segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL PELO “CARPE DIEM”


            Extraídos do  magnífico  Lírica e lugar-comum, de Francisco Achcar (EdUsp) , desde a “premonição”  do “carpe diem” horaciano por Catulo, e partindo então do primeiro texto em que a expressão está registrada, em tradução do árcade português Elpino Duriense.  E além...


Vivamos, minha Lésbia, e amemos,
e as graves vozes velhas
– todas –
valham para nós menos que um vintém.
Os sóis podem morrer e renascer:
quando se apaga nosso fogo breve
dormimos uma noite infinita.
Dá-me pois mil beijos, e mais cem,
e mil, e cem, e mil, e mil e cem.
Quando somarmos muitas vezes mil
misturaremos tudo até perder a conta:
que a inveja não ponha o olho de agouro
no assombro de uma tal soma de beijos.

                                               Catulo (século I a.C)
                                               (tradução de Haroldo de Campos)



Saber não cures (é vedado) os deuses
A ti qual termo, qual a mim marcaram,
Nem consultes, leucônoe, os babilônios
Cálculos, por que assim melhor já sofras
Tudo quanto vier, ou te dê Jove
Muitos invernos, ou só este, que ora
O mar tirreno nas opostas rochas
Quebra.  Tem siso, o vinho coa, e corta
Em vida breve as longas esperanças.
Ínvida a idade foge; colhe o dia,
Do de amanhã  mui pouco confiando.

                                                           Horácio  (século I a. C)
                                                           (tradução de Elpino Duriense)




SONETO PARA HELENA

Quando fores bem velha, à noite, à luz da vela,
Junto ao fogo do lar, dobando o fio e fiando,
Dirás, ao recitar meus versos e pasmando:
Ronsard me celebrou no tempo em que fui bela.

E entre as servas então não há de haver aquela
Que, já sob o labor do dia dormitando,
Se o meu nome escutar não vá logo acordando
E abençoando o esplendor que o teu nome revela.

Sob a terra eu irei, fantasma silencioso,
Entre as sombras sem fim procurando repouso;
E em tua casa irás, velhinha combalida,

Chorando o meu amor e o teu cruel desdém.
Vive sem esperar pelo dia que vem:
Colhe hoje, desde já, colhe as rosas da vida.

                                   Ronsard  - séc. XVI
                                   (tradução de Guilherme de Almeida)




A APARIÇÃO

Quando, assassina, o teu desdém tiver
Feito de mim um morto contrafeito,
E te julgares livre, enfim,
Dos meus assédios e de mim,
Meu fantasma virá ter ao teu leito,
Onde serás, falsa vestal, uma mulher
Qualquer, nos braços de um outro qualquer.
A tua vela, então, vai vacilar;
Se cutucares o pobre comparsa
Ao lado, ele por certo há de pensar,
Ouvindo os teus suspiros e os teus ais,
Que queres mais,
E fingirá dormir, mísera farsa.
Trêmula e só, entregue à tua sorte,
Gelada até os ossos, vais penar,
Mais morta do que a morte.
O que eu direi não quero antecipar
Para não minorar a tua dor.
E como o amor que eu sinto também passa,
Prefiro te ver morta de terror
A viva e casta após esta ameaça.

                                       John Donne  - séc. XVII
    (tradução de Augusto de Campos)




A MARFISA

Já, Marfisa cruel, me não maltrata
Saber que usas comigo de cautelas,
Qu’inda te espero ver, por causa delas,
Arrependida de ter sido ingrata.

Com o tempo, que tudo desbarata,
Teus olhos deixarão de ser estrelas;
Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d’oiro converter-se em prata.

Pois se sabes que a tua formosura
Por força há de sofrer da idade os danos,
Por que me negas hoje esta ventura?

Guarda para seu tempo os desenganos,
Gozemo-nos agora, enquanto dura,
Já que dura tão pouco, a flor dos anos.

                                               Basílio da Gama – séc. XVIII







domingo, 30 de janeiro de 2011

ANNA AKHMÁTOVA

Dois poemas

Torci os dedos sob a manta escura...
“Por que tão pálida?” ele indaga.
- Porque eu o fiz beber tanta amargura
Que o deixei bêbado de mágoa.

Como esquecer? Ele saiu, sem reação,
A boca retorcida, em agonia...
Desci correndo, sem tocar no corrimão,
E o encontrei no portão, quando saía.

“É tudo brincadeira, por favor,
Não parta, eu morro se você se for.
E ele, com um sorriso frio, isento,
Me disse apenas: “Não fique ao relento.”



