MOSCOU-VARSÓVIA
(26 de maio
de 1956)
Se este
avião caísse, crispado entre os ouros, as copas e as espadas eu ficaria;
sarrafos nas pálpebras, para que se mantivessem abertas durante o incêndio,
colocaria;
Se este
avião caísse, as madrugadas de meu filho de um terror violeta se elucidariam;
na tarde calcinada, a sombra de minha mulher se inflamaria; minha filha não me
encontraria deitado sobre o feno, escondido atrás da porta, acima dos
cata-ventos com os braços carregados de bonecas; mais do que a minha garra em
um livro e um lírio não encontraria; um gesto no espelho, uma espátula de osso,
um pensamento;
Se este
avião caísse, em uma esquina de Ipanema, eu nunca mais esperaria;
Se este
avião caísse, só uma pessoa não diria “que pena” (a que caía e se esquecia e se
consumia, e só se libertaria quando de todo caísse e se esquecesse e se
consumisse);
Se este
avião caísse, de mim o firmamento em torvelinho se afastaria; os mortos da
Lituânia e da Masuria a mim viriam, e no silêncio rodeado de verdura me
receberiam; soldado quase desconhecido, mãos desligadas do corpo – exangues e
sem armas – ah, a terra de ninguém eu atravessaria;
Se este
avião caísse, de arquitetar a condição de criatura um arquiteto a mais
desistiria; certos de que outros chegarão a construir a humana arquitetura (o
que se faz há muitos anos e se fará em um dia);
pousado sobre o meu peito o pássaro cruento do meio-dia; o criptógrafo
egípcio afinal se explicaria; em fragmentos candentes, a minha carne emigraria;
espantalho em farrapos, só o vento de leve me espantaria;
Se este
avião caísse, este papel em cinzas arderia; a estrela rubra do poema nenhum
jornal publicaria; fosse cair daqui a pouco, ainda assim o escreveria; a vida e
a morte são as amantes, são a esposa, da poesia;
Se este
avião caísse, os meus vizinhos compreenderiam; lembrando-se dos meus cabelos no
elevador, uma intuição qualquer no ar lhes diria que só não fui um amigo por
falta de tempo ou covardia; mas pode alguém perfeitamente amar o seu vizinho se
apenas, grave, pela manhã lhe diz “bom dia”; e então, sentimentais e sem razão,
de mim, coitados, se apiedariam; e de se sentirem tão sensíveis, em fino prazer
espiritual tudo (de mim) enfim se acabaria;
Se este
avião caísse, a música de meu apartamento ensurdeceria; os volumes nas
estantes, de já não ter quem os lesse como eu os lia, pardos e fechados
ficariam; outros mais sábios vir e servir-se poderiam; mas o meu jeito de ler e
pensar desapareceria; no entanto, se este avião caísse, daquilo que é apenas
meu a orgulhar-me não chegaria;
Se este
avião caísse, já ninguém mais meditaria na ave que passou gemendo contra o vento
na bruma fria; o segredo que não cheguei a tocar a ninguém mais preocuparia; só
se a meu filho legasse a vocação da tristeza e o heroísmo da alegria;
Se este
avião caísse, decerto me compadeceria dos que caíssem comigo sem a coragem da
poesia; embora talvez fosse eu quem mais saudades levaria; poentes roxos de
Minas, praias aéreas da Bahia; chapéu de palha de Leda, olhos castanhos de
Lilia; pubescência de Teresa, experiência de Maria; prosadores da Irlanda,
poetas da Andaluzia; Etna fumegando em Taormina, em Siena a Piazza della
Signoria; manhãs de iodo na praia, noites etílicas de boemia; bailarinas de Leningrado, gaivotas da
Normandia; sorriso da menina, do menino a euforia; Wagner compondo o Parsifal,
Nietzsche uivando em Sirls
Maria ; a mulher que foi comigo, a que não foi mas iria;
tantas que, mais houvera, para que de vez caísse, pediria;
Se este
avião caísse com ele cairia um homem que pelo menos entenderia a fábula da
folha que se desprendeu e desaparecia; e assim seu coração na terra, no mar e
no céu, como de triste e maduro caísse, não se surpreenderia, nem reclamaria;
pois esse aflito coração, de ter amado e sofrido, na amplitude da morte se
conformaria;
Se este
avião caísse, em um domingo azul do mar um peixe até a pedra nadaria; não encontrando o meu anzol, ao alto-mar
regressaria; desse desencontro tecido de tão lindos equívocos, a sua carne se
salvaria; e o domingo azul do mar ainda mais azul reluziria.
In:
Fernando Ferreira de Loanda (Org.). Antologia
da nova poesia brasileira. 2 ed. Orfeu, 1970.
Magnífico!
ResponderExcluirSem dúvida, Victor, magistral...
ExcluirUm abraço
Magníco poeta, infelizmente desconhecido das novas gerações
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