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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

TORQUATO NETO TRÊS VEZES



1.    De “literato cantábile”

a)    A virtude é a mãe do vício
conforme se sabe:
acabe logo comigo
ou se acabe.

b)    A virtude e o próprio vício
- conforme se sabe –
estão no fim, no início
da chave.

c)    Chuvas da virtude, o vício,
conforme se sabe:
é nela propriamente que eu me ligo,
nem disco, nem filme:
nada, amizade.  Chuvas de virtude:
chaves.

d)    (amar-te/a morte/morrer:
há urubus no telhado e a carne seca
é servida: um escorpião encravado
na sua própria ferida, não escapa: só escapo
pela porta da saída).

e)    A virtude, a mãe do vício
como eu tenho vinte dedos,
ainda, e ainda é cedo:
você olha nos meus olhos
mas não vê nada, se lembra?

f)     A virtude
mais o vício: início da
MINHA
transa, início, fácil, termino:
“como dois mais dois são cinco”
como Deus é precipício,
durma,
e nem com Deus no hospício
(durma) nem o hospicio
É refúgio.  Fuja.


2.    COGITO

Eu sou como eu sou
pronome
pessoal instranferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

Eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

Eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

Eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.



3.    PESSOAL INTRANSFERÍVEL

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos.  É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela.  Nada no bolso e nas mãos.  Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.
Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena, etc.  difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa.  Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo, menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes.  E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.
E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar: citação: leve um homem e um boi ao matadouro.  O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi.  Adeusão.
                        (In: Os últimos dias de paupéria, 1973)
           

Torquato Neto (1944-1972) era piauiense, ligado ao grupo tropicalista, trabalhava como jornalista e agitador cultural, sendo ainda um letrista importante, com parcerias de vulto com Caetano Veloso (“Mamãe, coragem: “Ai de mim Copacabana”...), Gilberto Gil (“Geleia Geral”, “Domingou”...), Edu Lobo (“Pra dizer adeus”...), Jards Macalé (“Let’s play that”), entre outros. 
Torquato suicidou-se no dia de seu aniversário de 28 anos. Tinha diversas internações em hospitais psiquiátricos, e seus escritos dispersos (poemas, letras, cartas, anotações, diários etc) foram reunidos pela primeira vez por Waly Salomão na obra póstuma Os últimos dias de paupéria, cuja primeira edição foi lançada no ano seguinte ao de sua morte (uma 2ª. edição, revista e ampliada, saiu em 1982).   Em 2004, Paulo Roberto Pires lançou Torquatália, em dois volumes (Do lado de dentro e Geleia geral) reunindo muito material inédito que se acrescentou ao que já havia antes saído. 
Torquato é um poeta-letrista dos mais ricos de sua geração: como poeta, é nitidamente marcado por Drummond, a que eu acrescentaria ainda Oswald e a presença do experimentalismo concretista.  Mas talvez o mais interessante do que deixou escrito é a constante preocupação de enlaçar ética e estética, fazer da linguagem um território a ser explorado de forma inseparável dos compromissos éticos com os quais severamente sua geração – e sua “turma “ – teve que se haver. Essa postura, “vitalista”, por assim dizer, faz com que possa pensar em Torquato como um nome chave (talvez junto com Waly) de transição entre a geração experimentalista das neovanguardas dos anos 60 e a geração dos poetas marginais da década seguinte. 
No disco Cinema transcendental, de 1979, Caetano inclui “Cajuína”, uma canção homenagem-recordação de/a Torquato.  Sérgio Brito, dos Titãs, põe melodia no texto de “Go back”, até então inédita, e a canção vira um dos grandes sucessos da banda em 1988.



quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

ERA 1973, ERA GILBERTO GIL

(1a. parte)


Fiquei sabendo graças à postagem do meu amigo Marcelo Méndez no seu ótimohttp://www.pastilhascoloridas.com/2011/12/albuns-classicos-gilberto-gil-ao-vivo.html

de alguns fatos que envolveram esse quase mítico show de Gilberto Gil para os estudantes da Politécnica da USP em maio de 1973.  Então, antes de mais nada, cabe dizer que para  o mínimo de informação que os mais novos precisem sobre as circunstâncias imediatas do show e o contexto da época, recomendo a leitura do ótimo texto do Marcelo ali mesmo no link.  O repertório completo do show vai aqui:

1.       ORIENTE  (Gil)
2.       CHICLETE COM BANANA (Gordurinha – Almira Castilho)
3.       MINHA NEGA NA JANELA (Germano Mathias)
4.       SENHOR DELEGADO (Germano Mathias)
5.       EU QUERO UM SAMBA(Haroldo Barbosa – Janet de Almeida)
6.       MEIO DE CAMPO (Gil)
7.       CÁLICE (Gil – Chico Buarque)
8.       O SONHO ACABOU (Gil)
9.       LADEIRA DA PREGUIÇA  (Gil)
10.   EXPRESSO 2222 (Gil)
11.   PROCISSÃO (Gil)
12.   DOMINGO NO PARQUE  (Gil)
13.   UMEBOSHI(Gil)
14.   OBJETO SIM OBJETO NÃO  (Gil)
15.   ELE E EU  (Gil)
16.   DUPLO SENTIDO (Gil)
17.   CIDADE DO SALVADOR  (Gil)
18.   IANSÃ (Gil – Caetano Veloso)
19.   SÓ QUERO UM XODÓ (Dominguinhos – Anastácia)
20.   EDITH COOPER (Gil)
21.   BACK IN BAHIA  (Gil)
22.   FILHOS DE GANDHI  (Gil)
23.   PRECISO APRENDER A SÓ SER  (Gil)
24.   CÁLICE  (Gil – Chico)

Nota Pessoal 1: Posso dizer que eu venho daquelas eras, já que em 1973 eu tinha 17 anos, estava no ensino médio, e procurava acompanhar com interesse o que ia pelo Brasil e pelo mundo. Talvez eu fosse até um pouco além da média, numa época em que a circulação de informações, com a censura oficial nas redações dos jornais, era dificultada sob qualquer pretexto pela ditadura Médici.  No plano mais corriqueiro  do cotidiano corriam soltas as ameaças ostensivas ou veladas (por exemplo, a constante presença ou ameaça de presença  de agentes disfarçados de alunos nas faculdades). Seja como for, eu era o que se dizia um “jovem bem informado”.  Assim, por exemplo, mesmo morando no Rio, fiquei sabendo que tinha acontecido esse show de Gil em São Paulo (lembrem-se que falo de um tempo pré-pré-pré-internet e parem de se espantar com o conceito de “bem informado”!) e que tinha dado o que falar.  Mas o grosso da coisa, o tutano, a substância e a sustança do que rolou ali eu ignorava quase que completamente.  Entre as coisas que eu ignorava, e ignorava até ler o texto do Marcelo outro dia, está o fato de que o show foi acertado entre Gil e os estudantes como forma de protesto contra a morte sob tortura, pela repressão do governo militar, de  Alexandre Vannuchi Leme, que estudava Geologia lá mesmo na USP.  Na época ouviram-se rumores sobre essa morte, uma daquelas que se conseguia a custo muito alto individuar em termos de um nome (pelo menos isso!) a ser pranteado, e  uma das razões por que se conseguiu dar alguma visibilidade a esse assassinato foi a missa oficiada pelo corajoso arcebispo de São Paulo,  Dom Evaristo Arns,  na Catedral da Sé para 5.000 pessoas. Teria sido esta  a primeira manifestação pública de protesto contra a ditadura dos militares a ter alguma repercussão naqueles aterrorizantes tempos em que se vivia sob o tacão tacanho do  AI-5.   Outra coisa que eu ignorava  é que o episódio serviu como ponto de partida para que o jornalista Caio Túlio Costa escrevesse Cale-se (Ed. A Girafa, 2003), ao que parece uma espécie de depoimento de quem viveu de perto os acontecimentos.  Não conheço até o presente momento o livro de Caio, que  estudava na USP na época.
Adendo: outra apresentação de Gil para estudantes que se tornou célebre foi no Colégio Equipe (também em SP) em 1977, em contexto até um tanto parecido – só que na volta das passeatas, quando começa a engrossar pra valer (lembro que se chegou à  Lei de Anistia em 1979) a insatisfação da sociedade civil com a ditadura.  Digo célebre porque a repercussão foi bastante polêmica na imprensa, num momento em que as acusações de “alienação” contra Gil (e Caetano, diga-se) atingiram um alto grau de estridência.  Será que não haveria por aí uma fita desse show no Equipe?
Fim da Nota Pessoal 1.