 Um dos dezesseis retratos de Akhmátova por Modigliani


Eu vivo como um cuco no relógio.
Não invejo os pássaros livres.
Se me dão corda, canto.

Só aos inimigos
Se deseja
Tanto.


                        Traduções de Augusto de Campos
                        (in: Poesia da recusa. Perspectiva, 2006)


sábado, 29 de janeiro de 2011

FLORENÇA



           “Ah, você esteve em Florença? E o que achou do lampredotto?” “Ah, adorei! Tudo lá é magnífico! Giotto, Leonardo, Michelangelo, Botticelli, Lampredotto, adorei tudo, cada um melhor que o outro!” Claro que ele não tinha a menor idéia do que eu tinha perguntado, claro que ele tinha estado em Florença por três dias e... não tinha conhecido o lampredotto.  Eu nunca fui a Florença.  Não sei se chegarei a ir. Em compensação, se eu puder ficar por lá só uns dois ou três dias nem vou – se tiver de ir mesmo assim, só vou querer saber do lampredotto.
Edmundo, o Animal, jogou na Fiorentina uma temporada inteira.  Voltou inadaptado, todo mundo sabe, reclamando da cidade: “Só tem velharia”.    Se eu puder ir pra ficar morando lá por uns seis meses, eu topo.  Existe o tal “mal (ou febre ou estresse) fiorentino”, que se resume ao seguinte: por ser Florença o que é, quem visita  a cidade com pouco tempo disponível acaba sofrendo de uma ansiedade cultural  que atinge as raias do patológico: sabendo que não terão como dar conta nem de 1% do enorme acervo artístico espalhado não só por museus e galerias, mas também presente em cada calçada e cada “palazzo” , as pessoas simplesmente adoecem e em alguns casos com relativa gravidade. É uma patologia conhecida na cidade e acomete muita gente. Tenho pra mim que menos de seis meses em Florença é tolice.  Então, numa visita rápida eu vou mesmo é querer conhecer – e muito! – o lampredotto.
Vi num programa de TV há alguns anos (lembro uma frase deliciosamente esnobe do Bosi: “a TV é o paraíso do viajante de poltrona”): o lampredotto é a típica comida de rua de Florença e consiste num sanduíche de... tripa! bucho, sanduíche de bucho de boi, isso mesmo. Vi fazer (que é como eu aprendo a cozinhar pra valer): mergulha-se um bom pedação de bucho de boi num caldo de água fervente bem aromatizado (só de pensar nas ervas toscanas, hum...) e depois de bem cozido, quando o freguês pede, o “trippaio” vai, corta em fatias o correspondente a uma porção para um sanduíche, tempera com anchova salgada (que a gente aqui só usa pra fazer “pizza de alíti”, argh!), azeitonas, pimentas e pimentões, alcaparras, enfim... uma festa! Dispõe tudo isso num pão que se abre na hora e... um belo copo de vinho tinto (em geral, Chianti) pra ajudar a digestão.
Ouvi falar, ou li não sei onde, que com as leis contra as precárias condições de higiene das comidas de rua somadas àquelas que proíbem um pentelhésimo de teor alcoólico em qualquer organismo vivo, o lampredotto estaria ameaçado de extinção, por essa praga das leis estreitas que se espalha pelo mundo.  Daqui do meu brejo estarei atento: qualquer ameaça mais séria ao lampredotto engrossarei as barricadas apocalípticas do vandalismo puro e simples e, invocando Marinetti, ajudarei a destruição da cidade-museu, de modo a que Michelangelo, Dante, Maquiavel, Giotto, lampredotto, tutti quanti, e mais o Animal, passem a ser tão somente, como diria o Chico, “vestígios de estranha civilização.”




sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

HAROLDO DE CAMPOS

a amizade conjura a solidão
(carlos bracher pintando)

a
solitude
é
a
pedra lapidada
do
minério
solidão

                                               a amizade
                                               é o engaste
                                               que resgata
                                               essa pedra

aqui
jaz:
solidão
           

                                               aqui
                                               jade:
                                               amizade


                        Haroldo de Campos
                        (in: Crisantempo. Perspectiva, 2004)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

JOHN DONNE (1572-1631)

EM DESPEDIDA: PROIBINDO O PRANTO

Como esses santos homens que se apagam
                Sussurrando aos espíritos: “Que vão...”
Enquanto alguns dos amigos amargos
                Dizem: “Ainda respira”. E outros: “Não.” –

Nos dissolvamos sem fazer ruído,
                Sem tempestades de ais, sem rios de pranto,  
Fora profanação nossa ao ouvido
                Dos leigos descerrar todo este encanto.

