domingo, 29 de setembro de 2013

ANTÓNIO RAMOS ROSA

O poeta português António Ramos Rosa, morto esta semana aos 80 anos.


Não desisti de habitar a arca azul

 

 Não desisti de habitar a arca azul
 do antiquíssimo sossego do universo.
 A minha ascendência é o sol e uma montanha verde
 e a lisa ondulação do mar unânime.
 Há novecentas mil nebulosas espirais
 mas só o teu corpo é um arbusto que sangra
 e tem lábios eléctricos e perfuma as paredes.
 Aos confins tranqüilos entre ilhas mar e montes
 vou buscar o veludo e o ouro da nostalgia.
 Deponho a minha cabeça frágil sobre as mãos
 de uma mulher de onde a chuva jorra pelos poros.
 Ó nascente clara e mais ardente do que o sangue,
 sorvo o cálice do teu sexo de orquídea incandescente!
 A minha vida é uma lenta pulsação
 sob o grande vinho da sombra, sob o sono do sol.
 Há bois lentos e profundos no meu corpo
 de um outono compacto e negro como um século.
 Com simultâneas estrelas nas têmporas e nas mãos
 a deusa da noite, sonâmbula, desliza.
 Ao rumor da folhagem e da areia
 escrevo o teu odor de sangue, a tua livre arquitectura.
 Prisioneiro de longínquas raízes
 ergo sobre a minha ferida uma torre vertical.
 Vislumbro uma luz incompreensível
 sobre os campos áridos das semanas.
 Elevo o canto profundo do meu corpo
 sob o arco das tuas pernas deslumbrantes.
 Escrevo como se escrevesse com os meus pulmões
 ou como se tocasse os teus joelhos planetários
 ou adormecesse languidamente no teu sexo.

 in: Antologia poética (do livro Três, de 1975).  Sel.de Ana Paula Coutinho Mendes

domingo, 22 de setembro de 2013

DIADORIM




Tivesse de fato sido
e se teria sabido. 

São artes de inventivo
engenho de fabulador. 

Fronteira do fabulado
se atravessa manhã cedo. 

Chega a noite continuo
ficto assim assim nu. 

Quando lavarem meu corpo
esquecerão o encardido. 

Alguns dir-se-ão:
ponte, extravio, ter sido
ponto de amarração
sem volta, pouso, sentido. 

O Letes me embalsama
por quem não sabe do Letes
mas sabe como se lava
como se cuida e se esquece. 

O que não se tatuou
foi corpo de nascimento. 

Diadorim, à margem vamos
parceiros de invencionice. 

Você atravessa o rio
eu o esquecimento.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

RETÓRICA


Nada acrescenta
ser um a mais
só diminui

se ao menos
                        acrescentasse
um mais
um plus 

o mais que
tivesse
perfeito seria
fora    

fora o que
chega a hora
a conta fecha
a gente vai

embora

 

 

sábado, 14 de setembro de 2013

ADÉLIA PRADO


O LUGAR DA NECRÓPOLE

 

Há quem tendo cantado e batido os dentes no copo já morreu.
Há quem tendo falado suas dores secretas
está hoje selado sob lápides,
excrescendo sobre mim o seu fantasma
de pessoa verdadeira, rebelada,
de pessoa poética.
Na juventude me comprazia o fúnebre,
as faces lívidas dos poetas doentes.
Hoje, só preciso da vida para morrer.
Nas metrópoles,
o campo-santo acaba confundido,
rodeado de bares.
E por causa disso iludem-se as pessoas
de ter na mão a indomesticável.
O cemitério quer ladeira e montes
para os quais se olha ao entardecer:
um dia estarei lá,
                        lá longe,
no incontestável lugar.

 

Adélia Prado. Terra de Santa Cruz.  RJ: Nova Fronteira, 1981.


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

MÁRIO PEDERNEIRAS




MEU CIGARRO

 

Nesta árdua vida vã em que disperso
Energias de espírito bizarro,
Ideal e engenho,
Para o preparo estético do verso,
Afinal,
Eu sempre tenho
Um bom amigo incondicional:
- O meu cigarro –

Amizade de infância
Rara,
Calma e discreta,
Sem interesses, sem invejas e ânsia,
Que é daquele bom tempo estranho privilégio...
E se é verdade que eu nasci de tara
E rumo
De Poeta,
Não é menos verdade que eu já fumo
Desde os vadios tempos de colégio.

