sábado, 30 de maio de 2015

LEILA MÍCCOLIS: DOIS POEMAS


PENA DE MORTE

 

Eram bastante bons
aqueles tempos de ódio,
em que planejávamos nossos assassinatos,
pelo simples prazer de nos vingarmos:
eu te via com os dedos na tomada,
tu me vias sufocada pelo gás.
Tempos em que sorrias ao atravessar a rua,
e eu achava graça em ser atropelada;
tempos em que queríamos fazer um filho
para espancarmos juntos,
nos dias de ócio;
em que eu te servia de escarradeira,
em vez de cozinheira e passadeira.
Depois veio o amor,
que é como um lenço em que se assoa,
ou mãe que chicoteia e nos perdoa.
Hoje afago-te as corcovas
e lustro-te as botas novas.


Ilustração de Talarico

 
CAMISA BRANCA
 
Seria talvez pelo que eu tivesse consentido
na noite que passava
ou pelo que eu queria,
sem saber como fazer.
seria talvez pelo que eu supunha
sem coragem de dizer-me,
pelo que eu negava,
com medo de enfrentar.
Seria pela inutilidade do que fazia,
pela imensa maioria
que me olhava hostil
como se olha os galos na rinha,
ou porque na véspera
eu tinha vestido
uma camisa branca
e bebido vinho ao invés da água
ou do café.
Seria talvez pelo desencontro
que pressenti ocorreria,
pela febre que me tomou por filha e amante,
ou seria talvez por simples acaso
que dei por mim
olhando a mosca no meu prato,
fria,
afogando-se na sopa.
 






In: Abertura poética: primeira antologia de novos poetas do Novo Rio de Janeiro. Org. Walmir Ayala e César de Araújo. RJ: C. S. Editora, 1975.

 


terça-feira, 26 de maio de 2015

PAULO MENDES CAMPOS


 
MOSCOU-VARSÓVIA
(26 de maio de 1956)

 
 
Se este avião caísse, crispado entre os ouros, as copas e as espadas eu ficaria; sarrafos nas pálpebras, para que se mantivessem abertas durante o incêndio, colocaria;

 
Se este avião caísse, as madrugadas de meu filho de um terror violeta se elucidariam; na tarde calcinada, a sombra de minha mulher se inflamaria; minha filha não me encontraria deitado sobre o feno, escondido atrás da porta, acima dos cata-ventos com os braços carregados de bonecas; mais do que a minha garra em um livro e um lírio não encontraria; um gesto no espelho, uma espátula de osso, um pensamento; 

 
Se este avião caísse, em uma esquina de Ipanema, eu nunca mais esperaria;

 
Se este avião caísse, só uma pessoa não diria “que pena” (a que caía e se esquecia e se consumia, e só se libertaria quando de todo caísse e se esquecesse e se consumisse);

 
Se este avião caísse, de mim o firmamento em torvelinho se afastaria; os mortos da Lituânia e da Masuria a mim viriam, e no silêncio rodeado de verdura me receberiam; soldado quase desconhecido, mãos desligadas do corpo – exangues e sem armas – ah, a terra de ninguém eu atravessaria;

 
Se este avião caísse, de arquitetar a condição de criatura um arquiteto a mais desistiria; certos de que outros chegarão a construir a humana arquitetura (o que se faz há muitos anos e se fará em um dia);  pousado sobre o meu peito o pássaro cruento do meio-dia; o criptógrafo egípcio afinal se explicaria; em fragmentos candentes, a minha carne emigraria; espantalho em farrapos, só o vento de leve me espantaria;

 
 Se este avião caísse, sob as arcadas do pátio a poça de sal se extinguiria; a minha túnica amarela entre os anjos se sortearia; sob as telhas dos dragões dourados, os seus flocos, indiferente, a paineira sacudiria;  na colina resplendente, quem soubesse ler, leria: “aqui pousou uma criança que quase nada compreendia”; até que outra morte nos separe, o meu nome no tronco se resignaria;

 
Se este avião caísse, este papel em cinzas arderia; a estrela rubra do poema nenhum jornal publicaria; fosse cair daqui a pouco, ainda assim o escreveria; a vida e a morte são as amantes, são a esposa, da poesia;

 
Se este avião caísse, os meus vizinhos compreenderiam; lembrando-se dos meus cabelos no elevador, uma intuição qualquer no ar lhes diria que só não fui um amigo por falta de tempo ou covardia; mas pode alguém perfeitamente amar o seu vizinho se apenas, grave, pela manhã lhe diz “bom dia”; e então, sentimentais e sem razão, de mim, coitados, se apiedariam; e de se sentirem tão sensíveis, em fino prazer espiritual tudo (de mim) enfim se acabaria;