O terremoto traz terror e morte
                E o que ele faz expõe a toda gente,
Mas a trepidação do firmamento,
                Embora ainda maior, é inocente.

O amor desses amantes sublunares
                (Cuja alma é só sentidos) não resiste
À ausência, que transforma em singulares        
                Os elementos em que ele consiste.

Mas a nós (por uma afeição tão alta,
                Que nem sabemos do que seja feita,
Interassegurado o pensamento)
                Mãos, olhos, lábios não nos fazem falta.

As duas almas, que são uma só,
                Embora eu deva ir, não sofrerão
Um rompimento, mas uma expansão,
                Como ouro reduzido a aéreo pó.

Se são duas, o são similarmente
                Às duas duras pernas do compasso:
Tua alma é a perna fixa, em aparente
                Inércia, mas se move a cada passo

Da outra, e se no centro quieta jaz,
                Quando se distancia aquela, essa
Se inclina atentamente e vai-lhe atrás,
                E se endireita quando ela regressa.

Assim serás para mim que pareço
                Como a outra perna obliquamente andar.
Tua firmeza faz-me, circular,     
                Encontrar meu final em meu começo.

                Tradução de Augusto de Campos



A VALEDICTION:  FORBIDDING MOURNING

As virtuous men passe mildly away
                And  whisper to their soules, to goe,
Whilst some of their sad friends doe say,
                The breath goes now, and some say, no:

So let us melt, and make no noise,
                No teare-floods, nor sight-tempests move,
T’were prophanation of our joyes
                To telle the layetie our love.

Moving of th’earth brings harmes and feares,
                Men reckon what it did and meant,
But trepidation of the spheares,
                Though greater farre, is innocent.

Dull sublunary lovers love
                (Whose soule is sense) cannot admit
Absence, because it doth remove
                Those things which elemented it.

But we by a love, so much refin’d
                That our selves know not what it is,
Inter-assured of the mind,
                Care lesse, eyes, lips, and hands to misse.

Our two soules therefore, which are one,
                Though I must goe, endure not yet
A breach, but an expansion,
                Like gold to ayery thinnesse beate.

If they be two, they are two so
                As stiffe twin compasses arte two,
Thy soule the fix foot, makes no show
                To move, but doth, if th’other doe.

And though it in the center sit,
                Yet when the other far doth rome,
It leanes, and hearkens after it,
                And growes erect, as that comes home.

Such wilt thou be to mee, who must
                Like th’other foot, obliquely runne;
Thy firmness makes my circle just,
                And makes me end, where I begunne.


(In: Verso reverso controverso. Perspectiva, 1978)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