O meu Cigarro é boêmio,
Boêmio e fantasista.
É bem o irmão preciso e gêmeo
Desta minh’Alma vagabunda e artista.

Para que guarde inteiro
O gosto e o apuro
Em que a emoção, por índole, bifurco,
No seu preparo tóxico misturo
A volúpia aromal do fumo turco
E a quente excitação do fumo brasileiro.

Da honesta quietação deste meu quarto,
Em que me prendo e voluntário fico,
Horas inteiras, enfarado e farto
Do vulgar, do comum, da gente oca,
Como eu me sinto independente e rico
De Cigarro à boca...
 
Se me corre enfadonho
O pesado labor de todo o dia
E procuro esquecer o mal que me entedia,
Fumo um Cigarro e... sonho.

E a Vida que passa,
Como o Cigarro simboliza e alenta!
Se uma ambição de glórias me apoquenta,
Se a fortuna me enleva ou me cativa,
De tudo eu tenho a imagem viva
No azúleo esboço tênue da fumaça.

E se, irritado, muitas vezes, quero,
Num protesto sincero,
Rebater a maldade,
Que quer que sua voz domine e impere
E que a seu mando
Tudo arrasta e atrai;

Se uma atitude resistente assumo
Quando,
A lastimar o tempo assim perdido
Volto desiludido
À minha tímida simplicidade,
Eu pego no Cigarro e fumo...
Como ele me vinga e me distrai.

Quando, ingênua, minh’Alma,
Acompanha do fumo as estranhas volutas,
Esquece o real da vida e as venturas astutas
E sonha a vida calma,
Toda de paz e de afeições diletas,
 
Que o curso natural lhe embarace e lhe entrave,
Eu fico a contemplar, cheio de gozo intenso,
A fumaça que si, leve, azulada e suave,
E, quantas vezes, penso
Que para os bons e os Poetas,
Devia ser assim o caminho da vida.

O meu Cigarro, demais,
Quase sempre me dá impressões bem reais.
Do bizarro
Coleio em que a fumaça,
Em espirais, se agita,
Da graça
Da forma singular que toma,
Da excitação do próprio aroma,
Da maneira sutil por que me excita,
Quando o seu tóxico reclamo,
O meu Cigarro,
Tem qualquer cousa da mulher que eu amo.

Faz mal aos nervos o Cigarro, clamam
E o registram do vício nos acervos...
Eu que sou todo nervos e emoções,
Protesto contra os que assim o infamam
E esta mentira médica desminto,
Pois há ocasiões
Em que eu mesmo sinto
Que o meu Cigarro me faz bem aos nervos.

O meu Cigarro é boêmio,
Boêmio e fantasista...

É bem o irmão preciso e gêmeo
Desta minh’Alma vagabunda e artista.

In: Panorama do movimento simbolista brasileiro, v. 1. Org. Andrade Muricy.  Brasília: INL/MEC, 1973.


sábado, 7 de setembro de 2013

RUBEM BRAGA DUAS VEZES



A Mariana Quadros, linda, amada e sólida fortaleza ética



CONVERSA DE COMPRA DE PASSARINHO

          Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro. “Quarenta”. O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:

          – Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.

           Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim: “- O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:

           – Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro.

           O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:

           – Quanto é o coleiro?

           – Ah, esse não tenho para venda, não…

           Sei que o velho esta mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “- O senhor dá trinta…?” O velho cala-se, minha nota na mão.

          – Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?

          Fico calado algum tempo. Ele insiste: “- O senhor diga…” Viro a cachaça, fico apreciando o coleiro.

          – Se não quer vinte e cinco vá embora, menino.

          Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:

          – Passarinho dá muito trabalho…

          O velho atende outro freguês, lentamente.

          – O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu.

          Por trás dele o pescador de bigodes brancos me fez sinal para não comprar. Finjo espanto: “- Quinhentos cruzeiros?”

          – Ainda a semana passada eu rejeitei seiscentos por ele. Esse coleiro é muito especial.

          Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando sua especialidade. Faço uma pergunta sorna: “- Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde: “- Não tenho tempo para pegar passarinho.”

          Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido esse menino desconhecido, por aquele coleiro especial?

          – No Rio eu compro um papa-capim mais barato…

          – Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.

          – Mas quinhentos cruzeiros?

          – Quanto é que o senhor oferece?

           Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com voz fria, seca: “- Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”

           O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”

           Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.

           – O senhor não leva o coleiro?

           Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu – trotando, assobiando e cantando de pura alegria.