Voltando ao “noticiário”: ao baixar os CDs e ouvir o  show (dada a precariedade dessas produções na época, é surpreendente a boa qualidade do som) creio ser perceptível haver uma evidente, ora mais explícita ora mais velada, tensão na relação de Gil com a platéia. Na verdade, naquele momento o próprio Gilberto Gil parecia lidar com um feixe de questões, se não dilacerantes, que pelo menos teriam o poder de ser uma espécie de motor de suas inquietações, de onde ele parecia retirar estímulos mesmo para criar. Musicalmente, Gil está, em 1973, ainda muito longe de conseguir “dissolver” sua “aura clara” no transe coletivo das grandes celebrações tribais-pop que nortearão sua pegada e sua carreira artística na década de 80. Vendo de hoje, conhecendo bem a trajetória cumprida por ele ao longo de todos esses anos,  os indícios que ele trilharia decididamente esse caminho talvez possam parecer claros esporadicamente: por exemplo, quando ele considera a possibilidade dessas grandes celebrações,  ao final, na apresentação de “Filhos de Ghandi” (volto ao assunto mais pra frente). Mas naquele momento tratava-se sobretudo de percorrer os caminhos do experimentalismo:  Gil não era mais o representante da intervenção tropicalista de cinco anos antes; há muito deixara também de ser, e isso desde o tropicalismo, o cantor de protesto (”Roda”, “Viramundo”, “Procissão”); nem mesmo prosseguia com suas canções crispadas do imediato pós-tropicalismo e primeiros anos de exílio (“Cérebro eletrônico”, “Mini-mistério”, “Língua do P”).  Naquele momento ele está exercendo com ampla liberdade a experimentação de formas, entendida enquanto prática de exercícios criativos com vistas a expandir as possibilidades da composição e da performance em cena, no sentido de seu desenvolvimento no canto e na execução instrumental. E mais:  Gil mostra-se interessado, chegado havia um ano e pouco de seu exílio londrino, em estabelecer ali na USP uma espécie de clareira para reflexão com os estudantes, ainda que o preço a pagar seja por vezes certo desconforto, um quê de confronto, sem prejuízo no entanto do gesto amoroso com a plateia. 

Foto colhida em lucyinthesky.wordpress.

         Confira-se: na primeira fala dele, ao se perguntar (fazendo o triângulo com a plateia, claro) sobre as razões de sua presença ali, Gil parte da consideração das expectativas daquela plateia. Essas expectativas eram imensas, posso assegurar – eu não estava no show, mas fazia parte das platéias da época – e em geral se vinculavam a uma ansiedade, a uma carência no sentido de se esperar que o compositor (não apenas Gil) dissesse as verdades que o estado repressivo geral impedia que fossem ditas, ainda mais num show pensado com um sentido de protesto contra a morte de Vannuchi Leme.  Os artistas acabavam por canalizar esses anseios generalizados, e na medida em que os atendessem, o que frequentemente acontecia, pois, dado o sufoco geral,  era um anseio do artista também, acabavam por promover talvez mais descarga catártica do que reflexão propriamente dita. Porque os anseios eram muito mais pelo passado que esses artistas traziam  do que por suas aventuras presentes. Gil parece estar bem consciente disso ao dizer em sua primeira fala: “Não era um negócio marcado, estereotipado na minha cabeça o tipo de relação que podia haver entre o fato de estar aqui cantando,  e como pensar nisso e planejar isso (...) dentro daquilo que é mais atual, exercitável, dentro do meu repertório...”
Assim, o experimentalismo de Gil nesse período (e o registro do show é precioso quanto a isso também) deve ser entendido – é assim que eu o entendo –   como o caminho  em direção ao que sempre fora o sonho nada secreto dos tropicalistas: encontrar a fórmula (ainda que provocativa e naquele momento às voltas com a herança das vanguardas e neovanguardas) para se fazer uma canção de qualidade estética e que ao mesmo tempo tivesse apelo pop, sem deixar de dialogar com a tradição da música brasileira.  Afinal, não custa lembrar que  até então Gil só conhecera um grande sucesso de massa:  o samba “Aquele abraço”, lançado ao deixar o Brasil rumo ao exílio londrino – e muito desse sucesso se devera  ao fato de que “Aquele abraço” parecia um retorno arrependido à “verdadeira tradição do samba” (o segundo sucesso de massa de sua carreira está apresentado no show, é o xote “Só quero um xodó”, de Dominguinhos, canção que por sinal ocupava o lado B do disco onde fora lançada – mas no momento do show ela ainda não tinha “estourado”).  Na trajetória do autor de “Oriente”, essas tensões todas – especialmente na década de 70 – compõem  muito da substância mesmo do que ele produz.  E não apenas do que produz como compositor, cancionista: do que ele apresenta em shows, do que decide gravar e do que expõe no trato cotidiano das apresentações, entrevistas e depoimentos em geral. As tensões, os impasses  e a resolução dessas tensões muitas  vezes vieram estampadas em seus discos, shows e declarações públicas, como se houvesse um freqüente exercício de exposição e de risco, que não poucas vezes levantou a suspeita de um calculismo oportunista na qual se deleitam seus detratores.  Em nenhum outro de seus pares geracionais isso é colocado de forma tão decisiva, nem mesmo em Caetano.  Do meu ponto de vista, isso define a visada ao mesmo tempo generosa e ambiciosa do artista Gilberto Gil.  Assim, se as questões daquele momento pareciam cruciais, mais se ressalta a sensação assimétrica de uma tensão partindo da platéia em direção à postura distensa, muito à vontade, de Gil, tão à vontade que o contraste salta à vista: naquele momento, o distanciamento assumido por aquele baiano orientalizado pop macrobiótico que posso imaginar no palco também apinhado por receber os excedentes da platéia abarrotada, aquela figura serena (isso é audível) ali no centro daquele feixe de tensões parece assumir a imagem  sobretudo da sabedoria.  Quase oracular.  Não apenas quanto à sua carreira, mas a todo o desenvolvimento posterior de nossa canção popular.

Falei em “Oriente”, e foi justo com ela que o show foi aberto – e   para mim este é o melhor registro dessa extraordinária canção, superior mesmo à do disco Expresso 2222,  e por isso resolvi postá-lo aqui: podemos ouvir que depois de apresentá-la na íntegra com a letra, Gil começa uma longa improvisação em voz e violão, como era comum  que fizesse na época  e  é perceptível em vários outros momentos do show, incorporando,  num arremedo de gemedeira de cantador nordestino, outros versos (“esse canto é o mesmo lamento mesmo sofrimento nas terras malditas do nordeste e da Arábia Saudita...”) que se colam a um canto que explora os limites do tonal,  lembrando ao mesmo tempo o  que parece ser a vocalização de um muezim.  De repente ouvimos: “Ih, para com isso, rapaz! Vem você com esse negócio de nham-nham-nham, fica tirando essa chinfra ai de oriente, nós tamos no Brasil rapá...” e a voz de Gil ganha uma inflexão que se poderia dizer policialesca, a acusar o cantor de não cantar coisas brasileiras,  de não cantar “aquela da novela”, de querer, sendo baiano, ficar tirando onda de oriental (“... então vai pra Índia, entendeu? Isso aqui é lugar de produtividaaade!”).  A performance vocal, extraordinariamente inventiva, torna-se mesmo intimidatória, e a canção, uma espécie de baião permeado de cromatismos e de sonoridades mouras, é cantada mais uma vez na íntegra e chega ao seu final depois de quase 9 minutos, pontuada por um violão ágil que mantém a base de baião e explora os limites do dedilhado numa extensão raras vezes vista até então na música brasileira.  Ao final de “Oriente”, conversando com a platéia, Gil assim se refere ao que se passou: “É sempre importante a gente falar com o alter-ego, né?” Poderia perfeitamente ser uma conversa com o super-ego.  A voz outra que de dentro interrompe Gil está levantando as tensões remanescentes da aventura tropicalista (“por que é que não canta coisa nossa, um sambinha?”), aventura para sempre incorporada ao seu trabalho, bem como as tensões diante do viés contracultural orientalista com que Gil travou contato em Londres para daí não mais se afastar, e, o que parece mais fundo, não à toa ele escolhe para abrir sua apresentação para uma platéia de estudantes uma canção cuja letra é um chamado para o livre-arbítrio, com todas as suas responsabilidades, um chamado para o abrir-se para o mundo, ir à nascente das coisas, exercer o poder de decisão entre o “cair fora” das expectativas criadas na estufa familiar (“ir pro Japão/num cargueiro do Lloyd  lavando o porão”) ou romper com elas, ou ainda, fazer uma possível conjunção de todas essas opções: “determine, rapaz, onde vai ser seu curso de pós-graduação”. Uma pós-graduação na vida, uma pós-graduação feita por ele próprio após a graduação no protesto e na tropicália, ou seja, no básico das discussões em tela no Brasil naquele momento.  Agora, o salto será maior, mas levaremos ainda alguns anos para saber. Em certo sentido, melhor, em muitos sentidos, Gilberto Gil é um desses artistas que antecipam nesse momento o que o Brasil virá a ser.   Leia-se a estupenda letra:

Se oriente, rapaz
pela constelação do Cruzeiro do Sul
se oriente, rapaz
pela constatação de que a aranha
vive do que tece
vê se não se esquece
pela simples razão de que tudo merece
consideração
considere, rapaz
a possibilidade de ir pro Japão
num cargueiro do LLoyd lavando o porão
pela curiosidade de ver
onde o sol se esconde
vê se compreende
pela simples razão de que tudo depende
de determinação
determine, rapaz
onde vai ser seu curso de pós-graduação
se oriente, rapaz
pela rotação da Terra em torno do Sol
sorridente, rapaz
pela continuidade do sonho de Adão.

Gil no exílio londrino, 1971
Vinte anos depois, no belo Gilberto Gil: todas as letras, organizado por Carlos Rennó para a Companhia das Letras (1992), o compositor assim se refere a essa canção:

            “O fato de eu ter feito o projeto da família, a faculdade, de ter recusado uma pós-graduação na Universidade Michigan, nos Estados Unidos, para assumir o trabalho na Gessy lever e ficar em São Paulo, perto de Caetano, de Bethânia, de Gal, do projeto pessoal, a música; e de o trabalho na Gessy lever ter sido uma espécie de pós-graduação também, assim c Omo a situação do exílio tinha para mim um significado de pós-graduação.  Por tudo isso, ‘Oriente’ é a música minha que eu considero mais pessoal e auto-solidária, mais solitária.  Não sou eu em relação a uma mulher ou a uma cidade: sou eu em relação a mim mesmo, a um momento de vida.”

Nota Pessoal 2:
            Em 1971, virando já para 72,  aconteceu o celebérrimo show Gal – Fa-tal – no Teatro Thereza Raquel no Shopping da Siqueira Campos, em Copacabana.  Ficou uns 15 ou 20 dias em cartaz, depois teve uma interrupção, de um mês, talvez, e voltou (acho que já em 72) para uma segunda temporada curta.  Sim, meninos, eu vi.  Nas duas vezes.  Acontece que quando retornou, Gal apresentou se não me engano três canções enviadas de Londres por aqueles dias por Gil e Caetano, que se encontravam por lá, exilados.  Uma dessas canções era “Oriente”, que Gal interpretou acompanhada ao violão por Pepeu Gomes (que substituíra Lanny Gordin, o guitarrista da primeira temnporada) . Lembro de ter saído do teatro completamente atordoado pela beleza da canção. É uma das minhas canções favoritas de Gil. Existe CD com os dois LPs que originalmente foram lançados com a gravação ao vivo do show.  É uma pena mas não há o registro de “Oriente” entre as canções  de Gal - Fa-tal - (o jeito é vocês acreditarem em mim).
Fim da Nota Pessoal 2.