UM BEM-PENSANTE ENCALACRADO PELAS TRAPAÇAS DA MEMÓRIA

            Listei aqui outro dia, plagiando do blog do Paulo Neves (http://nolimiar.wordpress.com ), uma lista de canções que foram marcantes para mim.  Em geral as canções que nos marcam acontecem ali na entrada e na saída da adolescência etária.  As minhas aconteceram dos meus 10 aos 17, 18 anos. Quando listei propositalmente nove canções, ampliando a proposta original do blog de Neves,  que era de cinco, eu argumentei que nove era pelo menos  melhor do que dez, já que obrigaria a um corte mais rigoroso na triagem da memória. Era só meia verdade, claro, isso no fundo não existe, ninguém é “mais rigoroso” com a memória dos afetos e daquilo que de alguma forma será decisivo naquilo que nos forma.  Waly Salomão escreveu num poema e  repetia sempre que “a memória é uma ilha de edição”.  Entendo que o que fica invisível no que guardamos depende de algum imponderável, de alguma circunstância para se mostrar com sua potência de irreversível no retorno à memória,  algo  que nos iludíamos de ter apagado.  No máximo a gente pode  brincar de ser rigoroso.
                Quando fiz a tal lista, uma canção em particular me foi muito difícil deixar de fora, mais do que todas as outras que acabei excluindo: “Il ragazzo della via Gluck”, de Adriano Celentano, uma canzone entre o folk e o fuleiro rock italiano dos anos 60 (a canção constava de um disco do Festival de San Remo, acho que de 66 ou 67, que tinha lá em casa). Talvez o aspecto meio folk, talvez o fato de Celentano ser milanês, talvez o atrativo de a rua ser homenagem a Gluck, compositor alemão do século XVIII que se tornou uma espécie de legenda em Milão, não sei bem, o fato é que a canção despertou a simpatia do meu avô – que abominava tudo o que não fosse “música séria” - , a ponto de ele me traduzir  verso a verso a letra: se bem lembro, era uma nostálgica estória de um sujeito que sai da província, de sua casinha humilde na rua Gluck e vai enriquecer  na cidade grande e que, ao retornar, reencontra tudo modificado pela urbanização que chegara também a sua aldeia: “Lá dove c’era l’erba” agora é “catrame e cemento” (...) Eu adorava essa canção, ela me mostrou pela primeira vez a dualidade campo-cidade, que no meu dia-a-dia eu vivenciava já, entre este brejo aqui onde afinal vim a morar depois de tanto tempo, e a Copacabana onde morei até me tornar adulto.  A canção de Celentano me fazia ainda vislumbrar outros elos de identificação, entre mim, o personagem da canção e meu avô, entre Brasil e Itália. Se não me engano, falava até mesmo num trem, o trem que eu pegava quando garoto para vir aqui para a roça. Parênteses: escrevo isso do trem e me lembro de “Morro velho”, uma das canções iniciais de Milton Nascimento, da mesma época, e que também me encantou por questões parecidas
                Mas acho que agora, no fundo, tergiverso. O imponderável se mostrou aqui outro dia num carro barulhento que entrou pela ruazinha lateral. Quer dizer, barulhento era o sistema de som do carro, que enquanto esteve por aqui parado, vendendo ou consertando bugigangas, tocou uma coleção de músicas cafonas bem no estilo dos anos 60, embora eu não conhecesse nenhuma delas. Não era o brega – como passou a se chamar – derivado do sertanejo como hoje, era o cafona derivado justamente do rock-balada-canzone italiano, matriz de muito da nossa jovem guarda, Roberto Carlos à frente.  O imponderável se fez presente justo porque me fez lembrar muitas daquelas canções que eu ouvia nos anos 60,  e fiquei me perguntando,  ao mesmo tempo em que delas me lembrava, porque nenhuma entrou na minha seleção das nove marcantes.
