Estamos precisando ouvir Paulinho da Viola. Não gosto nem de pensar no tanto de tempo já decorrido desde que foi lançado seu último CD. Acho até que a indústria fonográfica ainda existia.
Bebadachama, o CD ao vivo, foi em 97. Em 99 um outro, ao vivo, com Toquinho. Quanto tempo tem já o filme Meu tempo é hoje? Dez anos? Quase isso? E o programa da MTV? Uns cinco anos ou mais? Se eu for falar do tempo que está passando sem lhe ouvir as novidades vou ficar aflito. Paro por aqui.
Não se trata de saudade não. Nem poderia. Acho que aprendi com ele a como lidar com isso da saudade (embora eu já tivesse uma aversão natural a abrigá-la), quero dizer, a como entender que o culto da saudade não faz sentido. Desde que...
Desde que se tenha a compreensão do que Paulinho várias vezes já disse em entrevistas – e mesmo pessoalmente a mim –, e que eu vou tentar traduzir. Tentarei explicar à altura
O que as pessoas chamam de saudade é o desejo de preencher, de repor de alguma maneira, alguma coisa que achamos, as pessoas, que ali já esteve, que ali estava e que, sabe-se lá como e por que, de alguma forma deixou de estar. Um vazio.
Quer dizer, a saudade – ó truísmo! – é repor uma perda. Essa perda é um déficit do presente em relação ao passado, certo? Só que isso que presumivelmente seria reposto no lugar do que falta, por exigência nossa ao sentirmos saudade, seria reposto tão somente para suprir essa falta. Não seria outra a razão de sua existência. Donde se conclui que isso que “tapa o buraco”, que “preenche o vazio”, não teria nenhuma outra razão presente de existência. Assim seriam dois os déficits: daí que a saudade seria uma forma também de autofagia.
Mas, e quando não se cai nessa de que a razão de existir do que existe no presente – mesmo naquele que hoje é passado – não pode ser simplesmente tapar os buracos das nossas carências? Isso eu acho que quem quis aprender com Paulinho da Viola aprendeu. É se descolar da ilusão dos vazios.
É se descolar da ilusão da saudade. O que acontece tem sua razão de existir nesse acontecer. O que é bom, o que é forte, acontece em sentido intenso e extenso. Isso podemos cobrar de tudo aquilo que acontece – falemos de fatos e objetos culturais – para que essas coisas se revistam de valor para nós. Quanto ao presente, fazemos na verdade uma aposta: que elas continuem presentes. E quanto ao que aconteceu no passado, não significa que elas tenham morrido, que elas não sejam mais. A permanência do presente nelas (mais do que a permanência delas num presente qualquer que não o imediato de sua criação) é que define a força que elas venham a possuir.
Assim: Pixinguinha está aí, como Noel está aí, como estão aí Ary, Caymmi, Gonzagão, Cartola, Lupicínio, Nelson Cavaquinho, Geraldo e Wilson, Candeia, Zé Kéti, Manacea, Monarco e Mano Décio... eles e tantos outros estão aí. Não é justo confiná-los nos escaninhos do passado. Temos é que estar à altura do que eles fizeram , já que julgamos que eles fizeram por permanecer.
Dito assim talvez seja fácil. Difícil é viver com isso, difícil é viver isso. Porque fazê-lo implica ter uma visão mais ampla do presente, implica não ter nítida a linha demarcatória onde se confina a memória no gueto do passado – melhor: implica, a rigor, não ter essa linha demarcatória. A atualização do “passado” não existe. Existe o passado – sem que lhe tenhamos que dar este nome – no presente atual. Qualquer cochilo, o saudosismo entra por aí, insidioso. Não choramingar pelo tempo que se foi é o difícil. O tempo foge? Colha-se o dia.
É possível que eu não esteja me fazendo entender. Mas quero voltar ao ponto de onde parti.
Estamos precisando ouvir Paulinho da Viola. E digo: eu, particularmente, não tenho saudade nenhuma de ouvi-lo. Acho que agora fica fácil entender: tenho aqui comigo todos os seus discos, assim como tenho vários vídeos. A vontade de ouvir bate, eu vou ali e ouço. Sem contar que ele está comigo mesmo quando não o estou ouvindo, incorporado de vez ao meu “fatal lado esquerdo”, como diria Drummond. O que ele já compôs, já deixou gravado tem uma existência plena, o presente que está contido nesses sambas, nesses choros se presentifica a cada vez que, na comodidade que as mídias proporcionam, eu ponho um CD ou um DVD pra girar. E é muito bom saber que a cada vez que acontece, o prazer que sinto nada tem a ver com saudade. É diferente: e se digo que precisamos ouvir, assumindo este coletivo, é porque Paulinho da Viola está fazendo falta.
