma escultura de um Senhor morto (espanhol... brrrrrrr!) , com o qual passa a conversar constantemente – e secretamente, visto que lhe era interdito – e acaba revelando a Cristo que seu maior sonho era encontrar-se com a mãe, desejo irrealizável a não ser que ele, claro,  morresse.  Claro que é o que acaba ocorrendo, após uma enfermidade contraída.  Posso estar me equivocando quanto a um detalhe ou outro, não importa.  Em linhas gerais, é isso.   Sei que nos anos 1950 foi feito o filme, de enorme sucesso de público, mas dele não tenho lembrança alguma. O que me lembro é a imagem, construída em letra escrita, do Cristo descendo de sua cruz e levando a alma do menino consigo.  E dos monges, após, prostrados, ante o pequeno corpo morto.
 Como o título desta postagem indica, me proponho nesta série a contar em quatro ou cinco momentos algo de minhas memórias copacabanenses, e alguém pode estar se perguntando que diabos Marcelino  tem a ver com Copacabana.  Não é apenas pelo fato de ser memória de infância e  de eu ter vivido a infância em Copa, mas aqui no caso de Marcelino tem ainda e principalmente  o seguinte: o sótão onde o menino ia conversar com o Cristo crucificado era identificado por mim ao quarto de guardados que havia na minha casa em Copacabana.  Era um quarto pequeno, atulhado de esboços de quadros (“bozzetti” em italiano significa exatamente isso) de meu avô, um personagem admirável,  pintor acadêmico,  e que havia deixado de pintar por ter ficado cego (tenho pouquíssimas lembranças de meu avô ainda enxergando).  Ali ficavam guardadas também uma porção de ferramentas, muitas, que meu avô, mesmo depois de cego ainda utilizava, além de quinquilharia de toda ordem, bisnagas de tinta, espátulas diversas, cavalete, mil tralhas.  Pois bem: entre os amontoamentos do pequeno cubículo havia uma escultura de gesso de um Cristo crucificado, feita por ele o avô. Entre o sótão que o pequeno Marcelino freqüentava às escondidas dos monges e o quarto de guardados de nossa casa deu-se uma relação por assim dizer ficcional, que fez a ponte identitária que acabou por tornar a minha leitura produtiva.  E ao mesmo tempo apontou na direção de um necessário afastamento para evitar uma  relação vicária com o escrito.  E seu resultado mais efetivo foi o de ter me aproximado para sempre da literatura e ter me afastado para sempre do catolicismo.

A leitura do terrível livrinho espanhol acho que me pavimentou o bloqueio para a não-aceitação dos ensinamentos da catequese católica, e em sentido mais amplo, cristã, para sempre. E, mais fundo, o que tudo isso tem de Copacabana, não sei bem, mas certamente essas reminiscências têm a ver com uma Copacabana interna a mim.


O Cristo do espanho Juan Manuel Miñarro
 

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