 
Se este avião caísse, a música de meu apartamento ensurdeceria; os volumes nas estantes, de já não ter quem os lesse como eu os lia, pardos e fechados ficariam; outros mais sábios vir e servir-se poderiam; mas o meu jeito de ler e pensar desapareceria; no entanto, se este avião caísse, daquilo que é apenas meu a orgulhar-me não chegaria;

 
Se este avião caísse, já ninguém mais meditaria na ave que passou gemendo contra o vento na bruma fria; o segredo que não cheguei a tocar a ninguém mais preocuparia; só se a meu filho legasse a vocação da tristeza e o heroísmo da alegria;

 
Se este avião caísse, decerto me compadeceria dos que caíssem comigo sem a coragem da poesia; embora talvez fosse eu quem mais saudades levaria; poentes roxos de Minas, praias aéreas da Bahia; chapéu de palha de Leda, olhos castanhos de Lilia; pubescência de Teresa, experiência de Maria; prosadores da Irlanda, poetas da Andaluzia; Etna fumegando em Taormina, em Siena a Piazza della Signoria; manhãs de iodo na praia, noites etílicas de boemia;  bailarinas de Leningrado, gaivotas da Normandia; sorriso da menina, do menino a euforia; Wagner compondo o Parsifal, Nietzsche uivando em Sirls Maria; a mulher que foi comigo, a que não foi mas iria; tantas que, mais houvera, para que de vez caísse, pediria;

 
Se este avião caísse com ele cairia um homem que pelo menos entenderia a fábula da folha que se desprendeu e desaparecia; e assim seu coração na terra, no mar e no céu, como de triste e maduro caísse, não se surpreenderia, nem reclamaria; pois esse aflito coração, de ter amado e sofrido, na amplitude da morte se conformaria;

 
Se este avião caísse, em um domingo azul do mar um peixe até a pedra nadaria;  não encontrando o meu anzol, ao alto-mar regressaria; desse desencontro tecido de tão lindos equívocos, a sua carne se salvaria; e o domingo azul do mar ainda mais azul reluziria.
 

 
In: Fernando Ferreira de Loanda (Org.). Antologia da nova poesia brasileira. 2 ed. Orfeu, 1970.
 

sábado, 23 de maio de 2015

ADAUTO DE SOUZA SANTOS (RAS ADAUTO)


 
 

 

telefonei assim que soube que ele havia sido solto.  romilda sua mulher pediu-me que fosse até lá conversar com ele porque estava muito deprimido e nervoso e eu como seu velho amigo talvez pudesse distraí-lo um pouco.
encontrei-o estirado no sofá, o rosto magro, os olhos fundos cadavéricos.  Abraçou-me beijou-me desesperadamente como se eu fosse sua única saída mostrou as marcas de porrada que levou no dops no corpo todo, falei q ele precisava descansar um pouco fazer uma viagem com a mulher transar pessoas. mas ele me disse q não. q voltaria a ativa e q mataria todos os “filhos da puta do poder”.  então tentei convence-lo  de q o desespero é uma forma de suicídio  e q a melhor arma neste momento é sentar & esperar.  disse-lhe também q estávamos em vantagem porq não acreditávamos em eternidade e q qualquer governo totalitário mais dia menos dia se não fosse destruído pelas forças da história se destruiria a si mesmo.
então li meus poemas para ele. contei das novas. falei dos amigos. dos meus planos. da minha mulher e da minha filha. contei também das minhas angústias. Abrimos uma garrafa de conhaque e quando menos esperávamos estávamos completamente bêbados. ele caiu no sofá como uma criança desamparada. levantei-me. Despedi-me de romilda e saí prometendo voltar no dia seguinte.
na rua fui tentando me convencer de tudo o q havia dito ao meu amigo.  tentando acreditar q era aquilo mesmo q eu acreditava.
tive de repente uma imensa pena de mim...
 
in: Folha de rosto (vários).  Rio, 1976.
 