Faz falta ouvir um CD novo, novas canções, novos sambas, novos choros. Que sejam composições próprias ou dos compositores que ele freqüenta. Não importa se inéditas ou não. Nesse sentido faz falta ouvi-lo. Nesse sentido talvez pudesse ele ser um pouco menos avaro (a palavra é pesada, reconheço, quase a rasuro; mas acabo por deixá-la: será que ele se aborreceria?).
Faz falta ouvir também Paulinho falar. Não para “dar jeito nas coisas”, como se costuma dizer, no samba ou em coisa que o valha. Ninguém precisa “tomar na cara pra ver que o samba etc”, já disse o Chico. Nem precisa, o samba, de quem o salve, ele “é terrível”, já dizia o Caetano de 68, num samba aliás dedicado a Paulinho. Os caminhos e descaminhos do samba continuam e continuarão a se fazer, mas a fala de Paulinho, para nos falar um pouco de sua visão de tudo isso, falta. Mesmo porque, ele é felizmente, para meu gosto, o menos professoral dos grandes mestres do samba. “Meio oficial”, ele me disse certa vez quando o chamei de mestre: “Na qualificação dos artesãos historicamente era assim. Primeiro você era aprendiz e depois, meio oficial, até chegar a oficial, marceneiro-oficial, pedreiro-oficial, porque parece que o sujeito tinha que deixar o ofício, correr as várias oficinas e aí, depois de um certo tempo ele se tornava oficial. O mestre já era uma coisa bem mais avançada mesmo. Eu me vejo como meio oficial. É, o mestre já é alguma coisa bem superior”.
A sua fala parentética, tmética está fazendo falta porque entre outras coisas ela não discorre com “naturalidade” fingida ou sincera sobre as obviedades que cercariam o estatuto artístico entre nós, brasileiros. Como escreveu Nuno Ramos num belo texto, em Paulinho existe a compreensão de que a origem daquilo que ele faz, o samba, é uma origem cultural e não, como é tão comum se considerar entre nós (ainda mais em se tratando de samba!) , uma origem natural. Daí vem muito da diferença fundamental entre Paulinho e seus pares – no samba e fora dele. Paulinho não pode – ou não sabe, tanto faz – ser professoral, falar como um “naturalista” fascinado com o exotismo (inclusive o próprio) porque não é de exotismo, não é de natureza, não é de natureza exótica que se trata. Trata-se – se o assunto for o samba ou for o choro ou for a música em geral – de coisas, de artefatos, de objetos, de criações e criaturas e criadores vivos, presentes, passando aqui e ali o tempo todo, exigindo reposicionamentos, outros ângulos para ver como tudo se movimenta, nada está parado, morto, dado, estabelecido nesse universo. Isso é o contrário do que a cultura brasileira em 90% dos casos (claro que o dado aqui é retórico) faz ao falar de samba. A profunda e diferente compreensão disso explica a fala parentética de Paulinho. Que faz falta. Bem utilizada, é um espermicida contra a saudade.
De carona nessa sutil diferença de Paulinho em relação ao samba, vem também a sua recusa em se converter á outra equação simplificadora de ver o samba como a encarnação dos valores positivos da identidade nacional. Não encontramos isso em Paulinho, e sua fala, sempre sutilmente taxativa em relação ao tema, precisa também se fazer ouvir. Se bem que hoje essa concepção muito tacanha, tantos tropicalismos depois, já está bem debilitada. Bem compreendida, toda a sua obra dá conta dessa recusa. Num de seus primeiros discos, em 1971, Paulinho deixou que o poeta Capinam falasse por ele em texto da contracapa” “Pra que dizer que existe música brasileira? Existe o zumbido da alma de cada um”.
