segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O POETA EDUARDO LEVA SEU CÃO RAIVOSO A PASSEAR





Eduardo, louco em férias, poeta disfarçado em burocrata, levanta-se todos os dias de péssimo humor, para ser devorado pelo relógio de ponto.

 

Obediente, amável, prestativo, conhece a fisionomia dos carimbos, sabe de cor o roteiro dos papéis e sente uma vontade secreta de atear fogo aos arquivos.

 

Adora olhar pela janela.  Está sempre olhando pela janela, muito embora nada aconteça.

 

Acredita nos homens, entregaria sua vida por eles, porque é um tolo, um humanista impenitente, um amante das grandes causas, um aprendiz de santo, um sofredor pela miséria alheia,uma vítima do melodramático, um desprotegido contra a chantagem emocional, com uma farpa da cruz atravessada no coração.

 

Espera ansioso o momento de lutar pelo proletariado mas não compreende como se resolverá o problema de acomodar os milhões de traseiros num único trono.  E se prepara, desde logo, para enfrentar os burocratas, os donos do poder e o pelotão de fuzilamento.

 

Odeia os delegados, representantes, procuradores, emissários, substitutos, intermediários, signatários e mensageiros.

 

Aguarda o suicídio em massa de todos os tiranetes, o exílio dos Napoleões do brejo e dos almirantes sem navio, que não fazem outra coisa senão passar os subordinados em revista e acabam a carreira como soldadinhos de pau, esquecidos num sótão.

 

Faz amor com irregularidade, porque não obedece a nenhuma tabela nem tem a mulher ao alcance da mão.  Prefere a monogamia, não por moral mas porque já lhe é difícil encontrar uma fêmea com sexo e miolos no lugar.

 

Desconhece o que é café matinal em família, não tem filhos para levar ao colégio, embora ame as crianças e sinta grande inveja dos que nasceram com suficiente mediocridade para as ter sem saberem por quê.

 

Caminha pela noite, sozinho, à caça de fantasmas, recebe propostas para ser gigolô e sempre se arrepende por não as aceitar.

 

Parece crescer ao contrário, da velhice para a adolescência.  E enquanto aguarda o momento de nascer, leva seu cão raivoso a passear.

 




 
Eduardo Alves da Costa.  No caminho, com Maiakovski. RJ: Nova Fronteira, 1985.



domingo, 22 de dezembro de 2013

AUGUSTO DOS ANJOS

Caricatura de Augusto dos Anjos por Sábat
 

NUMA FORJA

 

De inexplicáveis ânsias prisioneiro
Hoje entrei numa forja, ao meio-dia.
Trinta e seis graus à sombra. O éter possuía
A térmica violência de um braseiro.
Dentro, a cuspir escórias
De fúlgida limalha
Dardejando centelhas transitórias,
No horror da metalúrgica batalha,
O ferro chiava e ria!
 
Ria, num sardonismo doloroso
De ingênita amargura
Da qual, bruta, provinha
Como a de um negro cáspio de água impura
A multissecular desesperança
De sua espécie abjeta
Condenada a uma estática mesquinha!

Ria com essa metálica tristeza
De ser na Natureza,
Onde a Matéria avança
E a Substância caminha
Aceleradamente para o gozo
Da integração completa,
Uma consciência eternamente obscura!

O ferro continuava a chiar e a rir.
 E eu nervoso, irritado,
Quase com febre, a ouvir
Cada átomo de ferro
Contra a incude esmagado
Sofrer, berrar, tinir.

 
 
 

 

 
Compreendia por fim que aquele berro
À substância inorgânica arrancado
Era a dor do minério castigado
Na impossibilidade de reagir!
 
 
Era um cosmos inteiro sofredor,
Cujo negror profundo
Astro nenhum exorna
Gritando na bigorna
Asperamente a sua própria dor!
Era, erguido do pó,
Inopinadamente
Para que à vida quente
Da sinergia cósmica desperte,
A ansiedade de um mundo
Doente de ser inerte,
Cansado de estar só!

 
Era a revelação
De tudo que ainda dorme
No metal bruto ou na geléia informe
Do parto primitivo da Criação!
Era o ruído-clarão,
- O ígneo jato vulcânico
Que, atravessando a absconsa cripta enorme
De minha cavernosa subconsciência,
Punha em clarividência
Intramoleculares sóis acesos
Perpetuamente às mesmas formas presos,
Agarrados à inércia do Inorgânico
Escravos da Coesão!
 
Escultura de Franz Weissmann
 

 
 
Repuxavam-me a boca hórridos trismos
E eu sentia, afinal,
Essa angústia alarmante
Própria de alienação raciocinante,
Cheia de ânsias e medos
Com crispações nos dedos
Piores que os paroxismos
Da árvore que a atmosfera ultriz destronca.
Ao ouvir todo esse cosmos potencial,
Preso aos mineralógicos abismos
Angustiado e arquejante
A debater-se na estreiteza bronca
De um bloco de metal!

Como que a forja tétrica
Num estridor de estrago
Exectava, em lúgubre crescendo
A antífona assimétrica
E o incompreensível wagnerismo aziago
De seu destino horrendo!
 
Ao clangor de tais carmes de martírio
Em cismas negras eu recaio imerso
Buscando no delírio
De uma imaginação convulsionada
Mais revolta talvez de que a onda atlântica,
Compreender a semântica
Dessa aleluia bárbara gritada
Às margens glacialíssimas do Nada
Pelas coisas mais brutas do Universo!

 

Augusto dos Anjos. Toda a poesia.  2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.



quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

MARINA TZVIETÁIEVA



 
 
TOMARAM...

            “Os tchecos se aproximavam dos alemães e cuspiam...”

                                      (cf. jornais de março de 1939)

 

Tomaram logo e com espaço:
Tomaram fontes e montanhas,
Tomaram o carvão e o aço,
Nosso cristal, nossos entranhas.

Tomaram trevos e campinas,
Tomaram o Norte e o Oeste,
Tomaram mel, tomaram minas,
Tomaram o Sul e o Leste,

Tomaram Vary e Tatry,
Tomaram o perto e o distante,
Tomaram mais que horizonte:
A luta pela terra pátria.

Tomaram balas e espingardas,
Tomaram cal e gente viva,
Porém enquanto houver saliva
Todo o país está em armas.

 

            Tradução de Augusto de Campos

 

 

 

In: Augusto de Campos.  Poesia da recusa. SP: Perspectiva, 2006.



segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

AH, UM SONETO... DE FERREIRA GULLAR


Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário;
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.
 
Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho – o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário
passa um rio sem foz e sem começo.

 

                        Ferreira Gullar. A luta corporal. 3 ed. RJ: Civilização Brasileira, 1975.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

EMILY DICKINSON EM DUAS TRADUÇÕES




EU MORRI POR BELEZA

 Eu morri por beleza, mas fui mal
Colocada em minha tumba,
Quando um que estava morto por verdade
Foi posto numa câmara contígua.

Ele indagou cortês porque morri
“Por beleza”, respondi.
“E eu por verdade, - as duas só são uma;
Somos irmãos”, ele falou.

E assim como parentes veem-se à noite,
Conversamos entre as câmaras,
Até que o musgo lá chegasse aos lábios
E cobrisse nossos nomes.           

                                                Tradução de José Lino Grünewald

 

 

I died for Beauty – but was scarce
Adjusted in the Tomb
When One who died for Truth, was lain
In an adjoining Room –

He questioned softly “Why I failed”?
“For Beauty”, I replied –
And I – for Truth – Themself  are One –
We Brethren, are”, He said –

 And so, as Kinsmen, met a Night –
We talked between the Rooms –
Until the Moss had reached our lips –
And covered up – our names –

                                                          (c. 1862)

 

Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo
Meu Corpo foi fechado,
Um outro Morto foi depositado
Num Túmulo contíguo –

"Por que morreu?” murmurou sua voz.
“Pela Beleza” – retruquei –
“Pois eu – pela Verdade – É o Mesmo.  Nós
Somos Irmãos. É uma só lei” –

E assim Parentes pela Noite, sábios –
Conversamos a Sós –
Até que o Musgo encobriu nossos lábios –
E – nomes – logo após –

                                    Tradução de Augusto de Campos

 

In: José Lino Grünewald (org. e trad.) Grandes poetas da lingual inglesa do século XIX. RJ: Nova Fronteira, 1988.
 
Emily Dickinson.  Não sou ninguém: poemas. Traduções de Augusto de Campos. Unicamp, 2008.
 

 


domingo, 8 de dezembro de 2013

FRANK O'HARA

Óleo de Talarico



AUTOBIOGRAPHIA LITERARIA

 

Quando era menino eu
brincava sozinho num
canto do pátio da escola
sem ninguém.

Odiava bonecas e
odiava jogos, os bichos eram
hostis e os pássaros
fugiam.

Se alguém me procurava
eu me escondia atrás de uma
árvore e gritava “Sou
um órfão.”

E olha eu aqui, o
centro de toda beleza!
escrevendo estes versos!
Imagine! 

 

AUTOBIOGRAPHIA LITERARIA
 

When I was a child
I played by myself in an
corner of the schoolyard
all alone.

I hated dolls and  I
hated games, animals were
not friendly and birds
flew away.

If anyone was looking
for me I hid behind a
tree and cried out “I am
an orphan.”

And here I am, the
center of all beauty!
writing these poems!
Imagine!

 

                        Tradução de Paulo Henriques Britto

 

 

In: Inimigo Rumor: revista de poesia n. 7.  Rio, ago-dez 1999.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

AH, UM SONETO... DE CESÁRIO VERDE


HEROÍSMOS

 

Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.

Eu temo o largo mar rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos de um túmulo disforme.

Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n’água quase assente,

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidado, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!





 
In: Cinco séculos de sonetos portugueses de Camões a Fernando Pessoa.  Organização, apresentação e ensaios de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.



quinta-feira, 28 de novembro de 2013

UMA DAS RAZÕES POR QUE RIMOS NOS VELÓRIOS


O cadáver de uma amizade não sai no jornal.
Ninguém se reúne para celebrá-la.
Fala-se baixo e constrangido. 
O mundo teme a imaginação.

A amizade também ninguém celebra.
Quando muito os próprios amigos no seu convívio.
Sem sabê-lo.  Sem saber que é amizade.
Até porque pode
            – perfeitamente –
                        não sê-lo.

 
                          *

 
(Cada um carrega apenas sua morte.
Sua bateria).


                          *
 

A capacidade de rir do mundo e suportá-lo
só a comentamos quando nos despedimos
do que já não é mais

que corpo.

 

 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

NEI LEANDRO DE CASTRO

DOIS DÍSTICOS DE ROMEU E JULIETA



Ilustração de Joaquim Pêcego


in: Neil de Castro.  Zona Erógena. Ed.Eros, 1981.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

De OS VIRALATAS


OS DESABRIGADOS

 

Ei você aí
ei
aqui estamos
nós

entregues à própria sorte
entregues a nós
vendo a chegada de donativos
salivando como diante de televisões
de cachorro somos nós
nossa própria sorte
nossa imprópria sina
de desobrigados

com muito orgulho
muito amor

Da série Os invisíveis, de Talarico `(Óleo sobre tela)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Dois poemas de Edwin Morgan




GAROTA DE OBAN

Uma garota na janela comendo um melão
comendo um melão e pintando um quadro
pintando um quadro e cantarolando Hey Jude
cantarolando Hey Jude enquanto a luz evanesce
 
No outono estará casada

 
OBAN GIRL

A girl in a window eating a melon
eating a melon and painting a picture
painting a picture and humming Hey Jude
humming Hey Jude as the light was fading
 
In the autumn she’ll be married

 

 

 

NA ESTAÇÃO CENTRAL

Na estação Central, no meio do dia
uma mulher está mijando na calçada.
Com as costas para a parede e as pernas afastadas
ela inclina-se, o cabelo caindo sobre o rosto,
a saia sombria e o casaco nem sequer levantado.
Sua urina bate na pedra com força
e corre em direção à sarjeta.
Ela não é velha, nem jovem,
não é suja, tampouco limpa,
nem em trapos, mas naquele caminho.
Ela está no centro da cidade, o fantasma no banquete.
Executivos saindo do trem de Londres
assustam-se incrédulos mas pulam o rio
e mansamente juntam-se à fila do táxi.
A gente de Glasgow passa apressada,
mal olha, ou se atreve a olhar,
ou olha severamente, atrevida, como
o olhar do poeta, não duro como o aço
mas severo, rápido, diminuindo o passo
um pouco, registrador maldito, seus sentimentos
tão confusos como as folhas de novembro.
Ela é uma estátua em um redemoinho,
surrada por nada que ele possa dizer em palavras,
sangrando nas ondas de conversa
e transita fluidos terríveis de necessidade.
Somente dois homens francamente param,
com um sorriso largo, jogam-lhe um insulto
enquanto cruzam a rua para apostar no jogo.
Sem eles a indignidade,
a dignidade, seria incompleta.
 

AT CENTRAL STATION

At Central Station, in the middle of the day
a woman is pissing on the pavement.
With her back to the wall and her legs spread
she bends forward, her hair over her face,
the drab skirt and coat not even hitched up.
Her water hits the stone with force
and streams across into the gutter.
She is not old, not young either,
not dirty, yet hardly clean,
not in rags, but going that way.
she stands at the city centre, skeleton  at the feast.
Executives off the London train
start incredulously but jump the river
and meekly join the taxi queue.
The Glasgow crowd hurries past,
hardly looks, or hardly dares to look,
or looks hard, blod as brass, as
the poet looks, not bold as brass
but hard, swift, slowing his walk
a little, accursed recorder, his feelings
as confused as the November leaves.
She is a statue in a whirlpool,
beaten about by nothing he can give words to,
bleeding into the waves of talk
and traffic awful ichors of need.
Only two men frankly stop,
grin broadly, throw a gibe at her
as they cross the street to the betting-shop.
Without them the indignity,
the dignity, would be incomplete.
 

                         Tradução de Virna Teixeira

 

Edwin Morgan. Na Estação Central.  Sel. trad. e introdução de Virna Teixeira.  Editora UnB (Poetas do mundo), 2006.


domingo, 3 de novembro de 2013

CIRCUNVAGANDO NAS BIOGRAFIAS


Não tinha lido a coluna de Caetano Veloso do domingo passado, o que fiz agora (pelo andar da carroça aqui no brejo, domingo que vem eu devo ler a de hoje), mas tem ali duas passagens dignas de nota, que comento e transcrevo:

  1. quanto ao interesse que o assunto “biografias”  despertou, diz Caetano, “pelo visto nas folhas e nas redes, o interesse é enorme, embora não pareça ser pelo que é discutível na questão, e sim pela oportunidade de agredir quem ganhou prestígio no Brasil, país que ainda precisamos tanto provar que não vale nada nem poderá nunca valer nada”.  Não querendo endossar tudo, uma vez que sou mais acometido do que Caetano por esse sentimento de que “nada dará certo no Brasil”,  mas há aqui carradas de razão, sendo alguma coisa que me chamou a atenção nos primeiros comentários dos poucos que fiz no Facebook : impressionante a massa acrítica de ódio despejado sobre essas figuras (em especial Caetano e parece que sabemos tacitamente por que), facilmente perceptível   na recusa em se discutir o que há de discutível em tudo aí (a começar pelo posicionamento inicial deles, artistas, em linhas gerais bem capenga).  Não é também o caso de se simplificar tanto, mas eu sou do clã do Tom Jobim, que dizia com todas as letras “brasileiro odeia o sucesso, por isso gosta do Garrincha e não gosta do Pelé.”
  2. Caetano, depois de ecoar Ana Maria Machado (que não li), escreve:  “que não ajamos como se a democracia tivesse que escolher entre a censura e a difamação. Será que o tom histérico da imprensa e a psicopatia coletiva das redes são a palavra final? Acho que Chico, Gil e eu não estarmos em posição confortável reafirma nosso histórico, ao invés de desmenti-lo. Eu desconfiaria se os três estivéssemos, ao mesmo tempo, tendo apoio unânime.”
Pois nessa última citação a estocada certeira, que atinge professores de história e de literatura preguiçosos (além de jornalistas, é claro) que ficam repetindo as baboseiras de sempre a respeito de “protesto”,  “resistência” e “heroísmo” dessa geração de artistas, negligenciando os aspectos (alguns muito profundos) que sempre houve de dissenso entre eles.  Parece que o sonho desse pessoal  simplista é deixar a palavra final ao simplista Belchior: “Nossos ídolos ainda são os mesmos etc e tal", a chorumela que todo mundo sabe... A simplificação excessiva faz tanto a reflexão histórica quanto a reflexão literária reféns  do jornalismo diário (que tem de lidar com a pressa mesmo e, por conseguinte, com  a simplificação).  Mas mesmo no jornalismo  há aqueles que não se submetem a isso – e alguns textos produzidos para a imprensa têm sido muito honestos  na tentativa de se entender o imbróglio, sem querer livrar a cara de nenhum “ídolo”  – e o imbróglio,  de resto, vai muito além de uma discussão circunscrita a eles. Mas, claro, não pode incluir a sério em nenhuma instância o que diz um Bolsonaro a respeito.

Que a “turma da MPB” nunca tenha sido um bloco unitário e coeso estudiosos sérios (de história, de música  e de literatura) já o demonstraram. Que essa ilusão tenha se perdido para sempre num certo réveillon em Copacabana e não se tenha prestado a devida atenção a isso, bom... lamente-se.  Não acho que se deva tratar a questão por um lado simplificadoramente esteticista, longe disso, mas da forma como tenho visto ser abordado tem alguma razão quem o fizer, ainda que apenas por tédio (eu mesmo tenho me acusado disso): e assim é porque  as obras deixadas por eles (tiro a média da turma) e a importância que elas têm para a discussão cultural brasileira  são superiores a suas circunstâncias históricas, ainda mais se ficarmos chafurdando nessa coisa menor da fofoca.   E afinal, as circunstâncias históricas que alimentaram essas mesmas obras foram em geral tratadas nelas com admirável competência, poder de provocação e profundidade.  Além de terem estado longe de ser recebidas, tais obras,  – convém não esquecer que são mais de 40 anos de estrada – com aplausos unânimes em nenhum momento.
Em resumo, ainda que apenas vadio e em nível de mero pitaco (que, aliás, acabo de descobrir, não é uma palavra dicionarizada): um esteticismo domingueiro – e no entanto produtivo, estou aqui às voltas com um texto de mais fôlego – me obriga deixar claro que amo todos que citei, mesmo implicitamente, acima: e reafirmar que amo muito Tom e igualmente Pelé e Garrincha.  Mas Belchior, menos.  E Paulinho da Viola, mais que todos.




P.S: Não, uma foto incluindo Paulinho da Viola não pode ser tomada como equívoco ou relaxamento de minha parte: ele não é o J. Pinto Fernandes da história.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

AH, UM SONETO... MAIS UM DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


CONFRONTO

 

Bateu Amor à porta da Loucura.
“Deixa-me entrar – pediu – sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu minha paixão.”

A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo
de humano que era, assim tão inumano.

E exclama: “Entra correndo, o pouso é teu.
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu,

enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de amar.”

 

            A paixão medida. 3 ed. Rio: José Olympio, 1981.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

FRAGMENTOS DE NÁUFRAGO


onde se divisa o que das naus não é sequer vestígio
superfície serena de um mar que é sempre o mesmo

            - nada acena
        nuas quedas
            gesto de placidez
             gosto de abismo
tudo é nítido -

dispersos despojos incontáveis
       inencontráveis
quando ao fim de tudo nos dermos o trabalho
de reunir os dias para prestar contas
ao último suspiro

- gastos sonhos
                     um corpo interdito
       uns olhos imensos
                   cabelos de risco
                        seios e dorsos percorridos a língua
              ou somente sonhados desabitados
apesar da sede que neles ardeu
giz bic lápis –

e não soubermos distinguir do que é
o que se finge
e se o que era
era tão só a visão da sua estátua
ou a própria esfinge