UMA CRIATURA
Sei de uma
criatura antiga e formidável,
Que a si
mesma devora os membros e as entranhas,
Com a
sofreguidão da fome insaciável.
Habita
juntamente os vales e as montanhas;
E no mar,
que se rasga, à maneira de abismo,Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz
impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar
que despede, acerbo e mavioso,Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o
chacal é, como a rola, inerme;
E caminha
na terra imperturbável, comoPelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore
que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a
folha, que lento e lento se desdobra,Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa
criatura está em toda obra:
Cresta o
seio da flor e corrompe-lhe o fruto;E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de
igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e
recomeça uma perpétua lida,E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
In: Machado de Assis. Obra completa v. III, org. Afrânio
Coutinho. Rio: José Aguilar, 1962.
Nenhum comentário:
Postar um comentário