domingo, 19 de abril de 2015

Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto: sobre pureza e puros.



CARTA AOS “PUROS”

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens iluminados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos. 

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

Vinícius de Moraes.  Poesia completa e prosa. RJ: Nova Aguilar, 1987

 

 


        Somente os muito tolos ou inexperientes no quesito vida estranhariam a amizade entre dois poetas praticamente antípodas, Vinícius e João Cabral.  A partir da antítese que fundou suas poéticas, eu mesmo durante muito tempo estranhava sempre que lia que eram muito amigos.  Ponha-se isso em parte na minha pouca vivência, pouca compreensão das relações humanas, em especial da amizade; de outra parte, ponha-se no fato de ter vivido boa parte da vida num ambiente em que o campo da poesia brasileira era muito faccionalizado.  Acho mesmo que deve continuar sendo – a rigor não sei, pois quero distância de “vida literária” - , mas é que durante muito tempo João Cabral era lido como um dos esteios do paideuma concretista e Vinícius como um neo-romântico, ou pior, um desleixado “poetinha”. Os meandros disso, bom, é só se inteirar um pouco da história de nossa poesia que se vão descobrindo coisas e coisas.

         O fato é que cultivaram a amizade, apesar de suas poéticas serem de fato duas águas da poética brasileira modernista. Não lembro onde li que ao ler “Morte e vida severina”, Vinícius teria se mostrado empolgado, ao que Cabral retrucara: “Vinícius, esse poema não é pra você não, eu escrevi pra operário, você é intelectual, tem que gostar é de ‘Uma faca só lâmina’”.  O excelente filme de Bebeto Abrantes Recife Sevilha: João Cabral de Meo Neto, documentário de 2003, tem passagem saborosíssima a respeito da amizade dos dois (vale anotar ainda a amizade de vida inteira de Cabral com Ledo Ivo, seu companheiro de geração e de poética bem distinta e mesmo oposta – também nisso o filme de Abrantes toca): numa gravação em fita de rolo em reunião social, Vinícius canta acompanhando-se ao violão, quando se ouve a voz de Cabral: “Sem ser de amor você não sabe fazer não, não é?  Você só canta o coração, não sabe cantar outra víscera?”  Vinícius reage bem humorado,  dizendo que vai musicar os poemas bem “cerebrinos” do pernambucano, “Vou musicar aqueles poemas da cabra, você vai ver...”  De permeio não se pode deixar de frisar que Vinícius -  “um lírico”, como de forma desdenhosamente divertida Cabral a ele se referia, ou melhor, se referia a todos os poetas que não fossem ele próprio, Cabral – é um dos pilares da nada santíssima trindade bossanovista, ao lado de Tom Jobim e João Gilberto, constituindo-se pois no grande pai poético da instituição MPB…  Aos passo que para João Cabral a música não passava do “menos desagradável dos ruídos”, como ouvi de viva voz o poeta dizê-lo nos pilotis da PUC na Expoesia em 1975.  Sobre o Cabral antimúsico,  Caetano Veloso  lhe dedicou – e a João Donato, o músico antipoeta – sua canção “Outro retrato” do CD Estrangeiro.

         Me lembrei dessas coisas todas ao topar dia desses com um poema de Vinícius que anda bem a calhar para nossos tempos de obscurantismo, hipocrisia falsamente pura, sacripantas vivendo em felicidade de maré montante.  E ao reler a “Carta aos ‘Puros’”, lembrei ainda da exegese poética  rigorosa a que lhe submete Cabral com seu “Ilustração para a Carta aos Puros”, de A educação pela pedra, livro de 1966 (o poema de Vinicius é da década de 1950, parece).  Aqui Cabral lhe impõe o rigor do puro e do “puro”,  através da depuração não purista de dois tipos de cal.  Dois belíssimos poemas.

         Não poderia deixar de ilustrar esta postagem com uma foto que amo – não sei quem é o fotógrafo – dos dois poetas, no meio de suas andanças de diplomatas, que ambos eram, numa Paris do anos 1960 com um icônico Citroën-sapo ao fundo.

 

ILUSTRAÇÃO PARA A “CARTA AOS PUROS” DE VINÍCIUS DE MORAES

 A uma se diz cal viva: a uma, morta;
uma, de ação até o ponto de ativista,
passa de pura a purista e daí passa
a depurar (destruindo o que purifica).
E uma, nada purista e só construtora,
trabalha apagadamente e sem cronista:
mais modesta que servente de pedreiro
aquém de salário mínimo, de nortista

Uma cal sai por aí tudo, vestindo tudo
com o algodãozinho alvo de sua camisa,
de uma camisa que, ao vestir de fresco,
veste de claro e de novo, e reperfila;
e nas vezes de vestir parede de adobe,
ou de taipa, de terra crua ou de argila,  
essa cal lhe constrói um perfil afiado,
uma quina pura, quase de pedra cantaria.
Uma cal não sai: se referve em caieiras
se apurando sem fim a corrosão e a ira,
o purismo e a intolerância inquisidora,
de beata e gramatical, somente punitiva;
se a deixassem sair, sairia roendo tudo
(de tudo, e até de coisas nem nascidas),
e no fim roídas as fichas e indicadores,
se roeria os dentes: enfim autopolícia.


João Cabral de Melo Neto.  Obra completa. RJ: Nova Aguilar, 2003.



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