 

In: Quadrante. RJ: Editora do Autor. 1962.
 
 
 

 

 
           Penso sinceramente que depois de um tal texto, qualquer adendo é completamente dispensável.  Mas não me furto a dois dedos de observações um tanto vadias, tendo sempre como guia as palavras muito claras que Davi Arrigucci Jr. escreveu certa vez a respeito da prosa de Braga: “Rubem Braga é um autor de acesso fácil e imediato para quem o lê,  mas extraordinariamente difícil para quem quer falar criticamente do que leu.  Nessa naturalidade complexa lembra ainda muito um poeta que quase sempre ele lembra no trato do cotidiano, da carne concreta e dos estados fugidios do espírito, das coisas comuns e humildes, mas espinhosas de se dizer literariamente: Manuel Bandeira.”  Arrigucci ainda observa que não se trata apenas – embora efetivamente se trate também – de escritores pertencentes a uma mesma família, de parentesco entre tons e temas.  Trata-se de que “o velho Braga não só é um poeta lírico, ainda que seja um dos maiores que surgiram aqui.  Que a sua andadura de prosa não nos engane.  Ele é essencialmente lírico.”
            Nesse sentido, esta  crônica aí em cima é perfeita, o silêncio final do narrador – dizer o quê diante da absoluta falta de compaixão e solidariedade, diante da indiferença pela sorte alheia, tão familiar em nosso cotidiano, tão concreta e perceptível o tempo todo em cada fração de segundo nas atitudes mais cotidianas? O lirismo de Braga, aliado ao profundo e claro senso ético de sua escrita – e aqui ela sempre me remete ao antilírico Graciliano – parece não envelhecer.  É de se arriscar mesmo dizer que não envelhecerá. 
Complemento esta postagem com um dos poucos textos que Rubem Braga publicou  em versos, seu poema mais conhecido, “Ode aos calhordas”.  A calhordice de que trata o velho Rubem não se restringe a uma suposta elite econômica, como talvez fosse cômodo, apressado e equivocado ler: a gosma gelatinosa e fétida que genialmente emana de seu poema nos faz lembrar que invade a tudo, se não tratarmos de construir uma sociedade e um mundo capazes de eticamente recusar o status quo calhorda.  Mas não vou ficar aqui nestes resmungos que, de resto, remetem muito mais a um estado de espírito um tanto pessimista e sombrio em que me vejo envolvido.  Melhor mesmo é ler o grande Rubem.  Que, sempre que se fizer necessário,  voltará a freqüentar este blog.


 
 
ODE AOS CALHORDAS
 Os calhordas são casados com damas gordas
Que às vezes se entregam à benemerência:
As damas dos calhordas chamam-se calhôrdas
E cumprem seu dever com muita eficiência

Os filhos dos calhordas vivem muito bem
E fazem tolices que são perdoadas.
Quanto aos calhordas pessoalmente porém
Não fazem tolices — nunca fazem nada.

Quando um calhorda se dirige a mim
Sinto no seu olho certa complacência.
Ele acha que o pobre e o remediado
Devem procurar viver com decência.

Os calhordas às vezes ficam resfriados
E essa notícia logo vem nos jornais:
"O Sr. Calhorda acha-se acamado
E as lamentações da Pátria são gerais."

Os calhordas não morrem — não morrem jamais
Reservam o bronze para futuros bustos
Que outros calhordas da nova geração
Hão de inaugurar em meio de arbustos.

O calhorda diz: "Eu pessoalmente
Acho que as coisas não vão indo bem
Pois há muita gente má e despeitada
Que não está contente com aquilo que tem."

Os calhordas recebem muitos telegramas
E manifestações de alegres escolares
Que por este meio vão se acalhordando
E amanhã serão calhordas exemplares.

Os calhordas sorriem ao Banco e ao Poder
E são recebidos pelas Embaixadas.
Gostam muito de missas de ação de graças
E às sextas-feiras comem peixadas.


                                                               1953

 
In: BRAGA, Rubem. Livro de versos. Ilustrações de  Jaguar e Scliar. Rio de Janeiro: Record, 1993.
 


 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

FERNANDO PESSOA


O MENINO DA SUA MÃE

 

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
– Duas, de lado a lado –
Jaz morto, e arrefece.


Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

 
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino da sua mãe.”

 
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

 
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo...
 

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

 


 

In: Fernando Pessoa. Obra poética.  RJ: Aguilar, 1965.