                Revi a lista (está em http://robertobozzetti.blogspot.com/2010/12/na-memoria-cancoes-que-ficaram-plagiado.html) e não, ela não é mentirosa não, quer dizer, o que ela possa ter de mentira não compromete a sinceridade do esforço de memória. Mas fiquei pensando se nenhuma daquelas canções cafonas teria aí seu espaço.  Talvez mesmo não.  Mas insisti e me obriguei a pensar porque nenhuma delas sequer me chegou à lembrança na hora de pensar nas que marcaram.  Ou seja, resolvi mesmo me incomodar. E aí fui olhar a minha lista mais uma vez e fiquei com uma certa vergonha do que ela parece ter de pseudo e de bem-pensante.  “Pseudo” aqui vai exatamente como “vontade de me mostrar bem-pensante”.  Chego a quase corar ao ler aquelas justificativas, justo pelo que elas possam conter de verdade e não de mentira. A verdade de um poseur!
                Me senti numa espécie de obrigação quase moral de falar delas, mas não quero criar um “acervo” especial, uma espécie de gueto para a memória.  Até porque  me lembro que quando eu ouvi o primeiro LP de Paulinho da Viola, em 1968,  alguns versos que ele canta,  tais como “fácil demais fui presa/servi de pasto em tua mesa”, de Cartola, “não tardas em me dizer que vais embora”, de Nelson Cavaquinho, e outros, me pareciam mais próximos da poética cafona do que da poética mais moderna dos seus companheiros de geração na “MPB”.  Por outro lado, o mesmo Paulinho no mesmo disco,  nas canções de sua autoria, distanciava-se dessa poética tradicional do samba, de maneira muito sutil, mas se distanciava – sem polemizar ou “desconstruir”.  Essa é uma das razões do seu encanto e de sua dificuldade – seu “mistério” –  desde então para mim.  E “Coisas do mundo, minha nega”, que é desse disco, é ela mesma uma discussão sobre isso.
                Sobre o repertório cafona, Paulo Cesar de Araujo escreveu um livro valioso, Eu não sou cachorro não (Record),  abordando essas questões, que me voltam com freqüência, num livro que eu vou reler.  Mas, embora a pertinência de muito do que ele diz, não dá para concordar com tudo não.  O tema é fascinante, eu vou voltar a ele possivelmente aqui mesmo neste blog.  Agora, o que me parece dizer alguma coisa, embora talvez eu não saiba lá muito bem o quê, é que, seja como for, essas canções de que falo aqui não me marcaram para sempre, como aquelas que eu indiquei marcaram, fossem cinco ou nove.  Isso é possivelmente mais um sintoma de,  mais do que querer parecer, ser  de fato “bem-pensante”, o que não me agrada.  Afinal, o “bem-pensantismo” é o senso comum, é o “bom-mocismo intelelectual”.  Abomino bom-mocismo.
                Afinal, que canções me voltaram, de que canções estou falando eu aqui?  Uma rápida vasculhada na memória me aponta aquela que talvez tenha sido a mais marcante: “Eu não presto, mas eu te amo”, cantada por um tal José Roberto, de quem nunca mais ouvi falar; e a canção, vou ver até se tenho como conferir isso, parece que foi composta por Roberto Carlos.  Que também compôs, se não me engano, “Meu grito”, primeira gravação que eu me lembre de sucesso de Agnaldo Timóteo.  Roberto Carlos me inundou de canções marcantes, ele sempre foi especial na turma,  e até hoje ouço com muito prazer sua discografia até o disco de 1971, que tem “Detalhes”, que me parece a sua obra-prima, uma das canções de dor de corno mais lindas já compostas no Brasil.  Havia outras canções sim, da época, mas não tenho nenhuma nitidez quanto a elas, o que possivelmente quer dizer que não foram tão marcantes assim.  Agora, seria um joio a ser separado do trigo?  Caetano disse uma vez que sabia diferenciar joio do trigo, só que às vezes ele optava pelo joio.  O que acho brilhante como formulação e, isso sim, muito verdadeiro.
                Curioso: resolvi procurar na net pela canzone de Celentano.  Para minha surpresa total há um vídeo em que ele a canta em português de Cabo Verde, com Cesária Évora.  Chama-se, “Quel casinha”.  Mas isso pede um outro post, outro dia.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

