sábado, 14 de janeiro de 2012

MAIAKÓVSKI

A SIERGUEI IESSIÊNIN *

Você partiu,
            como se diz,
                        para o outro mundo.
Vácuo...
            Você sobe,
                        entremeado às estrelas.
Nem álcool,
            nem moedas.
Sóbrio.
            Voo sem fundo.

Não, Iessiênin,
            não posso
                        fazer troça –
Na boca
            uma lasca amarga,
                        não a mofa.
Olha –
            sangue nas mãos frouxas,
você sacode  
            o invólucro
                        dos ossos.

Pare,
            basta!
                        Você perdeu o senso?
Deixar
            que a cal
                        mortal
                                   lhe cubra o rosto?
Você,
            com todo esse talento
para o impossível,
            hábil
                        como poucos.

Por quê,
            para quê?
                        Perplexidade.

– É o vinho!
            – a crítica esbraveja.
Tese:
            refratário à sociedade.
Corolário:
            muito vinho e cerveja. –
sim,
            se você trocasse
                        a boêmia
                                   pela classe,
a classe agiria em você,
            e lhe daria um norte.
E a classe
            por acaso
                        mata a sede com xarope?
Ela sabe beber –
            nada tem de abstêmia.

Sim,
            se você tivesse
                        um patrono no “Posto” , –
ganharia
            um conteúdo 
                        bem diverso:
todo dia
            uma quota
                        de cem versos,
longos
            e lerdos
                        como Dorônin.

Remédio?
            Para mim,
                        despautério:
mais cedo ainda
                        você estaria nessa corda.
Melhor
            morrer de vodca
que de tédio!

Não revelam
            as razões
                        desse impulso
nem o nó,
            nem a navalha aberta.
Talvez,
            se houvesse tinta no “Inglaterra”,
            não cortaria
                        os pulsos.
Os plagiários felizes
            pedem: bis!
Já todo
            um pelotão
                        em auto-execução.
Para que
            aumentar
                        o rol de suicidas?
Antes
            aumentar
                        a produção de tinta!

Agora
            para sempre
                        tua boca
                                   está cerrada.
Difícil
            e inútil
                        excogitar enigmas.
O povo,
            o inventa-línguas,
perdeu
            o canoro
                        contramestre de noitadas.
E levam
            versos velhos
                        ao velório,
sucata
            de extintas exéquias.
Rimas gastas
            empalam
                        os despojos, –
é assim
            que se honra
                        um poeta?

Não
            te ergueram ainda um monumento, –
onde
            o som do bronze
                        ou o grave granito? –
E já vão
            empilhando
                        no jazigo
dedicatórias e ex-votos:
                        excremento.

Teu nome
            escorrido no muco,
teus versos,
            Sóbinov os babuja,
voz quérula
            sob bétulas murchas –
“Nem palavra, amigo,
            nem o so-o-luço”.
Ah,
            que eu saberia dar um fim
a esse
            Leonid Loengrim!
Saltaria
            – escândalo estridente:
– Chega
            De tremores de voz!
Assobios
            nos ouvidos
                        dessa gente,
ao diabo
            com suas mães e avós!

Para que toda
            essa corja explodisse
inflando
            os escuros
                        redingotes,
e Kógan
            atropelado
                        fugisse,
espetando
            os transeuntes
                        nos bigodes.

Por enquanto
            há escória
                        de sobra.
O tempo é escasso –
                        mãos à obra.
Primeiro
            é preciso
                        transformar a vida,
para cantá-la –
                        em seguida.

Os tempos estão duros
                        para o artista:
Mas,
            dizei-me,
                        anêmicos e anões,
os grandes,
                        onde,
                        em que ocasião,
escolheram
            uma estrada
                        batida?

General
            da força humana
                        – Verbo –
marche!
            Que o tempo
                        cuspa balas
                                   para trás,
e o vento
            no passado
                        só desfaça
um maço de cabelos.

Para o júbilo
            o planeta
                        está imaturo.
É preciso
            arrancar
                        alegria
                                   ao futuro.
Nesta vida
            morrer não é difícil.
O difícil
            é a vida e seu ofício.