 

 

 

 

quarta-feira, 20 de maio de 2015

ARMANDO FREITAS FILHO


Dois poemas de Longa vida (1982)

 

 

No pau-de-arara
                   é proibido gozar
mesmo quando enrabado

 por muitos
                   e o espasmo
sacuda o curto-circuito
do corpo
fudido em verde-amarelo
                   sob o som
das botas, das patas
dos saltos altos
da Pátria em marcha
das famílias caindo de quatro
                   ao som
de Dom e Ravel
de Deus
                   salve a América!
Eu te amo meu Brasil
eu
                   só ouço o vômito
e as aves
que aqui gorjeiam
                            etc.

 

 
 
 
 

Amor com amor se paga
nas ruas, no Rio
de noite
                   e se encosta
nos muros, por debaixo
das marquises
                   das árvores
dos postes do Aterro
com seu luar pontual
em suspenso
                   como uma nave de jardim
e o asfalto
pousando à beira-mar.

Amor com amor se pega
se enrosca
                   e cresce:
filodendros, trepadeiras
jibóias, abraços vegetais
e beijos
                   pelos bancos da paisagem
dos carros
na véspera do verão
o amor desata os cabelos
levanta as saias e dança
de patins e passa de bicicleta
sobre os bueiros da Força e Luz.

 
Amor com amor se pica
foge de casa
morre entre os morros e o mar
se mata
nas primeiras páginas
faz manchetes
− balas, sangue, punhalada
estricnina − e se incendeia
em camas transitórias
ateia o fogo da paixão às vestes
para melhor despir os nus
de todos nós.
 

(Armando Freitas Filho. Máquina de escrever: poesia reunida e revista. RJ: Nova Fronteira, 2003.)

                  

 

 

 

 


quinta-feira, 14 de maio de 2015

DOIS POEMAS DE PAULA GLENADEL


SOBRE A LAMA, A CIDADE

 

O lirismo de algo
que se queira chamar
de natureza (musgo,
morros e matas),

a epopéia da favela,
cabrita ou palafita,
ora sobre mangue,
ora em pedra lisa,

a fábula do asfalto,
vitrine e ciclovia,
o drama do assalto
encenado todo dia,

se convocados aqui
aparecem/desaparecem
deixando um rastro
de lama.




FILHA

                   para Luísa

 
A menina que, em sustos,
vejo crescer depressa,
que nutro com meus nervos
e que descubro falar, e ser,

me veio de um imemorial
           naufrágio
em que perecemos eu e ele:
pequena pérola do pior.

Como o traço oblíquo de luz
riscado sobre uma tela
de nuvens branco-cinza,
figura, tornado agora visível,
 
o sutil equilíbrio instável
entre dois planos. 


Paula Glenadel. A vida espiralada. RJ: Caetés, 1999.


terça-feira, 5 de maio de 2015

PAUL VERLAINE

Ilustração de Talarico


A VOZ DOS BOTEQUINS

 

A voz dos botequins, a lama das sarjetas,
Os plátanos largando no ar as folhas pretas,
O ônibus, furacão de ferragens e lodo,
Que entre as rodas se empina e desengonça todo,
Lentamente, o olhar verde e vermelho rodando,
Operários que vão para o grêmio fumando
Cachimbos sob o olhar de agentes da polícia,
Paredes e beirais transpirando imundícia,
A enxurrada entupindo o esgoto, o asfalto liso,
Eis meu caminho – mas no fim há um paraíso.

 

                                      Tradução de Guilherme de Almeida

 

LE BRUIT DES CABARETS, LA FANGE DES TROTTOIRS...
 

Le bruit des cabarets, la fange des trottoirs,
Les platanes déchus s'effeuillant dans l'air noir,
L'omnibus, ouragan de ferraille et de boues,
Qui grince, mal assis entre ses quatre roues,
Et roule ses yeux verts et rouges lentement,
Les ouvriers allant au club, tout en fumant
Leur brûle-gueule au nez des agents de police,
Toits qui dégouttent, murs suintants, pavé qui glisse,
Bitume défoncé, ruisseaux comblant l'égout,
Voilà ma route - avec le paradis au bout.

 

 

                            Verlaine.  A voz dos botequins e outros poemas. Tradução de Guilherme de Almeida. São Paulo : Hedra, 2009.



Verlaine

sexta-feira, 1 de maio de 2015

CARLITO AZEVEDO


HOMEM DENTRO DO PESADELO

 

Patas de lobo arranham
seu pescoço enquanto
intenta em vão
com socos e chutes amortecidos
pelo ar pesado
romper a membrana do sono
 

Veio rompê-la − de fora −
o dia
com suas patas de lobo

                  

Carlito Azevedo. Sublunar (1991- 2001). 2 ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.


Foto Rafael Moraes