AH, UM SONETO... (VI)

             Com esse título geral, tirado de Álvaro de Campos, me propus a postar aqui no blog sonetos de tempos e lugares variados, os mais antigos em geral sonetos que muito admiro de longa data.  Mas nada impede que sonetos recentes, recentíssimos aqui figurem, desde que goste deles, assim como sonetos que, não tendo sido escritos há pouco tempo, eu ignorava.  É precisamente o caso deste aqui, o VI, que li pela primeira vez esta semana, de um poeta português do começo do século XX ao qual nunca tinha prestado maior atenção.  Divido, pois com os leitores, esta bela “descoberta” recente.



Para-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado,
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.

Para surpreso, escrutando, atento,
Como para um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado:
Para e fica e demora-se um momento.

Para e fica; na doida correria
Para à beira do abismo e se demora:
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar d’aço que essa noite explora;
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.

                       

                      Ângelo de Lima
                      (in: A poesia da “Presença”: estudo e antologia, org. por Adolfo Casais Monteiro, Moraes Ed. , Lisboa, 1972 )

NA MEMÓRIA: O NEGÃO – E UM OUTRO

                O ano foi possivelmente 1968. Talvez, 1969.  Eu ia com freqüência ao Maracanã e a outros estádios cariocas, com meu irmão e com  Didi, grande amigo.  Muitas vezes acompanhei o grande Bangu de 1964 a 67, o Botafogo de Gerson e Jairzinho.  Mas naquele domingo pelo Rio-São Paulo tratava-se de Flamengo X Santos.  Santos de Pelé. E com Pelé.
                E eu tinha um motivo a mais para ir ao estádio naquele domingo: meu primo, com seus 6 anos, que nós adoraríamos que ele fosse conhecer o Maracanã, ver um jogo de perto. Não que ele parecesse se interessar por futebol, mas nós gostaríamos de ver sua estréia, naquele entusiasmo de aficcionados que querem fazer com que os outros também o sejam. Para ajudar na concretização dessa nossa vontade tão arbitrária, o pai dele também estava querendo muito ver o Pelé jogar.  Como nenhum de nós era flamenguista, certamente arrumaríamos um setor neutro, fora de torcida, de modo a ver a partida sem maior paixão de torcedor.  Tratava-se de ver sobretudo o Rei.  E para mim tratava-se sobretudo de ver meu primo estreando naquele mundo colorido, deslumbrante, alegre do futebol brasileiro.  Será que de alguma forma o garoto seria conquistado para a nossa paixão futebolística, naquela fase da vida em que, para quem o descobre, o futebol apaixona de maneira decisiva?
                Era a segunda vez na vida que eu ia ao estádio para ver o Negão ao vivo.  Da primeira, acho que em 66, Pelé e Garrincha arrasaram uma seleção que não lembro qual era nos preparativos para a Copa de 66.  Foi a única vez que vi Garrincha no estádio e ele jogou muito, de uma maneira que nenhum outro jogador jamais tinha me impressionado.  Mas a sua carreira já estava em queda e talvez eu tenha assistido ao seu canto de cisne.  Não teve continuidade dali para a frente, sua trajetória entraria em abissal declínio não demoraria muito.  Mas não Pelé.  Eu tinha e ainda tenho uma admiração enorme pelo Rei.  Naqueles tempos de rara TV, as oportunidades para um moleque de 12, 13 anos vê-lo ao vivo no estádio valiam todo esforço.  Que era praticamente nenhum.
                Maracanã cheio, claro, afinal era o Flamengo e afinal era o Pelé em campo.  Chegamos cedo, pegamos um bom lugar na arquibancada, quase central, as expectativas melhores se cumpriam.  Meu primo encantou-se com toda aquela balbúrdia, deslumbrado.  O jogo começa, as atenções se concentrando no que acontecia em campo, “olho no lance!”, como diria o Silvio Luiz, olho em todos os lances.
                Pronto: começou o fastio do menino (não, o futebol não o conquistaria então, não o conquistou nunca).  Claro que na primeira bola tocada por Pelé ele prestou atenção, mesmo para o mais ET naquele ambiente o Negão era uma legenda.  Mas o Rei não queria fazer naquela tarde a parte que lhe competia.  Seu marcador era o Onça, um zagueiro grosso a mais não poder, truculento (jamais escreveria: “como seu apelido indicava”), muito mas muito ruim de bola, como aliás o time do Flamengo daqueles anos (gostaria de livrar a cara do Silva, o Batuta, cracaço, mas não sei se ele ainda jogava no Flamengo).  Enfim, com Pelé sem conseguir fazer nada, com Onça nos seus calcanhares (eu jamais escreveria: “mordendo”)... resultado: com 15 minutos de jogo, passado o encanto inicial, meu primo começou a pedir para ir embora.  Eu gelei, desconfortável.  Lembro que tive raiva.  O menino insistia com o pai, que fossem, que não queria mais ficar ali, virava-se de costas para o campo, tentava tirar a visão da gente, o pai tentava argumentar “peraí filho, daqui a pouco acaba, a gente já vai...” coisas desse tipo para refrear ao menos a violenta quebra de expectativas de todos nós.  Lembro que eu sentia a frustração subir com ardor até minhas orelhas, sensação de fracasso.  O moleque fazia manha, o próprio pai tinha que se esforçar para conseguir ver o jogo, o danado se plantava na frente dele para forçar a retirada antecipada. E o Negão não colaborando.  O tempo passando, já devia ter meia hora, aquela tortura comandada pelo tirano infantil não prometia arrefecimento.
                Mas eis que... o Negão recebe a bola com espaço-tempo suficientes para que Onça não consiga chegar nele.  Lembro que foi ali, bem na nossa frente, um pouco antes da entrada da grande área.  Lembro: um “frisson” (ninguém me obrigará a acrescentar: “galvanique”) percorre a torcida – e não estávamos na torcida do Flamengo, embora lá também certamente tenha ocorrido, com sinal contrário, tal frêmito. A sensação é tão forte que a reação de todos faz com que até meu primo volte os olhos para o campo a fim de ver  o lance.  Não deu outra.  Com espaço-tempo para respirar, o Negão enviesa para dentro, chega na meia-lua e pimba! chute indefensável, Negão 1 a 0. Todos que ali tinham ido para ver Pelé (não, não era nada parecido com um sentimento anti-flamenguista, era para ver o Rei mesmo que a gente ia ao estádio, o que talvez seja difícil de entender hoje) vibraram, pularam, gritaram.  Átimo de festa.  Os olhos do meu primo brilharam com aquela novidade, para a qual parecia não haver mais nenhuma expectativa.
                Acabada a comemoração, de novo os olhos na partida. Fácil de adivinhar que meu primo retomaria sua postura manhosa, irritante.  Mas não teve tempo.  Antes que recomeçasse, seu pai o tomou pela mão e lhe disse “Agora vamos!”, despediu-se rapidamente da gente e tomou o rumo da saída.  Fiquei decepcionado com o resultado daquela tentativa de sedução.  Mas talvez não tanto quanto um negão dois lances acima de nós na arquibancada.  Ao ver a retirada do meu tio com o menino pela mão, não se conteve: “Maior ignorância, aí. O Flamengo toma um gol do Negão,  e o coroa não deixa nem o moleque ver o resto da partida, pô...”