                        (Tradução de Haroldo de Campos)
           
In: Boris Schnaiderman.  A poética de Maiakóvski através de sua prosa.  Perspectiva, 1971.
           




O poeta Sierguei Iessiênin




* Sierguei Iessiênin (1895-1925) era contemporâneo do autor, ambos integrando o círculo de jovens poetas russos do começo do século XX que viriam a revolucionar – dentro do espírito vanguardista que varria a Europa e se propagou para as Américas no período – as concepções poéticas do século.  No mesmo período,  e com ligações estreitas com esses escritores, é bom lembrar que se desenvolviam as pesquisas em lingüística e poética do que viria ser conhecido como o Formalismo Russo, que é praticamente a corrente inaugural da moderna Teoria da Literatura.  A propósito, há uns cinco anos a Cosac-Naify lançou a edição brasileira de A geração que esbanjou seus poetas, importante ensaio do lingüista Roman Jakobson, talvez o mais famoso integrante do grupo.
            Vladimir Maiakóvski (1893-1930) escreveu o poema acima praticamente em desagravo às homenagens póstumas que foram dedicadas a Iessiênin,  que se suicidara por enforcamento pouco antes (esse desagravo precisa ser percebido pelo leitor, que numa leitura ingênua pode apenas concluir que Maiakóvski condena o suicida) no Hotel Inglaterra – citado numa passagem do poema –  em Leningrado (hoje novamente São Petersburgo), pela  cultura oficial do que já estava se tornando o Estado burocrático soviético após a revolução de 1917. Maiakovski, que participara ativamente da revolução e dedicara seu ofício de poeta em prol do projeto de uma nova sociedade, mais e mais se via em dificuldades políticas ao lidar com a burocracia e a moral proletária que se apossavam do aparelho de  Estado, principalmente a partir da ascensão de Stálin ao poder em 1922, sucedendo a Lênin. O poema traduz muito dessa inconformidade maiakóvskiana, aliada ao desregramento e à inadaptação célebres também do desafortunado homenageado. Há algumas referências bem circunstanciais no texto, das quais escolho esclarecer duas delas (os esclarecimentos na verdade são do tradutor Haroldo de Campos, que aborda ainda outras circunstâncias):
1.    No verso “Sim, se você tivesse um patrono no ‘Posto’”: o “Posto” era, informa Haroldo, a revista da Associação russa de escritores proletários;
2.    No verso “e Kógan atropelado fugisse”, Kógan era o crítico P.S. Kógan, representante máximo do sectarismo dogmático comunista, com quem Maiakóvski se atritara inúmeras vezes, informa a mesma fonte.

Outras referências circunstanciais podem ser importantes, mas creio que o leitor de poesia saberá pelo menos deduzir, uma vez captada a lógica do texto, os papeis cumpridos pelos agentes em cena.  Vale a pena ainda comentar que, especialmente em seu final, o poema de Maiakóvski dialoga explicitamente com o pequeno último poema escrito com sangue e deixado ao lado do corpo por Iessiênin por ocasião de seu suicídio.  O poema de Iessiênin, na tradução de Augusto de Campos, é facilmente localizado na rede.
Em tempo: cinco anos após Iessiênin, também Maiakóvski viria a cometer suicídio,  com um tiro no peito.
             

3 comentários:

  1. Do belíssimo livro de Jakobson: “O futuro também não nos pertence. Daqui a algumas dezenas de anos, seremos chamados, sem qualquer piedade, de gente do milênio passado. Tínhamos apenas cantos apaixonantes sobre o futuro e, de repente, esses cantos, frutos da dinâmica do presente, transformaram-se em fatos da história literária. Quando os cantores são assassinados e as canções, arrastadas ao museu e presas ao passado, a geração atual torna-se ainda mais desolada, mais abandonada e perdida, mais deserdada, no sentido verdadeiro da palavra.”

    Belo post, querido. Saudades de você. Um beijo grande.

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  2. Mariana querida,

    belíssima lembrança de citação do livro de fato excelente, belíssimo. que bom que você gostou da postagem, saudades sempre de você.

    Beijo grande do
    Bozzetti

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