O GALO
Quando eu era menino,
acordando cedo de madrugada, ouvia o galo cantar longíssimo, o canto forte
diluía-se na distância, talvez viesse das abas redondas de Chapéu d’Uvas, ou
das praias que eu imaginava no Mar de Espanha, sei lá, no cornimboque do
diabo. Nesse tempo não existiam galos no
nosso terreiro.
*
Até
que um dia lá chegou um galo soberbo, fastoso, corpo real, portador de plumagem
azul-verde-vermelha. Seu canto era
agressivo: napoleônico. Os galos da
distância cederam o passo a este outro próximo, tocável, fichável. Aproximei-me muitas vezes do galo,
testando-o; ele baixava a cabeça para examinar-me, conferenciava com as
galinhas d’angola, bicando qualquer grão ou cisco; depois voltava a mim,
levantando já agora a cabeça para marcar sua superioridade, talvez de tribuno,
barítono, boxeador; desafiando-me a que com a crista? O galo me atraía e repelia; eu receava que me
bicasse, ou que me disparasse um jato de dejeções. Embora admirando-os, nunca me senti muito à
vontade com os bichos; mesmo algumas plantas ou certos frutos, por exemplo a
begônia e o maracujá causavam-me receio.
Desde o começo a natureza pareceu-me hostil.
*
Um
dia abeirei-me do galinheiro manejando um bilboquê diante do galo; quis
mostrar-lhe que o dominava, que ele seria incapaz de jogar bilboquê, jogo da
moda. O galo farejou o objeto;
julgando-o certamente esotérico sacudiu a plumagem, empinou a crista, abanou a
cabeça rindo, um riso voltaireano, adstringente. Polígamo que era, atacou à minha vista, alternativamente,
duas galinhas carijó, cobrindo-as, contundente, claro que para me fazer
despeito. Atirei o bilboquê no chão,
arma inútil, vencida.
Do
“Setor Microzoo” do livro Poliedro (1972)
Murilo Mendes. Poesia
completa e prosa. RJ: Nova Aguilar,
1994.
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