            Tão estimulantes quanto as canções e a performance são os inúmeros momentos em que Gil conversa com a plateia, o que acontece entre uma canção e outra.  São extremamente reveladores dessa tensão que venho tentando captar aqui. A audição do show gravado, por mais atenta, sempre perde o que não se consegue ouvir, assim como perde às vezes a fala do que a plateia diz.  Mas a gente  percebe diversas vezes, pelo descabido de certas risadas, o seguinte: a plateia suspeita constantemente de que Gil está sendo irônico, as pessoas querem captar o que estaria, como se dizia na época, “nas entrelinhas”, e ninguém quer passar recibo de desinformado ou “alienado”. Isso virou uma verdadeira mania, que acabou ficando em grande medida colado a muitos artistas e canções da época (quem nunca ouviu dizer que “Abacateiro, acataremos teu ato...” de “Refazenda” seria uma mensagem cifrada anti-forças armadas? Eu inclusive já até li essa bobagem. E outras do mesmo nível).  Então surgem situações inusitadas – a mim causam certo desconforto, aliás, sempre me causaram – como quando Gil após cantar “Minha nega na janela”, do repertório do sambista paulistano Germano Mathias, um samba que pinta uma desavença doméstica em tom racista e sexista (será impensável ouvi-la cantada hoje?) ao dizer tratar-se de “a cristalização mais clara e radiante do pensamento popular”, ouvem-se risos.  E há outras ocasiões ainda mais claras do que esta, reveladoras de uma curiosa falta de sintonia Gil-plateia.  Mas não se trata de nada que venha a comprometer o resultado geral do que se ouve, nada que prejudique a busca de interação própria de uma apresentação desse tipo (ao contrário do que muitas vezes acontecia nas apresentações tropicalistas e parece ter acontecido no show já mencionado no colégio Equipe, em 77).  Sobre isso voltarei mais tarde também.
            Seria surpreendente que Gil atendesse à voz intimidatória do “alter-ego” (ou do superego) no meio de “Oriente” e passasse a cantar sambas?  Porque ele canta numa enfiada sete sambas (depois de anunciar que cantaria cinco) seus e alheios, “porque samba é um negócio muito da gente...” Na verdade isso só surpreenderia os que nada tivessem entendido e nada estariam entendendo do que Gil propunha e propusera até ali em sua carreira.  Nunca esteve no horizonte dos tropicalistas a “negação” ou o “assassinato” do samba, como se pensou e às vezes ainda se pensa.  Nem poderia, não faria sentido, se tomarmos o samba como uma forma.  A discussão tropicalista e pós-tropicalista propôs, isso sim, repensar o universo ideológico ligado à compreensão do samba, o que é coisa muito diferente de querer seu desaparecimento. E o que se ouve nesse show, nessa sequência de sambas, é um “performer” muito mais desenvolto como instrumentista do que quando fora para Londres, alguém que afinal de contas houve por bem honrar o samba, evoluindo como instrumentista.  Sobre esse desenvolvimento, assim Gil havia se pronunciado numa entrevista de 1972:
            “Eu me lembro do dia em que resolvi mexer os dedos  pra desenvolver, lá em Londres,  a guitarra.  No primeiro dia do ano de 1970 (...) eu comecei a fazer escala. Fiquei até as três fazendo escala, e naquele dia eu decidi que ia soltar meus dedos.  Sabe? Porque já tava cheio daquela... não agüentava mais aquela coisa presa, de ficar fazendo acorde.  Resolvi que ia tocar, solar alguma coisa na guitarra.  E assumir um pouco aquela coisa de solista, de músico pop.”
            Veja-se que é bem o processo tropicalista, informado aqui pela postura experimental.  Pôr em tela as questões relativas à música brasileira (entre elas a técnica de execução) chegando por um aprendizado e uma solução não convencionados dentro da tradição.  Acontece que isso já estava no Gil de início de carreira, pré-tropicalista, num depoimento de Torquato Neto na contracapa do primeiro LP: “Há muitas maneiras de se fazer música brasileira: Gilberto Gil prefere todas.”  A frase acabou ficando célebre por conta da intuição quase profética que a ilumina. Assim, se o violão de Gil já era o mais suingado de sua geração quando eles despontam (à parte o de Jorge Ben, que é outro caminho), agora ele se ultrapassara. A “libertação dos dedos” para tocar guitarra enriqueceu de vez a técnica violonística do Gil.  E isso é muito visível na apresentação dos sambas.
            Recomendo quando da audição do show, aos que forem baixar o CD, atenção especial sob esse aspecto a “O sonho acabou”, mas gostaria de fechar a primeira parte deste texto, com um samba composto por aqueles dias,  “Ladeira da Preguiça”.  A extrema agilidade na divisão, a melodia surpreendente, além das anotações – muito peculiares à poética de Gil – ao seu universo e ao seu espaço familiar, tudo faz com que este seja um dos meus preferidos em sua vasta obra.  Dia desses retomo este texto, mas por ora deixo a letra e o áudio:




 LADEIRA DA PREGUIÇA

Essa ladeira
que ladeira é essa?
Essa é a ladeira da Preguiça

Preguiça que eu tive sempre
de escrever para a família
e de mandar contar pra casa
que esse mundo é uma maravilha
e pra saber se a menina já conta as estrelas
e sabe a segunda cartilha
e pra saber se o menino já canta cantigas
e já não bota mais a mão na barguilha
e pra falar do mundo falo uma besteira
Formentera é uma ilha
onde se chega de barco, mãe
que nem lá
na ilha do Medo
que nem lá
na ilha do Frade
que nem lá
na ilha de Maré
Salina das Margaridas

Essa ladeira
que ladeira é essa?
Essa é a ladeira da Preguiça

Ela é de hoje
Ela é desde quando
se amarrava cachorro com linguiça

           




domingo, 1 de maio de 2011

LUPICÍNIO RODRIGUES NO FAROL DE FARO






            QUEM HÁ DE DIZER
Quem há de dizer
Que quem vocês estão vendo
Naquela mesa bebendo
É o meu querido amor
Reparem bem que
Toda vez que ela fala
Ilumina mais a sala
Do que a luz do refletor
O cabaré se inflama
Quando ela dança
E com a mesma esperança
Todos lhe põem o olhar
E eu, o dono,
Aqui no meu abandono
Espero louco de sono
O cabaré terminar

“Rapaz, leva esta mulher contigo”
Disse uma vez um amigo
Quando nos viu conversar
“Vocês se amam
E o amor deve ser sagrado
O resto deixa de lado
Vai construir o teu lar”
Palavra, quase aceitei o conselho
O mundo, este grande espelho,
Que me fez pensar assim:
Ela nasceu com o destino da lua
Pra todos que andam na rua
Não vai viver só pra mim

In: A música brasileira por seus autores e intérpretes. v.1 - SESC-SP


            O mau-gosto é uma questão complicada em arte.  Pode ser detectado na imperícia, na inépcia, na falta de formação consistente ao lidar com técnicas e  materiais, na “naïveté”, nas formas cediçamente degradadas de se buscar atingir o “gosto comum” médio, na atração pelo “trash”, enfim, pode se originar de uma porção de fatores, mas não é esta a sua principal complicação, e sim porque esbarra de forma inexorável no lado do receptor, que é quem decide, discerne, descortina, rebaixa, desqualifica o que assim é taxado. 
            Relendo o que escrevi aí em cima, não gosto. Ficou rombudo. Mas não vou apagar não. Vou em frente e vou no meio de todos os riscos.  Digo que enorme parte do que é veiculado pela mídia atualmente no Brasil é de um mau-gosto monumentalizado, um tsunami de breguice, no qual o esforço de pescar algo que se mantenha vivo e vigoroso demanda paciência na hora de separar o joio do trigo e optar... pelo joio – que é como Caetano uma vez respondeu à acusação de que gravava muitas banalidades.
            Releio, reescrevo, releio.  Está só um pouquinho menos rombudo.  Dane-se: quero falar aqui de Lupicínio, e quero que o meu leitor seja mais uma vez ouvinte do que postei aqui na vitrolinha.  Porque Lupicínio em certo sentido é uma radicalização do mau-gosto. E é estupendo compositor, o cantor por excelência do sentimento da “cornitude”, como dele escreveu Augusto de Campos em 1967.  Num texto inaugural de apreciação da obra lupicínica (o adjetivo é estranhamente apropriado) feito por um dos intelectuais mais “alta cultura” do Brasil, Augusto acerta na mosca em vários momentos (em alguns outros, já não acho tanto), como quando diz que após a onda “clean, “cool” da bossa nova, a obra de Lupicínio passa a ser olhada retrospectivamente “relegada à faixa do samba-canção bolerizado e descaracterizado, quando o seu caso não é realmente esse.  Suas músicas podem lidar com o banal, mas não são banais.” O universo muito particular de Lupicínio é curioso porque justamente não é nada de muito particular em ambiência: é o “bas-fond”, isto é, o cabaré, o puteiro, o pé-sujo, lugares onde transitam seus personagens amargurados, vingativos, ressentidos ou às vezes tão-somente resignados, cada um com sua “mala suerte”.  Particular é sua arte não-sublimada, carregada nas tintas, suas letras recheadas de senso comum que explodem aqui e ali em imagens surpreendentes, que passam uma incrível veracidade.  Sobre isso, Luiz Tatit escreveu: “O talento desse compositor manifesta-se, sobretudo, na descoberta de formas específicas para traduzir o lugar-comum visando, não à particularidade, mas à ampliação\o do consenso.  Ele procura fisgar o essencial de sua experiência para que mais gente sinta a autenticidade dos seus sentimentos e mais gente se identifique com sua posição narrativa.”
            Como um exemplo do que Tatit acertadamente diz veja-se na canção postada a posição narrativa do eu que canta: ele dirige-se àqueles todos que estão no cabaret para contar sua vida com a mulher que todos eles admiram: “vocês estão vendo...” o mundo, por sua vez,  lhe fala pelo conselho do amigo, para que preserve o “amor sagrado”, que ele, no entanto, só é capaz de preservar de maneira bem pouco sagrada, como “o dono” daquela que “dança no cabaré” (aqui vai uma concessão ao decoro).  Esse “dono” assumido tem a ver com o indisfarçável (que não quer mesmo se disfarçar) mau-gosto de que eu falei antes.  Os versos acasalam a vulgaridade da cena com o inusitado das imagens: “toda vez que ela fala ilumina mais a sala do que a luz do refletor”.  O respeito à mulher que é de “todos que andam na rua” é um respeito a si próprio, para evitar o afastamento que provavelmente lhe seria fatal.
            Na entrevista concedia a Fernando Faro em 1973, de onde pincei o material desta postagem, todas as declarações de Lupicínio são impressionantes.  Com sua voz que se equilibra entre mansa e insidiosa, Lupi conta estórias incríveis a respeito de quase todas as canções que canta.  A maneira de falar, de contar as desilusões que motivaram cada canção mantém perfeita continuidade com o que ele canta em seguida.  Optei por uma canção sobre a qual ele nada fala.  Vale a pena conhecer o CD.
            Por fim, vale registrar que Lupicínio fascina a música brasileira pós-bossa nova com uma efetiva força de permanência.  De Paulinho da Viola, que gravou magistralmente “Nervos de aço” e sempre a canta em seus shows (“eu só sei é que quando a vejo me dá um desejo de morte ou de dor”), a Arrigo Barnabé (que anda levando em vários palcos – que eu saiba ainda não gravou em CD, embora haja vídeos por aí pelos youtube – a “Caixa de ódio”, projeto dedicado a Lupi), passando por Caetano, Bethânia, Gal, Gil, Jards Macalé e ainda Arnaldo Antunes, que gravou num CD “Judiaria” (que tem o verso terrível “estou lhe mostrando a porta da rua para que você saia sem eu lhe bater”), e outros que provavelmente desconheço ou estou esquecendo, Lupi continua vivo.  Certamente por muito tempo ainda. E ainda bem.