quarta-feira, 15 de abril de 2015

MURILO MENDES





O GALO

Quando eu era menino, acordando cedo de madrugada, ouvia o galo cantar longíssimo, o canto forte diluía-se na distância, talvez viesse das abas redondas de Chapéu d’Uvas, ou das praias que eu imaginava no Mar de Espanha, sei lá, no cornimboque do diabo.  Nesse tempo não existiam galos no nosso terreiro.

*

         Até que um dia lá chegou um galo soberbo, fastoso, corpo real, portador de plumagem azul-verde-vermelha.  Seu canto era agressivo: napoleônico.  Os galos da distância cederam o passo a este outro próximo, tocável, fichável.  Aproximei-me muitas vezes do galo, testando-o; ele baixava a cabeça para examinar-me, conferenciava com as galinhas d’angola, bicando qualquer grão ou cisco; depois voltava a mim, levantando já agora a cabeça para marcar sua superioridade, talvez de tribuno, barítono, boxeador; desafiando-me a que com a crista?  O galo me atraía e repelia; eu receava que me bicasse, ou que me disparasse um jato de dejeções.  Embora admirando-os, nunca me senti muito à vontade com os bichos; mesmo algumas plantas ou certos frutos, por exemplo a begônia e o maracujá causavam-me receio.  Desde o começo a natureza pareceu-me hostil.

*

         Um dia abeirei-me do galinheiro manejando um bilboquê diante do galo; quis mostrar-lhe que o dominava, que ele seria incapaz de jogar bilboquê, jogo da moda.  O galo farejou o objeto; julgando-o certamente esotérico sacudiu a plumagem, empinou a crista, abanou a cabeça rindo, um riso voltaireano, adstringente.  Polígamo que era, atacou à minha vista, alternativamente, duas galinhas carijó, cobrindo-as, contundente, claro que para me fazer despeito.  Atirei o bilboquê no chão, arma inútil, vencida.   

                   Do “Setor Microzoo” do livro Poliedro  (1972)


Murilo Mendes.  Poesia completa e prosa.  RJ: Nova Aguilar, 1994.

Nenhum comentário:

Postar um comentário