segunda-feira, 27 de julho de 2015

DRUMMOND


                                  Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

 

ENTRE NOEL E OS ÍNDIOS


Noel Nutels (1910-1973)


Em Vila Rosali Noel Nutels repousa
do desamor alheio aos índios
e de seu próprio amor maior aos índios.
Como se os bastos bigodes perguntassem:
Valeu a pena?
Valeu a pena gritar em várias línguas
e conferências e entrevistas e países
que a civilização às vezes é assassina?
Valeu, valeu a pena
criar unidades sanitárias aéreas
para salvar os remanescentes
das vítimas de posseiros, madeireiros, traficantes
burocratas et reliqua,
que tiram a felicidade aos simples
e em troca lhes atiram de presente
o samburá de espelhos, canivetes,
tuberculose e sífilis?

Noel baixa de helicóptero
e vê a fome à beira d’água trêmula de peixes.
Homens esquecidos do arco-e-flecha
deixam-se consumir em nome
da integração que desintegra
a raiz do ser e do viver.

“Vocês têm obrigação de usar calça
camisa paletó sapato e lenço,
enquanto no Leblon nos despedimos
de toda convenção, e viva a natureza...”
Noel, tu o disseste:
A civilização que sacrifica
povos e culturas antiqüíssimas
é uma farsa amoral.

O Parque maravilha do Xingu
rasgado e oferecido
ao galope das máquinas,
não o quiseste assim e protestaste
como se fosse coisa tua, e era
pois onde um índio cisma
e acende fogo e dança
a  dança milenar  extra-Conservatório
e desenha seu momento de existir
longe da Bolsa, da favela e do napalm,
aí estavas tu, teu riso companheiro,
teus medicamentos ,
tua branca alegria de viver
a vida universal.
 
Valeu? Valeu a pena
teu cerne ucraniano
fundir-se em meiga argila brasileira
para melhor sentires
o primitivo apelo da terra
moldura natural de homens xavantes
e kreen-akarores
lar aberto de bororos
carajás e kaingangs
hoje tão infelizes
pela compulsão da felicidade programada.
Valeu, Noel, a pena
seguir a traça de Rondon
e de Nimuendaju,
mãos dadas com Orlando e Cláudio Villas-Boas
sob o olhar de Darci Ribeiro
e voar e baixar e assistir e prover
e alertar e verberar
para que fique ao menos no espaço
este signo de amor compreensivo e ardente
que foi a tua vida sertaneja,
a tua vida iluminada,
a tua generosa decepção.
 

Carlos Drummond de Andrade. As impurezas do branco. RJ: José Olympio, 1973.

 

 
Nutels com Claudio Villas-Boas no Xingu
 

                           
Carlos Drummond de Andrade. As impurezas do branco. RJ: José Olympio, 1973.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário