quarta-feira, 29 de maio de 2013

NA SELVA DOS SHOPPINGS PELAS MÃOS SÁBIAS DAS CRIANÇAS

Ilustração de Talarico


 
para o Leon Navarro, que propiciou
 

            Uma matéria que circula por esses dias na rede acabou chamando minha atenção.  Trata-se de um livro organizado pelo colombiano Javier Naranjo, que compila, à maneira de um dicionário, algo em torno de 500 definições formuladas por crianças para pouco mais de 130 palavras.  O livro Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças  tornou-se um sucesso editorial na Colômbia desde sua primeira edição, em 1999, tendo inspirado obras semelhantes na Venezuela e no México.    As definições foram colhidas por Naranjo, no tempo em que trabalhou como professor de escolas rurais no interior da Colômbia,  em exercícios de criação literária com a criançada.

 
Quem já parou para prestar atenção à maneira criativa como crianças captam e expressam o mundo pela linguagem não se surpreende com os verbetes  do dicionário, colhidos  na matéria do UOL.  Alguns exemplos:
 
Água: transparência que se pode tomar (Tatiana Ramirez, 7 anos)
Céu: de onde sai o dia (Duván Arnulfgo Arango, 8 anos)
Colômbia: é uma partida de futebol (Diego Hiraldo, 8 anos)
Escuridão: é como o frescor da noite (Ana Cristina Henao, 8 anos)
Igreja: onde a pessoa vai perdoar Deus (Natália Bueno, 7 anos)
Lua: é o que nos dá a noite (Leidy Johanna García, 8 anos)
Mãe: Mãe entende e depois vai dormir (Juan Alzate, 6 anos)
Tempo: coisa que passa para lembrar (Jorge Armando, 8 anos)
Universo: casa das estrelas (Carlos Gómez, 12 anos)
 
            Quando eu digo que não se surpreende, não quero dizer que não se encante, se não tiver perdido essa capacidade.  Desde os românticos, pelo menos, os poetam sabem  que emular a linguagem infantil é abrir portas e mais portas da percepção para o mundo, rompendo com o conformismo e a estereotipia que insidiosos  sempre começam pela linguagem. Entre nós,  brasileiros, nem  foram tanto os  românticos, em geral  um tanto conformados a seus próprios estereótipos, e sim  os modernistas que, contemporâneos de Freud, souberam instrumentalizar ideologicamente o potencial subversivo da linguagem das crianças e fazer dela uma arma de combate vigorosa – pero sin perder la ternura... – contra os valores estabelecidos pelo conformismo acadêmico nos embates intelectuais da época: o “olhar inaugural” sobre o mundo,  reivindicado pelos modernistas,  atuou como um correlato, entre outras coisas,  da visão inovadora a respeito da realidade brasileira sobre a qual  eles se debruçaram. Basta lembrar o que há de “olho de criança” na poesia de Bandeira, na poesia e na prosa (João Miramar...) de Oswald, ou de    Mário (inclusive, e muito, em Macunaíma); num outro viés, o de uma vigorosa desidealização do mundo pela linguagem,  via negatividade acendrada, será oportuno lembrar do Graciliano de Vidas secas (os capítulos que tratam dos meninos, por exemplo) e de Infância, entre outros momentos.
            Eu conto há muito tempo – desde que aconteceu – em minhas aulas,  um episódio que ilustra de forma eloqüente  para mim a vivência radical que as crianças têm da linguagem – e procuro estender os sentidos desse episódio para um aprendizado fulcral da linguagem .  Essa vivência, que os modernistas gostavam de dizer fundadora, é comentada por  Oswald com felicíssima clarividência em seu poema “3 de maio”:
 
Aprendi com meu filho de dez anos
que a poesia é a descoberta
das coisas que eu nunca vi.
 
            Eu experimentei no corpo a realidade desse curto poema  – é isso que conto sempre para meus alunos desde que o episódio aconteceu já lá se devem ir uns 15 anos – quer dizer, eu propriamente o incorporei quando, andando certa vez a segurar  a mão de  um dos meus filhos pelo shopping Rio Sul, nos vimos num setor pouco comum em shoppings: uma área em que todas as escadas rolantes “se emendam” umas nas outras, isto é, você está subindo – ou descendo – numa delas e passa para a seguinte  sem precisar se deslocar nada. Como se sabe, nos shoppings  as conexões entre um e outro segmento de escada nunca são assim,  justo para que o consumidor – nesses lugares  há apenas consumidores – caminhe mais um pouquinho,  de modo a  ser seduzido por alguma vitrine no curto espaço-tempo. 
Mas o fato é que lá no Rio-Sul há uma área onde se emendam as escadas, quase que uma “área de serviço” que dá direto pros andares de estacionamento.  Pois bem: caminhava eu com meu filho pela mão por essa área quando, ao ver de longe esse conjunto de escadas “emendadas”,  ele – que na ocasião tinha uns 5 ou 6 anos – disse: “Olha só, pai, parece os elefantes caminhando pela floresta, não é?” Meio atônito, ainda olhei para ver se o “elefante” seria eu, caso houvesse algum espelho.  Mas não, nada de espelho.  Resolvi entender: “Como assim? Por quê?”  “Porque o de trás pega com a tromba no rabo do que vai na frente...” ele me respondeu com a maior segurança e com aquele tom  de quem diz quase o óbvio.  Não sei se o leitor já percebeu do que se tratava, mas na hora eu saquei, não por grande mérito meu, claro, mas porque com filhos pequenos os desenhos animados se tornam alimento cotidiano.  Leon estava se referindo ao “Dumbo”, da Disney,  em que os elefantes saem em cortejo pela floresta, numa fila indiana na qual  o que vai atrás agarra com a tromba o rabo do elefante que vai imediatamente a sua frente.  A “metáfora lancinante” – para usar um termo que os futuristas inventaram – capaz de fazer ver numa seqüência de escadas rolantes  um cortejo de elefantes é genial demais para ser dita assim no acaso de uma conversa por um adulto: talvez um poeta adulto a escrevesse em um poema.  Mas ele teria que se tornar muito criança para fazê-lo.  E fazê-la  fluir num papo descompromissado, desarmado exigiria uma tomada de posição de sua poesia perante o mundo, muito  firme enquanto  opção poética, prenhe de estratégias, como em Oswald.  Ou Jorge Ben (Jor) em alguns de seus grandes momentos. Manoel de Barros não faria cerimônia.  Joan Brossa tampouco.
Experimentar no corpo a sensação de um poema, tal como meu filho me possibilitou  com o poema de Oswald,  tornou-me, quero crer, um professor melhor, mais apto para lidar com essas questões que estão no meu dia-a-dia profissional. E o ganho suplementar, que nada tem de desprezível, é, sem dúvida, a capacidade de enxergar num shopping-center uma dimensão que esteja além do simples consumismo, que ali mesmo, no grande templo do consumo, remeta a uma outra dimensão, a uma outra representação do mundo, mesmo que seja uma clareira  numa floresta-da-Disney. 

domingo, 26 de maio de 2013

PAULO HENRIQUES BRITTO

Foto de Bel Pedrosa
 

PESSOANA

 

Quando não sei o que sinto
sei que o que sinto é o que sou.
Só o que não meço não minto.

Mas tão logo identifico
o não-lugar onde estou
decido que ali não fico,

pois onde me delimito
já não sou mais o que sou
mas tão-somente me imito.
 
De ponto a ponto rabisco
o mapa de onde não vou,
ligando de risco em risco

meus equívocos favoritos,
até que tudo que sou
é um acúmulo de escritos,

penetrável labirinto
em cujo centro não estou
mas apenas me pressinto

mero signo, simples mito.

 

 

                                   In: Trovar claro.  Companhia das Letras, 2006.

 

 

 

 

quinta-feira, 23 de maio de 2013

MARCELO DINIZ


MERGULHO

 

Penetrar o escuro
túnel de tatos –
vibrar em vez

de respirar – sor
ver, em vez do ar,
muco secreto – des

vendar a via que o
próprio corpo impõe
à fenda, lustrar – en

fim, atrito mútuo,
fricção febril
no úlitmo imo

do molusco – o ex
cesso nácar
de pérola.

 
Marcelo Diniz. Trecho. RJ: Aeroplano, 2002
 
 
Ilustração de Talarico
 

segunda-feira, 20 de maio de 2013

BERTOLT BRECHT



A QUEIMA DE LIVROS

 
Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos.  A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz.  Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas!  Não me deixem de lado!  Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros?  E agora tratam-me
Como um mentiroso!  Eu lhes ordeno:
Queimem-me!
                                             Tradução de Paulo Cesar Souza

Bertolt Brecht. Poemas 1913-1956.  Brasiliense, 1986.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Um poema antigo, de A TAL CHAMA O TAL FOGO


Meu primeiro livro, lançado em 2008, reunia poemas escritos em sua quase totalidade na década de 1980.  Como este, que posto a seguir, de 1989



POEMA EXPULSO

 
as palavras abrem falência
e os minutos duram os dias

 a dançarina e seu perfume
não sabem meu telefone

eu vou de novo
pra dentro dos engarrafamentos

terei cuidado com o menino
assim também com seu carrinho

dou a mão e atravesso o vento
a fuligem a zombaria o desmantelo

chegamos do outro lado
com o apuro dos sonâmbulos

sonho o relento e o ninho
sonho no meu pesadelo

(meu glorioso São Cristóvão
portador de Cristo, intercedei por nós)

outro dia que me vi
andando como há muito tempo
no zumbido dos zumbis
no prumo do meio-fio

a cidade me especula
cheia de pretos bonitos

tenho medo do minuto, do milênio
do eterno e de certas nucas

tenho medo da pele e de farpas
de vidros que o corpo expele

também de expelir silêncio
no tráfego das palavras

uma cidade estrangeira
me aguarda sem pressa
me guarda sem receio

compro a passagem e sigo
mas rumo ao engarrafamento?

vendo a vida e volto?

que portugal ou espanha
me seduz com seus arabescos
esguias ancas omoplatas abismos
de negros pentelhos?

que letra zomba ainda
de fora do desassossego?

que s ou f me falha
me salga? – tudo é fascínio

dentro de todo perigo
o mesmo que sou me guarda

de como antigamente
o mesmo engarrafamento
súbito me expele – cuido
do meu menino, penso tê-lo
perdido perdido no movimento

de irevir, vindo sempre vindo
no indo, no v, no verir

letras riem das palavras
(nem poderia ser diferente)

letras não fissuram a urgência
nem o frio nem o ardor
do instante seguinte à fala

letras são toda potência.
Inda assim melhor não dizê-lo

quanto ao amor,  a tela onde
tecê-lo será dada de súbito.

 
 
 
In: A tal chama o tal fogo.  Oficina Raquel, 2008.
 
Ilustração de Talarico
 
 
 
 
 
 
 

sexta-feira, 10 de maio de 2013

CHACAL



UMA OUTRA

se você acha que morar num apê
encardido e abafado rua siqueira
campos num cabeça de porco botar
gravata todo dia pra ir de ônibus
trabalhar na rua senador dantas e
quando pinta tempo e grana batalhar
uma trepada.
se você acha que dormir puto e acordar
puto é uma, eu já acho que é outra. 


 Chacal.  Olhos vermelhos.  Rio, 1979.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

ORIDES FONTELA

Ilustração de Talarico



ODE

E enquanto mordemos
frutos vivos
declina a tarde.

E enquanto fixamos
claros signos
flui o silêncio.

E enquanto sofremos
a hora intensa

lentamente o tempo
perde-nos.

Orides Fontela.  Trevo (1969-1988).  Companhia das Letras, 1988.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

DYLAN THOMAS



A mão que assina o ato assassina a cidade.
Cinco dedos reais taxam o ar – é a lei.
Cevam o morticínio e ceifam um país;
Os cinco reis que dão cabo de um rei.

A mão que manda mana de um ombro em declínio,
Cãibras deduram nós nos dedos que a cal cala.
Penas de ganso firmam o assassínio
Que pôs fim a uma fala.

A mão que assina o pacto traz a peste,
Praga e devastação, o gafanhoto e a fome;
Grande é a mão que pesa sobre o homem
Ao rabisco de um nome.

Os cinco reis contam os mortos mas não curam
A crosta da ferida e o rosto já sem cor.
A mão rege a clemência como a outra os céus.
Mãos não têm lágrimas a expor.

                                   Tradução de Augusto de Campos


The hand that signed the paper felled a city;
Five sovereign fingers taxed the breath,
Doubled the globe of dead and halved a country;
These five kings did a king to death.

The mighty hand leads to a sloping shoulder,
The finger joints are cramped with chalk;
A goose's quill has put an end to murder
That put an end to talk.

The hand that signed the treaty bred a fever,
And famine grew, and locusts came;
Great is the hand the holds dominion over
Man by a scribbled name.

The five kings count the dead but do not soften
The crusted wound nor pat the brow;
A hand rules pity as a hand rules heaven;
Hands have no tears to flow.


In: Augusto de Campos. Poesia da recusa.  Perspectiva, 2006.