quarta-feira, 24 de outubro de 2012

JOÃO CABRAL COM PAULINHO DA VIOLA COM TOMZÉ



      No livro  Firma irreconhecível publiquei o longo poema a seguir, uma homenagem a João Cabral de Melo Neto, e também a Paulinho da Viola e Tom Zé, seus ímpares. Claro que se trata de um exercício na dicção cabralina e de, no mesmo movimento poético, de poética, homenagear outras duas grandes admirações minhas; além disso, considerando algumas obsessões do poeta, entre elas a importância que concede ao número par, em especial o 4, ir introduzindo de maneira também nada regular nem  simétrica o ímpar nas estrofes, de 7 versos, até terminar num longo bloco meio aleatório com 23 versos e mais um, que finaliza o poema.  Ao lado disso, a redondilha, verso de 7 sílabas, coexiste com o verso de 8 sílabas, pelo qual o poeta tinha especial predileção (por artes refinadíssimas  de prosódia rítmica, mesmo a redondilha cabralina muitas vezes soa como verso octossilábico).  Cabral é também um poeta da admiração de Paulinho (que o cita, sem nomeá-lo,  em “Bebadosamba”) e de Tom Zé.  Assim, os ímpares e díspares compositores na verdade acabam por configurar  uma constelação poética e afetiva, intelectualmente falando,  de minha parte.



CABRAL COM ÍMPARES



1. O véu continua, Cabral
apesar do heroísmo
do teu sol a punhaladas
ou mesmo a golpes de aspirina;

é que persistem essas sombras
e sei que não é só comigo
(nem somente é letra em livro
que a redondilha desmancha).

O 4, o 8 e o 16
tentam, Cabral, empalar-me em
geometria, mas o ímpar
imperfeito e impertinente

que priva em minha fala íntima
não dói como devia
(a fala deste renitente
em público ainda se equilibra)

e ao velar o acabamento
desvela a própria deriva
não por misteriosamente
mas pelo espesso do que vive.

2. Quatro quadras de quadrão
em décima sexta sentina
por cultivar o inenfático
que ao ouvido desafina,

ressoam onde não se espera
expelidas à revelia
em lâmina cega de véspera
em trama de trava-língua.

Que é quando se adormece
fugindo-se ao sol da vigília
e reincidente e temerário
o véu, Cabral, se insidia

mas não necessariamente
em velame de perfídia:
véu somente, sombra somente
(no papel a letra escrita)

incide a certo intervalo
em que o sol se silencia
e a mudez pode não ser
que seja o final da partida;

dizer: a mudez pode não ser
sublime que a boca saliva
vacância de régua e traço
mas justo ponto de partida

e mesmo a mudez do sol
no esgoto da enxovia
por simples dado de lembrança
cresce como parasita

quando o trava-língua destrava
a timidez da desídia
que a inércia também pode
subordinar-se a armadilhas

as quais submetem os silêncios
a ordenações adjetivas
que vendem ardis a distância
como substâncias ferinas.

3. Mas não era isso, Cabral
que na verdade me movia:
movia-me o moto contínuo
da dialética obsessiva

até o limite onde o não
encontra outro não resoluto
de negar o que quer que exista
por vadiagem ou estudo.

A vadiagem, Cabral
ensina o que não o estudo:
assim como o estudo nem sempre
povoa o museu de tudo

o que a vadiagem pode
descartar em sestro mudo:
a brecha por onde o estulto
entra no papel do sisudo

o mesmo de quem é estulto
e veste roupa de sisudo;
a roupa, o papel, a atitude
são todo o tudo do estulto.






4. Por des-exemplo: Tomzé
e seu zunir de estilingue
a extinguir a canção-pássara
tão logo sua pedra a atinge;

em Tomzé o não é severo
embora semelhe a despiste
de quem se achega à arapuca
pela atração do alpiste

e uma vez preso na gaiola
lhe devora tudo em torno
do que é ardil de alimento:
as finas hastes que a compõem
metal ou madeiramento
incorporam-se ao corpo,
tal comedouro e poleiro

mais o plástico de onde bebe
vaza a água que tem dentro
garganta som canto ventre
trinca canção, trincha ferro
maçarico esmerilamento
sem lugar para o canoro
flauteado do lamento

que o ouvido na concha ouça:
voz de mar, mas não da carne
a qual a despeito do olvido
trabalhou em ressofrimento
grossa bátega de mangue
pedra rija de indormido
parida por boca náufraga

burilada à indiferença
de qualquer divina crença
movida a mó de sabença
estridência de esmeril
pérolas no ostracismo
em longos anos de abismo
um silêncio de cinismo
no ouvido do Brasil.