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O TOLICIONÁRIO DE FLAUBERT E O NOSSO

           Bouvard e Pécuchet é o último livro (chamemo-lo “romance”) de Flaubert.  Sua primeira edição é de 1881, um ano após a morte de seu autor.  Obra póstuma e inacabada, com ela o autor de Madame Bovary pretendeu fazer uma espécie de suma, na verdade soma e resumo, da estupidez humana, sua “vingança moral” contra  a tolice, apreensível no discurso dos dois palermas  pequeno-burgueses que dão título ao livro. 
É sabido o quanto Flaubert era atormentado por seu rigor criativo, suas obsessões com a escrita faziam-no viver verdadeiramente torturado, e o projeto de Bouvard e Pécuchet parece que estava deveras destinado ao “fracasso”, ao inacabado: “É preciso estar louco e triplamente frenético para empreender um livro como esse!”, escreveu numa carta de 1872, quando começou a empreender o seu projeto.  Num texto ainda anterior, de 1852 (lembre-se que Madame Bovary, o romance  que o consagra, será publicado apenas em 1857), o escritor, ainda com 30 anos incompletos, já acena na direção do que seria a diretriz que o levaria a seu último livro e talvez, a rigor, a toda a sua obra: “Seria necessário que, em todo o livro, não houvesse uma só palavra de minha autoria e que depois de lê-lo as pessoas não ousassem mais falar com medo de dizer instintivamente uma das frases que lá se encontram.”   Como se vê por essa reflexão, Flaubert – assim como Machado fez também várias vezes,  aliás – levanta uma questão crucial para o que depois, bem depois, já no século XX, seriam alguns dos desenvolvimentos basilares da lingüística, da teoria da literatura e da filosofia da linguagem.
                Mas não pretendo aqui discorrer de forma ensaística não.  As informações centrais acima expostas, bem como um tanto do que vai desordenada e dispersamente exposto por mim, muito de tudo isso pode ser lido com muito mais proveito no ensaio de Augusto de Campos “O Flaubert que faz falta”, que está em seu À margem da margem, editado pela Companhia das Letras.  Tem também o ótimo apêndice à tradução, relançada pela Nova Fronteira em 1981 (100 após a 1ª. edição, portanto), que me parece a cargo dos tradutores (não fica claro) Galeão Coutinho e Augusto Meyer.
                Na verdade o que eu queria falar era sobre a segunda parte de Bouvard e Pécuchet, que pouco foi além de anotações,  e que é genial: seria composto de um “Dicionário de Ideias Feitas” e de um “Catálogo de Ideias Chiques”, constituindo o que Guy de Maupassant chamou de “Sottisier” e que Augusto de Campos traduz, como sempre maravilhosamente, como “Tolicionário”: uma espantosa coleção de tolices, recolhidas em quase três mil folhas deixadas por Flaubert, uma compilação que envolveu a consulta a mais de 1.500 obras e muita mas muita nota mesmo tomada do discurso tolo cotidiano.  Na carta acima aludida de 1852,  Flaubert assim situa o plano:  “Aí se encontrará, em ordem alfabética, e versando todos os assuntos possíveis, tudo quanto se deve dizer em sociedade para ser um homem educado e amável. Por exemplo:
Artista – São todos desinteressados
França – Quer um braço de ferro para ser dirigida
Ereção – Só se diz com referência aos monumentos, etc.”

                Mas qual seria o “enredo” de Bouvard e Pécuchet? Jorge Luís Borges, que admirava profundamente o livro, assim o resumiu em texto de 1954:

                “Dois copistas (cuja idade, como a de Alonso Quijano – o Quixote – se acerca dos cinquenta anos) travam estreita amizade: uma herança lhes permite deixar o emprego e fixar-se no campo: aí ensaiam a agronomia,  a jardinagem, a fabricação de conservas, a anatomia, a arqueologia, a história, a mnemônica, a literatura, a hidroterapia, o espiritismo, a ginástica, a pedagogia, a veterinária, a filosofia e a religião; cada uma dessas disciplina heterogêneas lhes reserva um fracasso;ao cabo de vinte ou trinta anos, desencantados (a ‘ação’ não ocorre no tempo mas na eternidade), encomendam ao carpinteiro uma escrivaninha dupla e se põem a copiar como antes.”
                É divertidíssima a leitura da obra, se se está disposto a entender a trajetória humana sobre este “vale de lágrimas” ao longo dos séculos e séculos pelo viés de  uma infinita produção de tolices.  O caráter enciclopédico do livro é, pois também, necessariamente incompleto, portador, por definição, de infinitude.  Fico pensando no pobre Flaubert hoje, atormentado pela mega-montanhas de informações amalucadas despejadas às infinitas carradas pela mídia.  Pensemos, por exemplo, só na produção de tolices na internet.  Das “frases do dia” no Orkut às mensagens automáticas, às definições e conceitos da Wikipedia, aos sites de “pensamentos”, enfim... na verdadeira e injustificada fome que têm as pessoas de interagirem e sua incapacidade de fazê-lo,  renovada ad nauseam  pela felicidade e o orgulho que demonstram em colher idiotices “assinadas” por autores-celebridades e que elas vão passando adiante, citando e recitando, copiando e colando nos textos que “assinam”... paro, que a sensação é de vertigem – e não estou fazendo linguagem figurada, é vertigem literal. Os pobres copistas de Flaubert seriam levados ao suicídio.  Nem sonhar com o grau zero da escrita é mais possível.
                Mas vejamos alguns pouquíssimos exemplos retirados quase ao acaso do Tolicionário.  Primeiro, do “Catálogo de Ideias Feitas”:

Ave – Desejar ser uma ave e dizer, suspirando, “Asas! Asas!” demonstra alma poética.
Atrizes – Perdição dos filhos de família. – São de uma espantosa lubricidade, atiram-se às orgias, consomem milhões (acabam no hospital). – Perdão! Há algumas que são boas mães de família!
Bronze – Metal da antiguidade.
Claro-escuro – Não se sabe o que é.
Deserto – Produz as tâmaras.
Espartilho – Impede a gravidez.
Feudalismo – Não ter a respeito nenhuma idéia precisa, mas indignar-se contra.
Ginástica – Não se deve abusar. – Extenua as crianças.
Hidroterapia – Cura todas as doenças, mas também as provoca.

Quanto ao “Catálogo das Ideias Chiques”, na folha de abertura Flaubert deixou escritas algumas das seguintes anotações:

Defesa da escravidão.
Defesa da Noite de São Bartolomeu.
Escarnecer dos que “conhecem bem o assunto”.
Escarnecer dos sábios.
Escarnecer dos estudos clássicos.
Comentar a respeito de um grande homem: “Não é o que dizem!” Todos os grandes homens não são o que dizem. Aliás, não há grandes homens.

                Falei acima no ensaio de Augusto de Campos, que é de 1980, pelo qual tenho grande admiração (como tudo em Augusto), mas penso que falta ali uma conexão – entre as tantas conexões que o autor faz – entre  Flaubert e Machado.  De fato, há textos de Machado que se aproximam desse estilo “tolicionário”, como o demolidor e absolutamente hilariante Memórias póstumas de Brás Cubas, assim tambem   “O alienista” e, claro, a “Teoria do Medalhão”.  Está aí uma interessante conexão a ser feita –  se é que alguém ainda não a fez.
                Claro, não há guarda-chuva contra os tsunamis de tolices sob cuja ameaça  vivemos.  Mas conhecer, não só em espírito e citação, esse livro de Flaubert pode nos manter um pouco alertas contra o perigo circundante.  Me lembro agora, e finalizo, de uma “conferência”, que está gravada em vídeo, absolutamente hilária de um intelectual de terceiro time que ocupa um alto cargo no setor cultural de uma dessas fábricas de diplomas que no Brasil recebem atualmente o nome de IES (Instituições de Ensino Superior).  Claro que é hilariante involuntariamente.  De duas passagens – mas são muitas, de deixar Bouvard e Pécuchet se fizessem edição de vídeo muito atarefados – lembro sempre. A primeira, quando o tal intelectual  lê a primeira página, num espanhol pra lá de sofrível, do Quixote e anuncia, solene:  “É assim, in media res que se inicia a imortal obra cervantina...”; fico sempre pensando que é possível que ele conheça ou algum filme, ou desenho animado, ou adaptação juvenil (não a de Lobato!) em que a narrativa do Quixote comece in media res,  mas não é o texto de Cervantes. Outra passagem é quando, ao defender a modernidade do curso de Letras da tal IES ouvimos: “No nosso curso é importante que o aluno aprenda a importância da obra de um Shakespeare, dos grandes autores de língua inglesa, mas queremos também que ele aprenda a língua para pedir um hambúrguer e uma coca-cola na cantina...”   Como se vê, quem se puser hoje a compilar um Tolicionário terá pela frente mais uma vez e mais do que nunca uma tarefa impossível de ser levada a cabo.
E para encerrar, agora de fato: há uma tradução de Bouvard e Pécuchet mais recente, de 2008, pela  Estação Liberdade.  Fiquei sabendo disso ao passear agora pela internet ao escrever isto aqui.