domingo, 29 de março de 2015

HERBERTO HELDER







               

         Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado.  Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro.  Era um nó negro por detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe.  Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.

         O problema do artista era este:  obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que  fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava.  Assim, os elementos do problema constituíam-se n a própria observação dos factos e punham-se por uma ordem, a saber: 1º. – peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor; 2º. – peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

         Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação.  Essa lei seria a metamorfose.  Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo.

 

                                              (do livro Vocação animal, 1971)

 

In: MENÉRES, M. Alberta e MELO E CASTRO, E. M. (org.).  Antologia da novíssima poesia portuguesa. 3 ed. rev. e atualizada.  Lisboa: Moraes, 1971.


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