 

5. Por contra-exemplo: Paulinho
que a seu nome incorporou
a doce curva da viola
mas com corte: cavaquinho;

por contra-exemplo de Tomzé
a coleção de Paulinho
que um seu Mestre nomeou:
coleção de passarinhos:

rouxinóis de arrabalde
gaturamos do longínquo
em Paulinho a canção-pássara
não teme a pedra que a extingue;

não mais canções não mais pássaros
sabe que no mundo existem
e ele os leva então na voz
e dentro de si: inquilinos

não em gaiola acoitados
ou presos em si clandestinos,
porém mais como passageiros
a descer o Velho Chico

no curso de tanta água
tendo o mar como destino
mas antes do mar tanta água
a atravessar, desmedida

que a canção-pássara que a passa
pervaga um curso intestino
não desfraldada como em mar
mas destilada em alambique

e desce em Oswaldo Cruz
articulando em repique
o repouso dos dormentes
à mordente voz dos trilhos.

6. A bigorna da araponga
grita o sol a palo-seco:
secura do próprio sol
a calcinar até o eco
que reduz então crestado
a araponga ao esqueleto.

Assim sobrevive Tomzé,
melhor dizer: supervive.
Analfabetizado ao ler
súbito um dia Euclides
quando se abriram os sertões
agora em página de livro:
 
a página-maçarico
a inflamar o que já havia
desde sempre sido vivido:
ausência de sombra e água
ausência de letra em livro
a reclamar o alarme.

A lágrima de pedra rola
lágrima lisa, sem limo
mas não como um seixo rolado:
limpa apenas de seu visgo
como se interno, lamento
vício visguento cativo.

Ao chorar sabe Paulinho
a lágrima que todos choram
por isso seu choro é vivo,
melhor dizer: ultra-vivo
desfaz o visgo que traz dentro
e o faz polícia do ouvido:

o infinito é o precário
marcado num breve tempo
quando o silêncio é cantado
samba curto, porém tenso
em um caso diferente
sem a saudade e seu lamento.
 
7. Vadios de tanto estudo,
Cabral: Tomzé e Paulinho
acabarão em museu,
morada arisca do risco.

Não de tudo, mas por nada
de nada pejorativo
um bom museu, Cabral, vertebra
a dispersão do que é digno

conjuga aparentes ímpares
insuspeitos como signos
revelando-se improváveis
pares de sóis distintos

assim a pedra em sua pedra
soterrada por monturo
não desanda em chorumela
nem destila qualquer chorume
assim a flor, não por ser bela
mas por nascer do estrume:

o que se há de desfazer
ao tempo irremediável
deixará por fim a pedra
inteiriça, por intocável
deixará por fim nascer
a flor não menos improvável

as coisas quietas conservam
sequidão de extintas águas
água que pede pedra
e que a move e a naufraga
e em paisagens submersas
suspeita-se o que não é água

mais que a letra a voz gravada
(flauta que jogaste fora
por fluidez desprezada)
ameaça de transbordo
como sempre qualquer água
onde pousa o canoro
contrabando de passarinhos
de avião do Irará
de ônibus de Botafogo.

Mas passarinhos, Cabral
que bebem com gosto a água
que passarinhos não bebem
e comem pedra, Cabral
por terem dentro de si
sucos com o que a digerem:
de sol a sol a espessura
(e tal que não esmaece)
de duros ofícios, biscates
baralhos, peixes de feira
brancura de alvaiade
sobre o negrume da pele
didática que se adquire
ou pré-didática em pedreira
lâmina da voz metal
berceuse de britadeira
ou corte certo de alfaiate
no anônimo da vida inteira
entre automóveis, carroças
pó de fuligem, caliça
entranhada no encardido
curtume vivo da pele
em contraste com a cal

como tu mesmo preferes.