Num poema muito longo do Firma irreconhecível, “Cabral com ímpares”, procurei dar conta de um trio de homenageados certamente um tanto improvável: o poeta João Cabral, Tom Zé e Paulinho da Viola. A uni-los, por meio de tantas diferenças, a compreensão muito profunda neles da necessidade do aprendizado em arte, aprendizados tão diferentes – presumo – entre si. Tentando pastichar a dicção cabralina, lá pelas tantas do poema eu ouso falar um pouco do específico do aprendizado em Paulinho, tentando ainda, ao roçar pelas imagens que remetem ao mundo natural, delas desviar e incorporar apenas o que roça por suas franjas, em direção ao que é cultural, construído, feito, e não dado:
Por contra-exemplo: Paulinho
que a seu nome incorporou
a doce curva da viola
mas com corte: cavaquinho;
por contra-exemplo de Tomzé
a coleção de Paulinho
que um seu Mestre nomeou:
coleção de passarinhos:
rouxinóis de arrabalde
gaturamos do longínquo
em Paulinho a canção-pássara
não teme a pedra que a extingue;
não mais canções não mais pássaros
sabe que no mundo existem
e ele os leva então na voz
e dentro de si: inquilinos
não em gaiola acoitados
ou presos em si clandestinos,
porém mais como passageiros
a descer o Velho Chico
no curso de tanta água
tendo o mar como destino
mas antes do mar tanta água
a atravessar, desmedida
que a canção-pássara que a passa
pervaga um curso intestino
não desfraldada como em mar
mas destilada em alambique
e desce em Oswaldo Cruz
articulando em repique
o repouso dos dormentes
à mordente voz dos trilhos.
Pra encerrar, faz falta ouvir Paulinho cantar num novo CD, faz falta ouvi-lo falar. Seus dois brilhantes companheiros de geração, Chico e Caetano, nos têm presenteado com admiráveis obras de sua maturidade criativa, irrequieta, tensa, tão dolorosa às vezes. O que teria Paulinho para nos mostrar? Começa o novo ano, 2012 está aí. Não seria bom ouvir Paulinho da Viola de novo, e muito, em 2012?
Feliz Ano Novo!
concordo: é bom ouvir Paulinho
ResponderExcluir2012 cheio de sons e sins
abraço
sim e sempre, querido.
ResponderExcluirbjbj.
Vamos ao debate filosófico musicoliterário...kkk
ResponderExcluirEntendo o que você disse, mas vê se entende o que penso. Existem dois tipos de saudade(sem valoração) se pensarmos no que a provoca. Uma, aquela que vem por desejo de algo que não se pode ter momentaneamente, para esta Saudade acho que se aplica o exposto em seu texto. Pois ela não é uma impossibilidade. A saudade das músicas do Paulinho, a falta que ela anda fazendo, pode ser suprida num futuro. Ela ainda é possibilidade. Mas o outro tipo de saudade, não é tão fácil de gerir. Pois ela nasce de uma impossibilidade. É estática. Quando ela é saudade de algo que nunca mais se poderá ter. Ai eu já encaro como o Pierre Hadot encara as musas. A saudade, neste caso, para mim, é o gatilho da memória. Ela faz retornar do limbo do esquecimento aquilo que é impossibilidade, que não existirá mais a não ser no campo da memória. Mais ou menos por ai. São 23:51 acabei de estudar matemática então a mente não tá ajudando... depois continuo. Abraços mestre.
"Pensando Alto"
ResponderExcluirConcordo quanto ao que você chama de “saudade estática”: claro, aí a saudade é uma espécie de motor do poético, é uma força motriz que movimenta todas as forças da criação. Mas ainda assim é de se esperar que essa criação não fique se comprazendo em se cantar apenas enquanto saudade, se é que me faço entender. A ativação do “gatilho da memória” deve ser feita em favor do poético, não do centramento na saudade em si – como algo meramente auto-referente que outra coisa não fizesse a não ser cantar a si próprio.
Agora, quando eu me refiro a saudade estou colocando em cena quase que exclusivamente a questão na discussão da produção dos bens simbólicos, dos objetos de arte, como as canções etc. OK?
Obrigado pelo comentário
um abraço do
Roberto Bozzetti
Saudade
ResponderExcluirVocê fez da minha vida
Uma rua sem saída
Por onde andou minha solidão........
Sinto saudade de ouvir você cantar um samba.
bjs
Tunico, meu caro
ResponderExcluirainda bem que sua saudade é de índole puramente afetiva, sem maiores exigências estéticas! quem sabe, vc ainda produz um CD meu!
abração do
Roberto