sexta-feira, 29 de junho de 2012

DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS TRANSCRIADO POR HAROLDO DE CAMPOS


VII
1.    Volta volteia Sulamita
volta volteia      e nós te estaremos contemplando
Na Sulamita   o que tanto contemplais?
é vê-la enquanto dança   a dança-dos-campos rivais

2.     Como teus pés são belos   nas sandálias
filha de príncipes
O redondo de tuas coxas      como as curvas de um adorno
obra do torno de um artífice

3.     Teu umbigo   uma taça de lua
fina mistura de vinho   nunca lhe faltará
Teu ventre    um acúmulo de trigo
emoldurado    de rosas

4.    Teus dois peitos    como dois filhotes
gêmeos de uma corça

5.    Teu pescoço   uma torre de marfim
Teus olhos   piscinas em Hesebon
junto ao portal   de Bad-Rabim
teu nariz   qual a torre do Líbano
mirando   em direção a Damasco

6.    Tua cabeça sobre ti   como o cimo do Carmelo
e as ondas de tua cabeça   como púrpura
Um rei   se encadeia em tuas tranças

7.    Como és bela   como és doce
amor   em tuas delícias

8.    Esse teu porte   como o da palmeira
E teus peitos   iguais a cachos

9.    Eu disse   subirei à palmeira
apanharei   suas ramas
E teus peitos sei que serão   como cachos de videira
e o perfume de tuas narinas   como o aroma das maçãs

10.  E o céu de tua boca   como um vinho escolhido
escorre para o amigo   suave em seu fluir
Entreabre   os lábios que estão dormindo

11.  Eu sou do meu amigo
e sobre mim   seu desejo
12.  Vem meu amado   iremos campo afora
à noite dormiremos   em canteiros de cipros

13.  Iremos de manhã   aos vinhedos
veremos    se a vinha floriu
se estão abertos os botões
se os pés de romã   já estão em flor
   te darei meu dulçor

14.  As mandrágoras difundem seu perfume
a nossas portas   todas as delícias
primícias   e frutas maduras
Meu amigo  escondi-as para ti

Haroldo de Campos.  Éden – um tríptico bíblico.  Perspectiva, 2004.

Haroldo de Campos em sua "bibliocasa" em foto de German Lorca

 
A extraordinária trajetória de Haroldo de Campos (1929-2003)  como poeta, teórico,  pensador e tradutor incluiu as transcriações (termo que ele preferia a “traduções”, tendo desenvolvido toda uma cerrada teoria a respeito) que fez de livros bíblicos, a saber Qohélet, O-que-sabe (Eclesiastes) e Bere’shit: A Cena da Origem, lançadas respectivamente em 1990 e 2001.  Em 2004, portanto já postumamente, a Perspectiva lançou o volume  Éden – Um tríptico bíblico, incluindo duas cenas do Gênesis (”A astúcia da Serpente” e  “Babel”) e “O Cântico dos Cânticos”. 
A lacuna aqui desta postagem fica por conta da ausência dos sinais de convenção utilizados por Haroldo nas transcriações bíblicas, sinais estes que são disjuntivos, indicam pausas, maiores e menores, cesuras, cortes de hemistíquios.  No Word, com que trabalho, não tenho como lançar mão dos símbolos correspondentes.  Arranjei um jeito muito sem-vergonha que foi dar um espaçamento maior (variável) onde Haroldo empregou os sinais.  Creio que para o bom leitor de poesia, isto é, aquele que sabe sempre da importância da sonoridade (o que inclui o respeito aos silêncios, claros e pausas) para o texto poético, a ausência de tais sinais pode ser suprimida pela aplicação séria de sua sensibilidade no ato de ler.


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