Roberto Bozzetti. Firma irreconhecível.  Oficina Raquel, 2009. 


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

JOÃO. JOÃO.





 

JOÃO GILBERTO, 1971

            - Eu estava então muito descontente com aqueles vibratos dos cantores – Mariiiiina moreeeeena Mariiiiiiiina você se pintoooooooou – e achava que não era nada disso. Acabei me desligando também do conjunto e passei a trabalhar sozinho.  Uma das músicas que me despertaram, que me mostraram que podia tentar uma coisa diferente foi “Rosa morena”, do Caymmi.  Sentia que aquele prolongamento de som que os cantores davam prejudicava o balanço natural da música.  Encurtando o som das frases, a letra cabia certa dentro dos compassos e ficava flutuando.  Eu podia mexer com toda a estrutura da música, sem precisar alterar nada.  Outra coisa com o que eu não concordava eram as mudanças que os cantores faziam em algumas palavras, fazendo o acento do ritmo cair em cima delas para criar um balanço maior.  Eu acho que as palavras devem ser pronunciadas da forma mais natural possível, como se estivesse conversando.  Qualquer mudança acaba alterando o que o letrista quis dizer com seus versos.  Outra vantagem dessa preocupação é que, às vezes, você pode adiantar um pouco a frase e fazer às vezes com que caibam duas ou mais num compasso fixo.  Com isso, pode-se criar uma rima de ritmo.  Uma frase musical rima com a outra sem que a música seja artificialmente alterada. (...) Geralmente, o cantor se preocupa com a voz emitida da garganta e sobe muito, deixando o violão – ou qualquer outro instrumento de acompanhamento – falando sozinho lá embaixo.  É preciso que a voz encaixe no violão com a precisão de um golpe de caratê, e a letra não perca sua coerência poética.


JOÃO CABRAL DE MELO NETO, 1994:

            - Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa.  Isso eu aprendi com Le Corbusier.  A poesia é uma composição.  Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada – de fora para dentro.  Ninguém imagina que Picasso fez os quadros que fez porque estava inspirado.  O problema dele era pegar a tela, estudar os espaços, os volumes.  Eu só entendo o poético nesse sentido.  Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas que eu vou colocando como se fossem tijolos.  É por isso que eu posso gastar anos fazendo um poema: porque existe planejamento. (...) Na verdade, salvo O rio e Morte e vida Severina, o resto de minha obra permite múltipla leitura, embora nada me tenha surpreendido.  O sujeito faz uma obra e ponto final.  O espectador vê essa obra como ele quiser. (...) A minha ideia racionalista de escrever é uma coisa que eu me imponho.  Eu não escrevo ambiguidades, penso que todos vão ler da mesma maneira, mas não posso impedir que outras pessoas leiam de outra maneira.  Você pensa que cria uma obra o mais racional possível, pensando que ela vai ser recebida daquela maneira.  Mas não é o que acontece.




In: João Gilberto.  Org. Walter Garcia, CosacNaify, 2012.

In: João Cabral de Melo Neto. Cadernos de Literatura Brasileira, n. 1.  Instituto Moreira Sales, 1996.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

AH, UM SONETO... MAIS UM DE MARCELO DINIZ



Diz o manual: gire a manivela
cuja polia liga o molinete,
até que, todo tenso, o galhardete
estique toda mola da arandela;

se a ponta desnivela, a bolidela
de leve na cabeça do alfinete
basta para que cada bastonete
encaixe-se no bico da arruela;

além deste macete, um peteleco
bem dado no rebite da ampulheta
acelera a bobina deste treco

que roda a carrapeta da roleta
e destrambelha todo o cacareco
da rebimboca até a parafuseta. 

com o poeta Marcelo Diniz





 Marcelo Diniz. De amor e sobre.  Oficina Raquel, 2008.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

JOÃO CABRAL DE MELO NETO





PAISAGEM PELO TELEFONE

Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados,
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.



 João Cabral de Melo Neto, Obra completa, Nova Aguilar, 2003.